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Futuros Compostos | Kályton Resende: um psicanalista que alerta sobre como o trauma da pobreza fere o direito à leitura
PublishNews, Lu Magalhães, 16/09/2025
Em diálogo com literatura, filosofia e história, Kályton Resende convoca os livros para se tornarem instrumentos de resistência

Kályton Resende, psicanalista | © Arquivo pessoal
Kályton Resende, psicanalista | © Arquivo pessoal
O psicanalista e pesquisador Kályton Resende está fomentando o debate nacional em torno da formulação de dois conceitos originais: Trauma da Pobreza e a experiência da ascensão social – caracterizada pelo sofrimento psíquico no processo de mobilidade e os seus efeitos do trauma da pobreza.

Na sua jornada, a leitura foi tanto abrigo pessoal quanto ferramenta de elaboração teórica. Na perspectiva de popularização da Psicanálise nas redes sociais – muitas vezes reduzida a frases de efeito –, Resende propõe um caminho mais denso: pensar o inconsciente atravessado pela experiência da pobreza, que influencia e marca a própria vivência de ascensão social.

Para Kályton Resende, o Trauma da Pobreza descreve marcas inconscientes que vão além da falta material e inscreve no sujeito a experiência de viver sob ameaça constante de perda. A ascensão social, por sua vez, é o momento em que esse trauma retorna como sintoma: a busca por pertencimento que nunca se completa quando alguém atravessa fronteiras de classe.

Essas feridas, aliás, produzem barreiras invisíveis ao ato de ler – não é a alfabetização formal que falta, mas o tempo, a disciplina, a referência em casa e na comunidade. Há, sobretudo, o medo de que o livro “não seja para si”, de ser estrangeiro diante do objeto cultural. Nesse vazio, a novela cumpre um papel importante, funcionando como uma literatura popular acessível. A pobreza – lembra o psicanalista – não fere apenas o corpo: atinge, também, o direito de usufruir do saber.

Em diálogo com Literatura, Filosofia e História, Kályton Resende convoca os livros para se tornarem instrumentos de resistência e peças-chave para decifrar o futuro das relações de classe no Brasil.

PublishNews – Qual é o papel dos livros na sua formação como psicanalista e na construção de conceitos como Trauma da Pobreza e a experiência da ascensão social?

Os livros foram o meu chão e o meu abrigo. Cada leitura, desde autoajuda à filosofia, passando pela literatura infantojuvenil, funcionou como dispositivo de elaboração psíquica. A teoria psicanalítica que desenvolvo nasce de um encontro com textos que me permitiram nomear aquilo que a experiência social silenciava. O Trauma da Pobreza e o sofrimento psíquico da ascensão social não são conceitos inventados do nada – são elaborados e ancorados em análise, entre leitura e vida; entre Freud e a Teoria Social; entre Lacan e Ferenczi; entre a história de minha família e as páginas que me emprestaram linguagem. O livro foi a via pela qual o indizível ganhou contorno simbólico.

Pode explicar um pouco os conceitos e de que maneira eles podem limitar o acesso do indivíduo à leitura na perspectiva das barreiras psicológicas?

O Trauma da Pobreza descreve marcas inconscientes que ultrapassam a materialidade da falta e inscrevem no sujeito uma forma de existir sob ameaça constante de perda. Já a experiência da ascensão social é a atualização desse trauma: o conflito que retorna no campo simbólico, na tentativa de pertencimento que nunca se completa ao atravessar as fronteiras de classe. Essas marcas produzem barreiras invisíveis ao ato de ler. Não é a ausência de alfabetização formal que impede, mas o tempo, a disciplina, a falta de referência em casa e na comunidade. Há, fortemente, o medo de que aquele livro não seja “para si”. Muitos se veem estrangeiros diante do objeto cultural. É interessante notar que a novela cumpre essa função, funcionando como literatura popular. A pobreza não fere apenas o corpo, mas também o direito de usufruir do saber.

Você acredita que os livros possam ser uma ferramenta importante para a construção da noção de pertencimento no processo de mobilidade social conquistada pelo indivíduo?

Sim, porque o livro não é apenas transmissão de conteúdo, é também inscrição subjetiva. Quando alguém ascende socialmente, carrega consigo a sensação do não lugar. A leitura funciona como um passaporte simbólico, autorizando o sujeito a habitar territórios que pareciam interditados. Ler é se ver capaz de traduzir um mundo que até então parecia alheio. O pertencimento nasce não porque o livro transforma alguém em “dono da cultura”, mas porque possibilita que a palavra deixe de ser estrangeira e se torne lugar de morada. Facilita a tradução entre os dois mundos. Diria, inclusive, que auxilia o leitor a construir o seu-não-lugar, ou seja, um ambiente simbólico onde o indivíduo se permite construir algo para si.

Qual é a sua visão sobre o boom da Psicanálise nas redes sociais? Você possui um canal onde compartilha os conceitos, correto?

Vivemos um tempo em que a Psicanálise se tornou objeto de consumo digital. Isso tem dois lados: por um, a difusão nunca foi tão ampla; por outro, a simplificação corre o risco de esvaziar o rigor conceitual. Do meu lado, olho para esse viés da difusão: mantenho meu podcast Pobreza em Análise e o canal no YouTube “Trauma da Pobreza”. Enxergo-os como formas de aprofundamento; além disso, realizo encontros on-line mensais com a minha comunidade “Exilados de Classe”. Produzo conteúdo em redes sociais justamente para tensionar esse espaço. Meu objetivo não é reduzir a Psicanálise a frases de efeito, mas construir pontes entre um saber complexo e um público que busca elaboração para dores muito concretas. Não tenho a pretensão de falar para “convertidos”, assumo os riscos disso com segurança técnica e teórica. A Psicanálise, quando chega sem verniz, pode nomear sofrimentos coletivos que antes eram vividos em silêncio. Aliás, alguns livros também produzem esse efeito.

Em tempos de consumo rápido de conteúdo digital, como manter a profundidade do pensamento psicanalítico sem perder relevância para o público contemporâneo?

A saída é não ceder à lógica da velocidade. Eu não acredito que a profundidade precise ser sacrificada. O que faço é trabalhar a linguagem: extrair do conceito a força de identificação rápida, traduzir sem vulgarizar. O público contemporâneo não é incapaz de compreender, mas precisa de uma via de acesso. Cabe ao psicanalista não cair na tentação da simplificação excessiva, mas também não se esconder em jargões. A relevância nasce quando o sujeito percebe que aquele conceito toca a sua experiência de vida.

E qual é o papel da leitura, na sua visão, na compreensão da Psicanálise, na perspectiva de um público amplo?

A Psicanálise se sustenta na linguagem, e a leitura é sua porta de entrada. Não há análise sem palavras, não há inconsciente sem discurso. Para o público amplo, a leitura é a chance de experimentar esse encontro com o texto que desacomoda, que obriga a pensar além do imediato. Ler Psicanálise não é decorar teorias, é suportar o desconforto de se ver escrito pelo texto. Cada página é um espelho meio torto, mas necessário, onde o sujeito se reconhece e passa a fazer daquilo sua própria produção de si (sentidos).

Quais livros você recomendaria para alguém interessado em entender como a classe social e o trauma econômico moldam a psique?

Eu recomendaria A cor do inconsciente – Significações do corpo negro (Perspectiva), de Isildinha Baptista Nogueira, que nomeia a violência estrutural e suas marcas psíquicas de forma maestral; considero essa obra a melhor que temos sobre o assunto, em qualquer língua. Todos os livros de Jessé Souza, Carolina Maria de Jesus, Neusa Santos Souza, Christian Dunker. E, também, alguns de Pierre Bourdieu, por mostrar como a classe estrutura o gosto, o saber e a exclusão simbólica.

Acho importante citar o livro do francês Vincent de Gaulejac, A neurose de classe (Via Lettera Editora) – especialmente os dois primeiros capítulos, porque mesmo que sua formulação parta do contexto europeu, ela evidencia o sofrimento psíquico ligado à mobilidade social, o que me permitiu reelaborar a partir da experiência brasileira a noção da ascensão social como atualização do trauma da pobreza. Entre os psicanalistas, Psicologia das massas e análise do eu, de Freud; e O Seminário, livro 17: O avesso da Psicanálise (Zahar), de Jacques Lacan – pois ali se entende como a coletividade impacta o sujeito. E aproveito para convidar os leitores para acessarem os meus ensaios sobre Trauma da Pobreza e ascensão social, que tentam articular essas referências à experiência brasileira.

As obras de ficção também se prestam a essa finalidade (compreender melhor a Psicanálise, autoconhecimento etc.)?

Sim. A ficção é um campo privilegiado, porque a literatura sempre se ocupou do inconsciente, antes mesmo de Freud. Tudo que eu li de ficção teve para mim função interpretativa, inclusive Harry Potter. Ler Clarice Lispector, Machado de Assis, José de Alencar, Graciliano Ramos... é encontrar, na narrativa, aquilo que os conceitos muitas vezes não alcançam. A ficção não explica, mas testemunha. E testemunhar é condição fundamental da Psicanálise para a elaboração de si.

Você acredita que a Psicanálise pode ser uma ferramenta de transformação social ou seu papel é mais individual?

A Psicanálise é individual em sua prática, mas seus efeitos advêm do social. Toda Psicanálise individual é uma Psicanálise social. Quando um sujeito elabora seu trauma, rompe com repetições que o amarravam também no coletivo. Pensar o Trauma da Pobreza é justamente mostrar que não se trata apenas de uma dor pessoal, mas de uma marca histórica que estrutura relações sociais. A Psicanálise pode ser ferramenta de transformação social quando se recusa a olhar apenas para o divã e se permite ouvir as marcas do mundo no inconsciente de cada sujeito.

Como a sua pesquisa influencia a percepção que você tem sobre o futuro da educação, do trabalho e das relações de classe no Brasil?

A minha pesquisa mostra que a pobreza não se apaga com a ascensão, ela se reinscreve. Isso impacta diretamente na educação, no trabalho e nas relações de classe. O futuro da educação não pode ignorar que muitos alunos carregam a ferida simbólica de não se sentir autorizados a aprender. O futuro do trabalho não pode ser pensado sem considerar como a mobilidade produz exilados de classe. E as relações de classe no Brasil só poderão ser transformadas quando reconhecermos que a desigualdade não é apenas econômica, mas psíquica. A ascensão, sem elaboração do trauma, perpetua exclusões. Isso assusta a classe dominante que sabe que terá que perder algo, mas será que o perverso está disposto a perder?

O que tem lido e quais livros recomenda para os leitores que desejam se aprofundar em Psicanálise e nos conceitos que você tem desenvolvido?

Tenho relido muito Freud, sobretudo Além do princípio do prazer e O mal-estar na civilização – textos fundamentais para pensar o excesso e a renúncia que marcam o sujeito. Em Lacan, O Seminário, livro 17: O avesso da Psicanálise ajuda a entender as articulações entre discurso e laço social. Entre os contemporâneos, cito Jessé Souza, em O pobre de direita: a vingança dos bastardos (Civilização Brasileira). Para quem deseja se aprofundar, eu recomendaria começar por Freud e Lacan, passar pelos brasileiros e, depois, entrar em contato com as minhas formulações, que se colocam como continuidade e deslocamento dessas leituras.

*

Ao ouvir Kályton Resende, compreendo que pensar o futuro dos livros no Brasil é também pensar as marcas psíquicas que definem quem se sente autorizado (ou não) a ler. Os conceitos de Trauma da Pobreza e da ascensão social revelam que a leitura não é apenas um ato individual, mas um campo de disputa simbólica feroz, no qual o direito ao saber e ao pertencimento são questionados. Em Futuros Compostos, proponho uma jornada exploratória sobre como os livros podem abrir caminhos inéditos; aqui, aprendo que eles não apenas projetam futuros, mas também ajudam a curar feridas invisíveis do passado e do presente.

*Lu Magalhães é fundadora do Grupo Primavera (Pri, de primavera & Great People Books), sócia do PublishNews e do #coisadelivreiro. Graduada em Matemática pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), possui mestrado em Administração (MBA) pela Universidade de São Paulo (USP) e especialização em Desenvolvimento Organizacional pela Wharton School (Universidade da Pensilvânia, Estados Unidos). A executiva atua no mercado editorial nacional e internacional há mais de 20 anos.

**Os textos trazidos nessa coluna não refletem, necessariamente, a opinião do PublishNews.

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