Em um bate-papo com a coluna Futuros Compostos, Marielen fala sobre como a leitura se entrelaça com práticas de coletivos decoloniais e com um futurismo acessível, que não se restringe a nichos acadêmicos ou elitizados. Leitora perspicaz, com uma curadoria autoral notável, ela compartilha reflexões e livros que podem nos ajudar a exercitar esse músculo tão essencial: o da imaginação como ferramenta de reinvenção do mundo.
Como o estudo sobre o futuro entrou na sua vida?
De certa forma, o pensamento sobre o futuro sempre esteve presente na minha vida. Venho de uma realidade que exigia, desde cedo, muita resiliência e criatividade não só para sobreviver, mas para imaginar formas possíveis de viver. Então, mesmo sem saber, eu já exercitava essa capacidade de imaginar futuros diferentes. Já o estudo do futuro como profissão chegou de forma um pouco mais inesperada. Entrei na Box1824 como freelancer para fazer Desk Research e, aos poucos, fui mergulhando nesse universo. Comecei a entender como organizar sinais, tendências, referências... e transformar tudo isso em projetos que ajudam outras pessoas e organizações a enxergar o que pode vir. E foi aí que me encantei: percebi que pensar o futuro era também uma forma de participar da construção dele.
Você tem falado sobre a “habilidade imaginativa como uma capacidade”, atrelando essa ideia ao pensamento crítico. Você acredita que ambos podem ser desenvolvidos a partir dos livros “consumidos” ao longo da vida?
Sem dúvida! Os livros sempre foram – e ainda são – ferramentas fundamentais na construção do meu pensamento crítico e da minha capacidade imaginativa. Desde adolescente, quando lia muitos livros de fantasia e até hoje, com os romances e as leituras mais densas, como as de filosofia, percebo como cada obra foi moldando o jeito que eu penso, questiono e crio. Os livros não substituem a vivência, claro, mas complementam. A leitura me dá repertório para imaginar outras formas de existência e me oferece linguagem para dar forma às coisas que sinto, vejo e desejo transformar. E acho que isso é uma das coisas mais bonitas dos livros: a de expandir não só o que a gente sabe, mas como a gente pode saber, viver e imaginar o mundo.
É possível aprender sobre o futuro com os livros?
Com certeza! Especialmente sobre o futuro que a gente quer construir. Os livros expandem a nossa imaginação, nos tiram do senso comum e provocam aquele pensamento do "e se...?". Eles nos apresentam outros mundos possíveis e diferentes formas de ver o que já conhecemos. Essa exposição a visões diversas nos ajuda a desenvolver criatividade e senso crítico – as duas chaves fundamentais para pensar o futuro.
Na perspectiva imaginativa, como estima que será o futuro dos livros?
Eu gosto de imaginar (e torço muito!) para que, no futuro, os livros voltem a ocupar um lugar de protagonismo na nossa busca por conhecimento. Em um tempo em que tudo é rápido, superficial e imediato, sinto que estamos perdendo a capacidade de pensar com profundidade. E o livro, com sua pausa, com o tempo que exige da gente, é quase um ato de resistência. Imagino um futuro no qual os livros são mais do que ferramentas de aprendizado – são formas de resgatar modos mais analógicos de pensar, imaginar e se reconectar com a nossa própria complexidade.
O que tem lido ultimamente e quais são os seus hábitos de leitura?
Essa pergunta me fez viajar no tempo! Lembro da minha infância, quando os livros não eram tão presentes na minha casa e, por isso, sempre me brilhavam os olhos os dias de biblioteca na escola – onde eu sempre pegava algo para levar para casa. Esses livros me faziam companhia em momentos de fuga da realidade; eram companheiros nos momentos mais difíceis. Foi só quando comecei a trabalhar como jovem-aprendiz, ali com 14 anos, que passei a comprar meus próprios livros. Desde então, eles se tornaram o meu passatempo favorito. Eu passava horas mergulhada em histórias e gastava quase todo meu salário em coletâneas de fantasia e ficção.
Hoje me considero uma leitora eclética, sem muitas regras. Gosto de explorar temas diferentes e tenho lido bastante filosofia e romances contemporâneos, o que considero um bom equilíbrio entre leitura por prazer e por aprendizado.
Minha rotina de leitura mudou, não tenho mais tanto tempo para ler, mas leio nos intervalos do dia, antes de dormir, sempre que dá. Tenho o hábito de marcar trechos, fazer anotações nas páginas ou em post-its, especialmente nos livros mais densos. E, embora já tenha tentado os e-books, ainda prefiro o livro físico: gosto do papel, do cheiro, da sensação. Acho que isso também vem dos hábitos de quando era mais nova, um canto meu só com livros. Se antes a leitura era minha forma de sonhar com outros mundos, hoje é onde encontro espaço para desacelerar.
Pensando em Literatura e imaginários coletivos decoloniais... A literatura (ficcional ou não) ajuda a construir os imaginários do futuro. Como você vê o papel dos escritores e das editoras nesse processo?
Acho que tanto os escritores quanto as editoras têm um papel muito potente na construção de novos imaginários. Quando penso nos escritores, lembro das tantas vozes incríveis espalhadas pelo Brasil – que muitas vezes não ganham visibilidade por não serem nomes consagrados. Tem muita coisa poderosa sendo escrita que simplesmente não chega às mãos de quem poderia se transformar com aquelas palavras. E aí vejo as editoras como pontes; são elas que podem fazer essa curadoria de pensamentos, expandir o acesso e conectar essas ideias com uma nova geração de leitores e pensadores. A literatura, nesse sentido, é uma força viva de reconstrução de mundo.
Que obras literárias você considera visionárias ou importantes para nos preparar para o amanhã?
Acredito que as obras mais importantes para o amanhã são aquelas que nos reconectam com o essencial: quem somos, por que estamos aqui, e como queremos existir em comunidade. São livros que nos convidam a lembrar, antes de qualquer avanço tecnológico ou projeção futurista, que o futuro também passa por resgatar o que fomos, o que sentimos e o que desejamos preservar. No meu artigo recente para a Box 1824, cito obras como A Terra dá, a Terra quer; A vida não é útil; Vita contemplativa; e O livro africano sem título: Cosmologia dos Bantu-Kongo. Todas elas abrem caminhos para imaginários mais sensíveis e enraizados.
Mas quero também destacar duas leituras muito potentes que considero essenciais: Irmãs do inhame, da bell hooks – que é quase um guia de autoajuda e autoamor para mulheres negras, com reflexões profundas sobre cuidado, cura e novas possibilidades de existência. É um livro que oferece uma nova visão de mundo, partindo do afeto e da liberdade. E Salvar o fogo, do Itamar Vieira Junior, que traz uma narrativa marcada pelo místico e pelo passado, e justamente por isso tão conectada ao futuro. É uma história que nos lembra que os caminhos da espiritualidade e da memória são partes fundamentais da construção de um amanhã possível.
Além dessas obras, sigo acreditando na importância de livros que investigam as grandes questões da existência: o conhecimento, a moral, a linguagem, a razão. São essas leituras que nos ajudam a não nos perdermos de nós mesmos num futuro cada vez mais automatizado e disperso.
Pensando em Futurismo como prática acessível, mas que muitas vezes parece algo distante, acadêmico ou elitizado, como tornar esse pensamento mais próximo das escolas, famílias, organizações?
Essa pergunta é ótima e urgente. Acho que um dos caminhos para tornar o futurismo mais acessível é simplesmente mostrar que outros futuros são possíveis. Vivemos um tempo em que a esperança anda escassa. Não temos grandes expectativas sobre política, educação, economia... e isso afeta profundamente a nossa capacidade de imaginar. Outro dia, conversando com uma amiga, falamos sobre como tantas pessoas apostam em Bets porque é uma das únicas formas de esperança que chega até elas. É um futuro “possível”, mesmo que distante, mesmo que improvável. Isso me fez pensar o quanto precisamos falar de futuros de outro jeito. Trazer a imaginação para dentro das escolas, das casas, dos espaços coletivos. Mostrar que planejar o futuro não é um luxo, é um direito. E que imaginar um amanhã diferente pode, sim, ser o primeiro passo para construí-lo.
Pode nos dar dicas de livros essenciais, na sua visão, para entender o presente – e nos prepararmos para desenhar futuros desejáveis?
Ultimamente tenho buscado leituras que me façam pensar com mais profundidade sobre o mundo que a gente vive – e sobre o que estamos, de fato, querendo construir a partir dele. Tenho lido uma mistura de romances contemporâneos e ensaios mais densos, especialmente livros que abordam filosofia, ancestralidade e práticas de cuidado, temas que, pra mim, têm tudo a ver com imaginar futuros mais desejáveis. Além das leituras que já mencionei, minhas próximas escolhas também revelam muito do que tenho sentido necessidade de investigar.
Pretendo ler A sociedade do espetáculo, do Guy Debord, e Sociedade paliativa, do Byung-Chul Han – dois livros que fazem críticas duras à superficialidade e à lógica da performance que regem o nosso tempo. Tenho sentido vontade de pensar com mais profundidade sobre as estruturas que sustentam esse presente acelerado, e que, muitas vezes, nos impedem de imaginar outros jeitos de estar no mundo. No fim das contas, acho que livros que nos ajudam a fazer perguntas incômodas sobre existência, tempo, linguagem e cuidado são os que mais nos preparam para futuros mais conscientes, coletivos e criativos.
*Lu Magalhães é fundadora do Grupo Primavera (Pri, de primavera & Great People Books), sócia do PublishNews e do #coisadelivreiro. Graduada em Matemática pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), possui mestrado em Administração (MBA) pela Universidade de São Paulo (USP) e especialização em Desenvolvimento Organizacional pela Wharton School (Universidade da Pensilvânia, Estados Unidos). A executiva atua no mercado editorial nacional e internacional há mais de 20 anos.
**Os textos trazidos nessa coluna não refletem, necessariamente, a opinião do PublishNews.
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