Escrevo aqui ainda sob o impacto de duas festas literárias importantes no calendário cultural do país. Emendei os dois eventos e estou zonzo de tanta informação, mas com a memória recente ainda crítica, sobrevivendo ao embalo da vertigem inevitável. Já adianto: o título aqui traz rima, não solução.
Definitivamente, não é possível fazer um balanço geral da Flip. Qualquer tentativa de abordagem vai deixar de fora facetas, notícias, encontros rápidos do tipo “te vi de longe” e, claro, os mais diferentes formatos de programação. Desse modo, o que digo aqui é meramente um recorte, parcial e impreciso, meramente um balanço que, como diz o nome, tem a perspectiva tão pendular quanto a gente tentando andar sobre as pedras da cidade. Para quem é do setor, a Flip é uma momento único de literatura, cachaça e fofoca: uma delícia.
Algo muito interessante é observar como, ao longo dessas décadas, a Flip evoluiu junto com a cena literária brasileira, mesmo porque as curadorias são quase sempre muito antenadas. Gostei de ver mais poesia nas mesas principais. Também é muito positivo ver maior espaço para pequenas editoras, a produção LGBTQIAPN+, negra e indígena, sobretudo quando nos lembramos que as primeiras edições ignoravam a Off-Flip, que lutava no paralelo a fim de levar mais diversidade literária às ruas de Paraty.
Falei em diversas mesas, sempre com uma boa galera assistindo. A Flip é o paraíso nesse aspecto, pois as casas são quase sempre pequenas e lotam fácil. Em alguns casos, filas imensas se estendiam pelas ruas para determinadas mesas. Uma felicidade especial foi ver a Izabella Cristo, primeira vencedora do Prêmio Caminhos, chamada para tantas mesas, indicando que esse concurso feito sem dinheiro mas com muita fé está dando certo, pois consegue abrir caminho para quem precisa e merece.
Em tempo: as inscrições para a segunda edição estão abertas até amanhã, dia 13 de agosto, aqui. Se você quiser dar uma força para o projeto no Catarse clica aqui.
Um momento muito feliz foi dividir uma mesa com Roseana Murray. A autora disse tantas coisas importantes sobre literatura e vida que me trouxe um questionamento antigo, o qual já compartilhei com a organização do evento: a divisão do programa entre “artístico” e “educativo”, se por um lado facilita a distribuição de autores pelos espaços, reproduz um tipo de hierarquia no setor, colocando artistas que trabalham como crianças e jovens como algo menor. Vejo que artístico é educativo e vice-versa, mas com isso não me lembro de ter visto no programa principal da Flip alguém tratando sobre a literatura infantojuvenil, segmento que tem grandes artistas e pesquisadores. Acho que a fala de Roseana Murray teria ecoado muito na tenda maior, tanto quanto o belo e inesquecível momento da ministra Marina Silva.
A Flip nunca flopa, mas também não flupa. Pelas características da cidade, que mensalmente recebe um grande evento turístico, percebo que o grande desafio ali ainda é fazer do evento algo que Paraty sinta como seu. Conversando com o pessoal nas ruas e lojas, mesmo por conta do clube de leitura que criamos para os esquecidos da leitura, percebe-se que a ideia de promoção do livro e da leitura não adentra muito nas classes populares, ainda que algumas atividades bem legais, perto do evento, se voltem para escolas públicas.
Mas sejamos justos: não se pode esperar que o evento sozinho supra essa lacuna formativa de base, que é da política pública.
A cidade que sedia o mais importante evento literário do país merecia ter um exemplar programa de leitura oferecido pelo Estado. O lance é que, como acontece país adentro, políticos estão mais preocupados em marcar presença nas festas literárias para fotos, quando deveriam atuar no grande intervalo entre uma e outra edição. Tenho esperança de que a situação melhore nesse aspecto, e seguimos tentando ajudar no que for possível. Em parceria com a TAG Livros, doamos um catatau de livros para o Cembra (uma escola pública importante da cidade), levando escritores de origem similar à dos alunos, que vibraram.
Ainda que o Pelourinho seja um ponto turístico, o fato de se localizar num centro urbano facilita na construção de uma programação para a cidade e as classes populares. Desde a primeira edição, fico bem feliz de ver na plateia um mix de estudantes, professores, artistas, turistas (até uns que mal compreendem português), catadores de latas e até pessoas em situação de rua. Não me lembro de um evento com público tão democraticamente acolhido.
Se no passado aquele território teve como marca o horror da escravidão, foi ressignificado e hoje é palco de muitas celebrações da vida e da liberdade. Vários colegas escribas que foram pela primeira vez à Flipelô me disseram como se sentiam arrebatados por um tipo de energia local. Religiosos ou não, todos parecem tocados pelo afeto natural do povo baiano somado ao ritmo e às cores que parecem nos invadir naquelas ladeiras.
Na festa do Pelourinho tudo é gratuito e não há, para o público, diferença entre programação principal e paralela. Existe mais uma diferenciação entre espaços adequados para as características de cada público. Por exemplo, toda a programação para crianças está numa grande área subdividida. Autores mais “pop” tendem a se apresentar em espaços maiores. Mas nada impede que uma contação de histórias aconteça no mesmo teatro onde fala Lázaro Ramos.
Do lado de fora do balcão, posso finalmente participar da Flipelô como autor. Fiz atividades para crianças, com poesia, mediei debates sobre meninas e mães. Uma lembrança que vou levar foi a mediação do papo sobre samba com o camarada Luiz Antônio Simas. No palco aberto para a praça, fiquei comovido com a visão de centenas de pessoas quase hipnotizadas assistindo a um professor dar uma aula de História às 18h de uma sexta-feira. É de renovar a esperança num mundo em que perguntam em sala de aula se a professora trabalha ou só dá aula. Cômico, não fosse trágico pacas.
Por fim, em meio ao cansaço, fica a celebração desses dois grandes eventos. Com suas características e importâncias no nosso calendário cultural, durante a Flip gosto de divulgar a Flipelô e vice-versa. Como bem disse o Simas citando o compositor Beto Sem Braço, "o que espanta a miséria é festa".
Henrique Rodrigues é diretor do Instituto Caminhos da Palavra, voltado para a promoção do livro, leitura e escrita. Com mais de duas décadas de experiência na área, é coordenador geral do Prêmio Caminhos de Literatura e curador do Prêmio Pallas de Literatura. Nascido no subúrbio do Rio de Janeiro, formou-se em Letras pela Uerj, cursou especialização em Jornalismo Cultural pela Uerj, mestrado e doutorado em Letras pela PUC-Rio. Já foi atendente de lanchonete, balconista de videolocadora, professor, superintendente pedagógico da Secretaria de Estado de Educação do RJ, coordenador pedagógico do programa Oi Kabum! e gestor de projetos literários no Sesc Nacional. Publicou 24 livros, entre poesia, infantil, conto, crônica, juvenil e romance, tendo sido finalista do Prêmio Jabuti duas vezes. É patrono de duas salas de leitura das escolas públicas onde estudou. www.caminhosdapalavra.com.br
** Os textos trazidos nessa coluna não refletem, necessariamente, a opinião do PublishNews.
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