Eu podia estar matando, eu podia estar roubando, mas estou aqui convidando os assinantes do PublishNews para me acompanharem numa sequência de eventos passados nas últimas semanas. Coincidência ou não, em todos os episódios estou em contato com pessoas que, quase sempre, estão fora do mundo da literatura. Pegue a pipoca e vamos nessa:
Cena 1
Lançamento do romance Esquema, do escritor Jessé Andarilho, oriundo da favela de Antares, no bairro de Santa Cruz, na ponta esquecida do Rio de Janeiro. O escritor, que sempre se deu mal na escola, se voltou para a literatura quando, por acaso, um livro que falava sobre a sua realidade caiu na sua mão. Escreveu o primeiro no trem, num celular mesmo, e não parou mais. Em plena pandemia criou a biblioteca Marginow num posto policial da comunidade onde cresceu. Escrevi sobre isso aqui.
No lançamento, mediei o papo, do qual participava o rapper Xamã, oriundo de Sepetiba e amigo de longa data de Andarilho. Ambos trouxeram nas suas falas a zona oeste carioca, imensa tanto no território quanto no abandono, e como tudo parece tão difícil para quem quer ser artista, como se fosse errado e proibido. Tal como o protagonista do romance, é preciso entender os “esquemas” da cidade para seguir em frente. Na plateia, muita gente de Santa Cruz com o livro na mão.
O evento teve cobertura televisiva. Ainda que o equipamento não seja custeado por poder público, muitos políticos, a fim de parecerem bem na fita, vão tirar fotos na Biblioteca Marginow: a margem está no agora.
Cena 2
Bienal do Livro do Rio de Janeiro. A maior feira de livro do país recebeu 740 mil pessoas. É um número absurdo até para eventos internacionais. Houve recordes de vendas nos estandes, numa euforia imen$a. Fui convidado, desconvidado e reconvidado pela Prefeitura para uma fala no estande oficial, que foi bom e, afinal, rendeu até uma ajuda de custo via ABL. Fui chamado também para mediar dois ótimos cafés literários e um debate no estande da Amazon sobre prêmios literários.
Acompanho a Bienal desde os anos 1990, quando era estudante de Letras. Há uns anos venho sendo convidado como autor e/ou para trabalhar na curadoria ou mediações. Veja a pegadinha: ser convidado como autor para a Bienal também é trabalho, porém continuam não pagando cachês aos escribas, e parece que falar sobre isso causa incômodo. Mas é importante que se saiba: entre autores especialmente, todos falam sobre isso, e trago aqui, como arauto da inconveniência, a síntese dos resmungos: se o espaço é todo vendido, patrocinado publicamente por todos os lados, com ingresso cobrado, todo trabalhado no business, como não sobra uma merreca que seja para o faz-me-rir daqueles artistas que são as estrelas da parada?
Mas voltemos para o Café Literário: tinha acabado uma sessão do Café Literário. Diante de políticos e profissionais do livro que haviam debatido sobre a questão da leitura no Brasil, um senhor aguardava a saída de todos para limpar o espaço. Em poucos minutos de conversa, o funcionário, chamado Marco Antônio e morador das cercanias do Riocentro, onde é feita a Bienal, revelou que nunca havia ganhado um livro na vida. Dei para ele um exemplar do meu romance, que iria sortear no estande da Prefeitura.
Ele chorou ao receber o livro. Já eu, senti uma tremenda vergonha. Tanta discussão, debates, encontros, simpósios, congressos, colóquios, seminários, painéis e os (não-)leitores ali, no nosso nariz. Creio que essa cena resuma o paradoxo dos grandes eventos abarrotados num país com índices de leitura tão ruins.
É fácil fazer conta no Excel dos outros, mas com tantos números superlativos da Bienal do Livro, seria gentil e educativo que cada funcionário do evento, sobretudo invisibilizado, recebesse um kit com livros para a sua família. Se quisermos sonhar mais aqui no Word onde tudo cabe, por que não criar uma biblioteca com saraus e clubes de leitura ali por Curicica, onde mora o Marco Antônio? Numa cidade que carrega o título de Capital Mundial do Livro, seria mais sonho que delírio.
Cena 3
Foi saindo da Bienal do Livro que, pensando no Marco Antônio como leitor, me lembrei de uma ideia que tive há uns meses mas acabou não indo para a frente: criar um clube de leitura em Paraty para os trabalhadores da cidade com livro de autor presente na Flip.
Adoro a festa de Paraty, sobretudo pelo reencontro com amigos da área, ainda que algumas memórias sejam de muito cansaço por trabalho – e outras até bem traumatizantes. Mas é tudo maravilhoso no geral. Como todo evento de cidade turística que apresenta desigualdades sociais, é natural que, para a parte mais pobre do território, a Flip signifique apenas a possibilidade de trabalhar. Não sei se é pelo meu sangue de vendedor de cachorro-quente, atendente de fast-food e balconista de videolocadora, mas tenho muito carinho e empatia por quem está atrás do balcão. Mesmo na literatura ainda me sinto nessa posição.
A mão coçou e decidi pegar a Rio-Santos, consegui alguns apoios e pimba, criamos um clube de leitura muito especial, majoritariamente formado por atendentes, garçons e demais trabalhadores do comércio. Já estão lendo um livro do poeta Sérgio Vaz, que fará um encontro com o grupo no evento. Saiu aqui e a ideia é que o clube permaneça, mesmo porque a notícia circulou e já temos fila de espera para o clube.
Cena 4
Ao retornar de Paraty, fizemos uma edição do projeto Livro a Caminho. A ideia é simples: visitamos uma escola pública acompanhados de uma pessoa representante de editora, que explica para a galera como é que se faz um livro, da recepção do original até a venda na livraria. Não sei se você aí reparou: exceto quem trabalhe com design ou produção editorial, em nenhum momento nos explicam como é esse processo. Em visitas a escolas, quase sempre pensam que eu tenho uma impressora mágica que faz o livro sair cheirosinho e shrinkado. Fazemos batalhas de rimas, outras atividades e, no fim, todos recebem um exemplar da editora visitante, já com um olhar diferente sobre aquele objeto cultural, agora mais valorizado.
Mas a parte que mais acho legal é quando levamos livros para o pessoal de limpeza e as merendeiras na escola. Sei bem que elas costumam ficar de fora dos projetos. Rapidamente, algumas começam a comentar sobre livros que já leram e os motivo pelos quais pararam. Se a ideia é democratizar pela leitura, o básico é começar por quem está ao nosso lado, sobretudo numa escola.
Cena 5
Na semana lotada, como quem acende um cigarro no outro, fechamos visitando a Livraria Córdula, em São João de Meriti. Fomos participar de um Arraiá Literário promovido pela loja. A organização foi do Diogo Santana, que recebeu o prêmio de Melhor Livreiro de 2025 aqui pelo PublishNews. Não é por acaso.
São João de Meriti, na Baixada Fluminense, também costuma aparecer nos noticiários nas editorias policiais. Mas tem uma vida literária, academia de letras e essa livraria que, tal como o nome indica, é um coração pulsante na região. Em conversas, ficamos sabendo de ideias e potencialidades que, se tiverem espaço, irão fazer daquele território um polo de livro e leitura.
Subindo as letrinhas, à guisa de cena pós-créditos, fico com a conclusão de que entendemos sobre os leitores, sobretudo para festas e eventos de massa e marketing, mas precisamos entender os não-leitores e trabalhar para e por eles, mesmo que isso não seja instagramável e, por isso mesmo, pouco patrocinável, como num tipo de saneamento básico esquecido.
Seguimos na luta, aguardando as continuações dessas histórias.
Henrique Rodrigues é diretor do Instituto Caminhos da Palavra, voltado para a promoção do livro, leitura e escrita. Com mais de duas décadas de experiência na área, é coordenador geral do Prêmio Caminhos de Literatura e curador do Prêmio Pallas de Literatura. Nascido no subúrbio do Rio de Janeiro, formou-se em Letras pela Uerj, cursou especialização em Jornalismo Cultural pela Uerj, mestrado e doutorado em Letras pela PUC-Rio. Já foi atendente de lanchonete, balconista de videolocadora, professor, superintendente pedagógico da Secretaria de Estado de Educação do RJ, coordenador pedagógico do programa Oi Kabum! e gestor de projetos literários no Sesc Nacional. Publicou 24 livros, entre poesia, infantil, conto, crônica, juvenil e romance, tendo sido finalista do Prêmio Jabuti duas vezes. É patrono de duas salas de leitura das escolas públicas onde estudou. www.caminhosdapalavra.com.br
** Os textos trazidos nessa coluna não refletem, necessariamente, a opinião do PublishNews.
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