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Futuros Compostos | ​Augusto Paim: um ativista do jornalismo em quadrinhos no Brasil
PublishNews, Lu Magalhães, 14/10/2025
Não basta traduzir a realidade em imagens mais acessíveis: é preciso criar experiências que humanizem, que provoquem e que permaneçam

Augusto Paim, referência no jornalismo em quadrinhos no Brasil | © Vitória Proença
Augusto Paim, referência no jornalismo em quadrinhos no Brasil | © Vitória Proença
Território fértil de experimentação, memória e crítica social, o jornalismo em quadrinhos está em expansão no Brasil. Para o jornalista Augusto Paim – um ativista dessa produção no país –, os quadrinhos não são atalhos visuais nem formas simplificadas de contar histórias, mas uma linguagem artística capaz de humanizar narrativas e explorar camadas profundas de complexidade, tão rigorosas quanto outras artes.

Essa convicção começou a se desenhar em 2006, quando, ainda estudante de jornalismo na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), ele se perguntou se seria possível praticar jornalismo em quadrinhos. Desde então, construiu uma trajetória que o consolidou como referência no campo. Doutor pela Universidade Bauhaus de Weimar, organizou as primeiras edições do Encontro Internacional de Jornalismo em Quadrinhos no Brasil, publicou reportagens em veículos como Itaú Cultural e Cartoon Movement e, atualmente, coordena o evento internacional 24 Horas de Quadrinhos, em Berlim. É também autor do Pequeno manual da reportagem em quadrinhos (Arquipélago Editorial, 2023). Ele respondeu a algumas perguntas da coluna sobre o assunto.

Lu Magalhães – Como o jornalismo em quadrinhos se tornou a sua especialidade?

Augusto Paim – Eu comecei a pesquisar quadrinhos ainda na faculdade de jornalismo, na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), dentro de um grupo voltado para estudos de imagem; cada integrante tinha um recorte e o meu era HQ. Gostava muito, mas no fim do curso surgiu a inquietação: como unir jornalismo e quadrinhos – já que meu diploma seria em jornalismo e eu queria atuar como repórter? Em 2006, veio a pergunta que mudou tudo: “e se fosse possível fazer jornalismo em quadrinhos?”.

Uma busca rápida mostrou que isso já existia – para minha sorte. Fiz o TCC sobre o tema e segui adiante. Organizei com o Goethe-Institut Brasil as duas primeiras edições do Encontro Internacional de Jornalismo em Quadrinhos, publiquei minha primeira reportagem em quadrinhos na revista do Itaú Cultural (com a desenhista Ana Luiza Koehler); depois, produzi duas HQ-Reportagens para o portal internacional Cartoon Movement e, por fim, escrevi uma tese de doutorado sobre o assunto, defendida em 2019 na Universidade Bauhaus, em Weimar, com bolsa CAPES/DAAD.

O cenário do jornalismo em quadrinhos se alterou desde então?

Sim. Na época em que comecei, já havia bastante gente pesquisando e produzindo, mas eram colegas que faziam isso por interesses temporários, geralmente atrelados a trabalhos de conclusão de curso. Hoje em dia, ao contrário, há uma geração de HQ-repórteres no Brasil, trabalhando permanentemente com jornalismo em quadrinhos. Os veículos também estão mais interessados no formato.

Você defende que o jornalismo em quadrinhos não é um gênero, sim uma área do jornalismo tão ampla quanto o radiojornalismo, webjornalismo ou telejornalismo. Pode explicar essa visão?

Na verdade, talvez não seja tão ampla ainda, mas é uma área em crescimento e que tem o potencial para ser tão ampla quanto outras áreas de atuação do jornalismo. O principal aí é não confundir jornalismo em quadrinhos com “gênero do jornalismo”. Gênero é reportagem, entrevista, notícia, crônica etc. O jornalismo em quadrinhos em si é uma área de atuação, na qual os mais diversos gêneros do jornalismo podem ser praticados como entrevista em quadrinhos, reportagem em quadrinhos, notícia em quadrinhos...

Essa distinção não é mera formalidade. Percebi que se fazia muita confusão sobre as características do jornalismo em quadrinhos na hora de avaliar o seu potencial. Quando ele é entendido como gênero, a compreensão do fenômeno acaba restrita à produção de reportagem em quadrinhos. Mas fazer uma reportagem é muito diferente de fazer uma notícia ou uma entrevista – e em cada um desses gêneros a linguagem dos quadrinhos vai ser utilizada de maneira diferente. Portanto, entender jornalismo em quadrinhos como área de atuação em vez de gênero é uma maneira de preservar a ampla diversidade da produção de quadrinhos jornalísticos.

Em muitos sentidos, a HQ compartilha com o livro a vocação de construir memória. Como você vê essa relação entre quadrinhos e literatura na produção de narrativas de não ficção? Pode falar um pouco sobre a experiência de trabalhar com literatura em Berlim; da atuação como editor de um portal de notícias sobre os protagonistas da cena literária?

O LCB diplomatique foi um portal que ajudei a criar, no qual protagonistas da cena literária do mundo inteiro enviavam uma imagem de autoria própria e escreviam um texto curto, comentando sobre questões políticas e sociais de seu país, do ponto de vista do quotidiano. Quase como jornalismo literário internacional. Fui o primeiro editor desse portal e respondi por ele durante um ano e meio, atualizando-o semanalmente. O trabalho envolvia não só solicitar textos para autoras e autores do mundo inteiro e editá-los – eu também precisava contratar tradutoras e tradutores para verter os textos para inglês e alemão ou mesmo outras línguas. Nesse processo, tive contato com pessoas de diversas regiões do mundo, com histórias muito distintas, de forma que foi culturalmente muito enriquecedor para mim. E o portal em si virou uma plataforma para histórias que de outra forma não receberiam a devida visibilidade.

Mas, esse não foi um trabalho com quadrinhos, foi antes com jornalismo, literatura e tradução. Mas no mesmo centro literário, o Literarisches Colloquium Berlin (LCB), onde trabalhei por dois anos e meio, também criei o evento 24 Horas de Quadrinhos de Wannsee, em 2019, que continuo organizando até hoje. Nos dias 1º e 2 de novembro de 2025, inclusive, estarei em Berlim para realizar a sexta edição, com 50 artistas reunidos em um casarão na beira do lago para criar histórias em quadrinhos individuais de 24 páginas dentro de 24 horas.

Você é autor de livros sobre o tema. Pode contar um pouco sobre o processo de publicação e as escolhas editoriais que levaram ao Pequeno manual da reportagem em quadrinhos?

O primeiro livro sobre (o gênero da) reportagem em quadrinhos é uma versão da minha tese de doutorado. Foi publicado apenas na Alemanha. Foi ideia do meu editor em Berlim fazer um segundo livro, menor e mais voltado para a prática. Esse livro acabou saindo no Brasil pela editora Arquipélago Editorial.

Aliás, foi um processo editorial bastante inusitado: escrevi o livro primeiro em alemão, depois reescrevi em português para a Arquipélago, que então disponibilizou uma profissional de preparação de texto com quem fiz um longo trabalho de edição, de modo que ao fim do processo “o texto original” precisou ser retrabalho para coincidir com a “tradução”. No fim, o Pequeno manual da reportagem em quadrinhos foi publicado no Brasil no final de 2023, um ano antes que na Alemanha.

Podemos pensar que os quadrinhos projetam imagens do presente que já são ensaio de futuros?

Acredito que um grande potencial dos quadrinhos jornalísticos, especialmente em gêneros como reportagem e perfil, reside em atualizar percepções de fato ocorridos há muito tempo, trazendo-os para o presente. Quando se observa uma fotografia antiga, entende-se que ela traz uma história de outros tempos. Quando se desenha essa imagem, no entanto, é como se ela estivesse acontecendo agora. Fica tudo muito mais vívido e assim é mais fácil se sentir conectado ao fato narrado. Em certa medida, isso pode ajudar a aumentar o grau de empatia diante de acontecimentos históricos.

Quais temas você considera mais urgentes para o jornalismo em quadrinhos no Brasil hoje? Como eles podem apontar para futuros sociais e culturais?

A minha visão é de que o jornalismo em quadrinhos, enquanto área de atuação do jornalismo, pode abarcar qualquer tema: reportagem social, denúncia, jornalismo esportivo, saúde, ciência... tudo isso tem espaço na linguagem dos quadrinhos, cada um a seu modo. Mas, tenho uma predileção por jornalismo cultural e reportagem social, então, gostaria de ver cada vez mais trabalhos nessa área.

Você acredita que os quadrinhos podem democratizar a leitura de realidades complexas, sem cair na armadilha da simplificação?

A linguagem dos quadrinhos pode atrair leitoras e leitores por ser uma linguagem artística, o que tende a contribuir para humanizar uma narrativa. Mas isso pode ser feito com outras linguagens também, inclusive a literatura. É preciso dissociar a linguagem dos quadrinhos da ideia de simplificação. Há obras de quadrinhos muito, muito complexas. Profundidade também é uma característica da linguagem dos quadrinhos.

Como essa linguagem pode formar leitores mais críticos diante de um mundo saturado de imagens instantâneas?

Eu acredito que é potencial da arte, de uma maneira geral, gerar experiências estéticas que ajudem a destacar um fato em meio à enxurrada de imagens instantâneas, como você falou. A arte pode desacelerar o tempo. Além disso, um quadrinho jornalístico deixa explícito que, no processo de desenhar uma cena real, a ou o artista realizou uma transformação do que viu, filtrando a cena a partir das suas próprias percepções. Em certa medida, isso ocorre em todo produto jornalístico midiático, mas esse processo acaba sendo obscurecido em formatos tradicionais, que prezam pela objetividade. Nesse sentido, o fato de um quadrinho jornalístico deixar evidente o processo de mediação pode contribuir para uma formação midiática mais crítica e democrática.

Além dos seus livros, quais obras você recomendaria para os leitores interessados em repensar os modos de ser e estar no mundo?

Ler é sempre muito importante, mas também recomendo visitar galerias, ir a museus, assistir a peças de teatro... Espaços culturais fora da nossa bolha são especialmente recomendados para se repensar esses modos de ser e estar no mundo, como você definiu. Em suma: tudo que proporcione uma experiência de alteridade é enriquecedor.

***

Refletindo sobre a conversa com Paim, penso que jornalismo em quadrinhos é um lembrete de que não basta traduzir a realidade em imagens mais acessíveis: é preciso criar experiências que humanizem, que provoquem e que permaneçam. O traço não simplifica, aprofunda; não apenas ilustra, mas investiga. É nessa dobra entre arte e apuração que se abre um futuro possível para o jornalismo – um futuro em que a memória é também crítica social e em que contar histórias se torna um exercício de alteridade.

*Lu Magalhães é fundadora do Grupo Primavera (Pri, de primavera & Great People Books), sócia do PublishNews e do #coisadelivreiro. Graduada em Matemática pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), possui mestrado em Administração (MBA) pela Universidade de São Paulo (USP) e especialização em Desenvolvimento Organizacional pela Wharton School (Universidade da Pensilvânia, Estados Unidos). A executiva atua no mercado editorial nacional e internacional há mais de 20 anos.

**Os textos trazidos nessa coluna não refletem, necessariamente, a opinião do PublishNews.

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