Como parte dessa construção, Judá desenvolveu palestras voltadas a profissionais de empresas, estruturadas a partir de livros infantis. Com essa escolha, subverte formatos corporativos e abre espaço para conversas mais sensíveis e autênticas sobre pertencimento, escuta e diversidade. Histórias ilustradas tornam-se pontes para transformar culturas organizacionais – conectando dados, afetos e desejo de mudança.
Nesta conversa com Futuros Compostos, ela compartilha a sua jornada marcada por ancestralidade e invenção: da infância nas salas de aula do interior da Bahia com a avó à atuação como mentora de pessoas LGBTQIAPN+ e referência na construção de futuros mais inclusivos. Uma entrevista que desloca, afeta e propõe – como convém a quem leva a sério a arte de transformar o amanhã com as potências do agora.
Qual é a sua formação e como os Estudos de Futuros se tornaram parte da sua carreira?
Possuo Licenciatura em Teatro, mas a minha história com a educação começa muito antes da graduação. Fui criada por mulheres professoras – entre elas, minha avó materna, que alfabetizou a população adulta de uma pequena cidade do interior da Bahia nos anos 1980. Cresci em meio a livros, conversas sobre a escola, acompanhando minha avó nas salas de aula, onde aprendi sobre o poder de libertação e emancipação da educação. Na universidade, pude unir minha formação artística ao trabalho social, atuando em projetos socioeducativos voltados ao cuidado com a saúde de pessoas idosas. Como professora, atuei na educação básica em escolas localizadas em comunidades quilombolas e indígenas do sudoeste baiano. Tempos depois, encontrei nos Estudos de Futuros uma forma de conectar minha trajetória à minha identidade. Passei a investigar como pensar e construir futuros possíveis para pessoas LGBTI+, especialmente aquelas que, como eu, vivem nas intersecções das desigualdades.
Como tem avançado na construção que une futuros mais inclusivos e diversidade?
Desde 2022, atuo como consultora de Gestão para a Inclusão da Diversidade, que consiste em apoiar as organizações a aprimorarem os seus processos de gestão com base em estruturas de inclusão. No entanto, o que encontrei no início da minha atuação foram pedidos constantes por manuais genéricos e modelos replicáveis, uma reprodução dos formatos já prontos de startups de RH e consultorias tradicionais. Na tentativa de fazer diferente, criei meu próprio caminho: desenvolvi jornadas de aprendizagem autorais, voltadas para refletir e agir sobre as dinâmicas da diversidade no século XXI. Acredito que não se trata apenas de gestão, mas de comportamento, cultura e compromisso com futuros mais inclusivos. Hoje, atuo como mentora de carreira e negócios para pessoas LGBTI+, unindo minhas experiências na educação e na gestão. Sou, também, palestrante, tendo por foco temas como diversidade sexual e de gênero e inclusão no mundo do trabalho. Minha atuação é guiada pelo desejo de abrir caminhos – não apenas para mim, mas para tantas outras pessoas que, como eu, seguem criando alternativas para existir com dignidade, potência e afeto.
De forma bastante autoral, você desenvolveu uma série de palestras sobre inclusão e diversidade baseada em livros infantis. Como tem sido esse trabalho?
Desenvolver palestras sobre a inclusão da diversidade, com base em livros infantis, tem sido uma das experiências mais potentes da minha trajetória. A ideia nasceu da vontade de abordar temas complexos com uma linguagem mais sensível, acessível e emocionalmente conectada ao público. Embora os livros sejam infantis, as palestras são voltadas para o público adulto. Muita gente me diz que nunca tinha pensado na inclusão da diversidade de forma tão sensível e prática ao mesmo tempo. A literatura infantil nos ajuda justamente nisso: a baixar as defesas, tocar sentimentos e, a partir disso, provocar mudanças reais. Essas histórias ganham ainda mais força quando articuladas com dados de mercado, tendências em gestão e os ganhos concretos para a cultura organizacional. Trata-se de uma abordagem que une afeto e estratégia, mostrando que a inclusão da diversidade pode – e deve – estar no centro das decisões do dia a dia. Esse é o verdadeiro ganha-ganha: quando todo mundo se sente parte e cresce com a organização.
Quais são os títulos e autores com os quais trabalha e o que eles aportam para as suas palestras?
Hoje, tenho três palestras principais nesse formato. Inspirada no livro infantil Minha sombra é rosa (Aletria), de Scott Stuart, a palestra “De quem é a responsabilidade pela inclusão da diversidade?” aborda conceitos como orgulho, pertencimento e empoderamento, propondo uma reflexão sobre o papel individual e coletivo na construção de espaços de trabalho mais inclusivos para pessoas LGBTI+.
Em “Estratégias para planejar carreiras LGBTI+”, baseada no livro Dias felizes (Livros da Matriz), de Bernat Cormand, falo sobre identidade, amor, armário e autogestão emocional para planejar o futuro, conectando esses temas à ideia de futuros possíveis e ao planejamento de carreira de forma mais afetiva e consciente. Em “Comunicação inclusiva na sociedade 5.0” – a partir do livro Fala baixinho (Boitatá), de Janaina Tokitaka –, discuto como a escuta ativa, o respeito aos tempos e jeitos do outro, e mudanças de comportamento simples, podem tornar os ambientes de trabalho mais acolhedores – sem impor regras arbitrárias, mas sim promovendo a convivência com mais cuidado e respeito.
Especialistas em tendências têm abordado a ascensão de comportamentos como a microaprendizagem e a microleitura. Como você enxerga essa questão?
Vejo a ascensão da microaprendizagem e da microleitura como reflexo direto das transformações nos hábitos de consumo de conteúdo, especialmente nas redes sociais. Plataformas como TikTok e Instagram acostumaram as pessoas a se engajarem com vídeos curtos, diretos e visualmente estimulantes. Isso tem alterado, inclusive, a expectativa em relação a formatos mais tradicionais de aprendizado, como palestras e cursos. Em junho deste ano, por exemplo, fui procurada para realizar palestras mais curtas do que as do ano anterior. Esse movimento sinaliza uma mudança de comportamento que considero bastante positiva: conteúdos relevantes, especialmente os de desenvolvimento pessoal e profissional, começam a aparecer no cotidiano das pessoas como pequenas pílulas – em newsletters, vídeos rápidos, e-mails e encontros curtos.
Essa abordagem, inclusive, permite que o aprendizado se integre melhor à rotina e ao fluxo de trabalho, o que dialoga com uma mudança mais profunda na cultura organizacional. Diferente dos anos 1960, quando o conhecimento ficava restrito aos cubículos do conhecimento empresarial – acessível apenas a alguns setores ou cargos de gestão –, hoje vivemos (ou deveríamos viver) um cenário em que não há mais barreiras rígidas entre trabalho e educação. Aprender precisa ser algo constante, transversal e acessível – e a microaprendizagem cumpre bem esse papel quando é feita com propósito e qualidade.
O mundo tem assistido a um retrocesso nas questões de diversidade e inclusão nas empresas. Qual a leitura que você faz desse momento e como a produção literária e acadêmica, na sua visão, têm espelhado essa onda conservadora?
Vejo esse retrocesso nas empresas como um movimento de vácuo político e cultural, mas não como um fim de ciclo. De fato, algumas organizações têm recuado em suas iniciativas de inclusão da diversidade, muitas vezes por pressão externa ou falta de compreensão sobre o impacto positivo dessas ações. No entanto, há também empresas que resistem – seguem acreditando no valor estratégico da diversidade para inovar, atrair talentos e fortalecer sua cultura organizacional. Se nas empresas essa resistência aparece de forma mais pontual, na produção literária e acadêmica ela se manifesta com ainda mais força. A literatura e a pesquisa têm sido espaços fundamentais de elaboração de futuros. Futuros possíveis, desejáveis, mais justos. Seja por meio de narrativas sensíveis e potentes ou de pesquisas comprometidas com a transformação social, esses campos têm contribuído não só para resistir à onda conservadora, mas também para imaginar e construir novos caminhos para a inclusão da diversidade.
E, em contrapartida, quais são os avanços na produção científica e acadêmica que você tem visto?
Para mim, um dos movimentos mais interessantes tem acontecido na área da saúde. Em especial, na psicologia, na psiquiatria e na saúde da família. O aumento de pesquisadores LGBTI+ nesses campos tem feito toda a diferença. Não se trata apenas de incluir a pauta em uma disciplina isolada, mas de reformular a própria lógica dos cuidados, deslocando o olhar cisheteronormativo que ainda estrutura boa parte dos protocolos e das políticas públicas. Hoje, vemos pesquisas que discutem a saúde da família sob uma perspectiva mais ampla e realista, considerando arranjos familiares que existem – mas que, por muito tempo, foram ignorados ou patologizados. Casais do mesmo gênero, famílias formadas por pessoas trans, maternidades lésbicas, paternidades afetivas... tudo isso está começando a entrar nas universidades não como exceção, mas como parte da realidade social que precisa ser compreendida e cuidada com ética e rigor. Mas, é importante dizer: esses avanços acontecem porque tem gente comprometida dentro das instituições, muitas vezes enfrentando resistência e solidão. O que ainda falta, em muitos espaços acadêmicos, é a coragem de atualizar seus próprios referenciais, de valorizar as vozes que vêm das margens e de reconhecer que conhecimento que não serve à vida... serve a quem?
A literatura LGBTQIAP+ é resistência? As autoficções, por exemplo, são mais comuns entre a produção literária desse grupo?
Sem dúvida, a literatura LGBTQIAP+ é resistência – mas é também invenção, imaginação e construção de sentido. Ao longo dos últimos anos, temos visto o fortalecimento de diferentes gêneros e formatos produzidos por pessoas LGBTI+, e as autoficções têm ocupado um papel importante nesse cenário. Elas ganham destaque justamente por entrelaçarem experiências pessoais e denúncias coletivas, mostrando que viver, narrar e publicar ainda são, para muitas de nós, atos profundamente políticos. Não se trata apenas de reagir ao conservadorismo, mas de propor outras formas de existência, outros modos de amar, de trabalhar, de imaginar os futuros. São histórias que não apenas falam sobre ser LGBTI+, mas que também transformam o modo como as pessoas entendem o mundo à sua volta.
A literatura sáfica, por exemplo, tem conquistado as novas gerações e crescido no mercado editorial nacional. Você classifica essa movimentação como um fenômeno de nicho?
A literatura sáfica tem crescido muito nos últimos anos e vem, sim, conquistando as novas gerações – e isso não é apenas uma tendência de mercado, mas um movimento político e cultural importante. Lésbicas foram e ainda são profundamente fetichizadas, e a produção de uma literatura própria é, antes de tudo, um ato de retomada: de suas narrativas, de seus corpos e dos seus desejos. É a chance de contar suas histórias por elas mesmas, e não mais a partir do olhar do outro. Porém, não vejo esse movimento como um fenômeno de nicho. Ao contrário, ele faz parte de uma transformação maior na cultura e no imaginário social, em que mais pessoas buscam representações reais, afetivas e múltiplas da vida. E esse crescimento não se limita à literatura sáfica: temos visto também um avanço importante na produção de literatura infantil com temática LGBTI+, que ajuda a naturalizar as diferenças desde cedo e oferece ferramentas para famílias e escolas falarem sobre inclusão com mais cuidado e responsabilidade. Estamos, de fato, reivindicando o direito de imaginar e existir com dignidade.
O que você tem lido? Poderia sugerir títulos para os leitores da coluna?
É sempre um prazer falar sobre livros e sugeri-los! Nesta minha lista, trago livros para ler na intimidade, livros para ler para crianças e livros para aprender algo novo sobre si mesmo ou sobre o outro.
A conversa com Judá traz a dimensão da leitura como uma ato político e de futuro. Com a sua abordagem, ela mostra que falar sobre diversidade nas empresas não precisa versar somente sobre políticas internas e métricas; pode – e, talvez, deva – passar por histórias, símbolos e afetos que reconfiguram a forma como vemos o outro. Afinal, futuros inclusos não se constroem apenas com indicadores – eles precisam ser imaginados primeiro.
*Lu Magalhães é fundadora do Grupo Primavera (Pri, de primavera & Great People Books), sócia do PublishNews e do #coisadelivreiro. Graduada em Matemática pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), possui mestrado em Administração (MBA) pela Universidade de São Paulo (USP) e especialização em Desenvolvimento Organizacional pela Wharton School (Universidade da Pensilvânia, Estados Unidos). A executiva atua no mercado editorial nacional e internacional há mais de 20 anos.
**Os textos trazidos nessa coluna não refletem, necessariamente, a opinião do PublishNews.
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