O último mês foi intenso e, pelo que percebo, está todo mundo correndo, mesmo sem saber tanto para onde ou de quê. Desse modo, vou fazer um difícil exercício de síntese e trazer alguns destaques – ou highlights, como faz o pessoal que usa anglicismos bobos para valorizar o passe no melhor estilo “saiba que eu tenho approach”. (Por favor, colegas escritores, não se tornem writers...)
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Sobre censura. Os casos de cerceamento a autores e livros continuam firmes e fortes. O caso da Milly Lacombe repercutiu, outros convidados debandaram e o evento foi adiado. E lá vieram as mesmas notas de repúdio à censura de todo mundo, sobretudo de instituições e governo. O lance é que estamos apenas reagindo à censura depois que ela acontece, e nos casos que são divulgados. Mas são poucos os que vêm à tona, e o problema é exponencialmente maior: muitas escolas recebem livros e deixam num canto por ordem superior, secretários de educação censores, país adentro, estão determinando o que pode e o que não pode ser lido, reacionários da pior marca (pleonasmo?) chefiam autarquias, cujos funcionários não divulgam as proibições por medo de perder o emprego, e por aí vai. Creio que deveria ser criada uma campanha ampla e séria de combate a essa doença cultural, mesmo porque postar nota de repúdio quando um caso repercute lembra o que o Quintana disse: a experiência é o médico que chega quando o doente já morreu.
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Sobre as crianças e a leitura. Escrever para crianças é difícil, mas depois que você engrena descobre que esse é o público leitor mais sincero e aberto a entrar no jogo da literatura. Não por acaso, boa parte de projetos de leitura é voltada para essa faixa etária, em função dessa recepção (ou engajamento, para você aí que gosta desse léxico da moda). Mas mesmo as diferentes infâncias são complexas e requerem abordagens muitas vezes específicas, de modo a respeitar a etapa e o contexto de cada grupo. Cada vez mais sinto que é muita responsabilidade apresentar literatura para quem está em formação, de cuca e coração abertos para receber uma narrativa ou poema. Aprendi um pouco mais sobre isso ao conversar sobre um livro que publiquei sobre dente de leite com a crianças em Foz do Iguaçu semanas atrás. Algumas inquietações e crueldades da vida são muito mais bem recebidas por crianças do que por adultos, vale dizer. (Nota mental para, numa próxima coluna, falar sobre alunos idosos de Educação de Jovens e Adultos que (re)descobrem a leitura literária, algo igualmente apaixonante e que precisa ser levado mais a sério.)
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Sobre as mediações de leitura. Lemos, com felicidade, que o PNLL está caminhando para ser sancionado pelo governo federal. A ideia de uma ação durante 10 anos pode ser muito boa, podendo ser ajustada e melhorada no período. Meu receio é que se torne mais um documento que se distancia da prática diária, mais como uma carta de boas intenções do que uma lei cujo não cumprimento deveria gerar consequências aos responsáveis. Por exemplo, na nossa área temos a Base Nacional Curricular Comum, que aponta belamente sobre possibilidades de ensino, mas na prática a maioria das escolas está presa ao modelo antigo e travado de “Barroco, Arcadismo, escansão de verso de Camões etc”, e o Ensino Médio, onde a situação está periclitante, tem se tornado um pré-ENEM. Outra lei pessimamente cumprida é a 10639/03, que obriga o ensino de história e cultura afro-brasileira nas redes privadas e públicas: segundo pesquisa recente, mais de 70% dos municípios fazem pouco ou nada a respeito. Voltando ao caso do PNLL, existe um ótimo guia (feito pelo mestre José Castilho) para as implantações dos planos municipais e estaduais. Mas e aí, o que acontece se tudo for amplamente ignorado, considerando o quadro de mequetrefes citado aqui no primeiro tópico? Conforme falei numa mesa com o Secretário de Formação, Livro e Leitura do Ministério da Cultura (MinC) Fabiano Piúba, o eixo de formação de mediadores é o mais frágil e desafiador de emplacar como política pública, pois está atrelado ao formato de base do trabalho, cotidiano, que não tem palco. Temos pouco esclarecimento geral de que a mediação é uma etapa fundamental e que precisa de muito investimento. Há um tempo, fiz uma formação para mediadores de leitura numa cidade, e surgiu uma ordem para criar, a qualquer custo, um evento de repercussão visual, porque um mandachuva local precisaria aparecer. Como já disse em outras ocasiões, é por essas e outras que existe tanta festa literária e nenhum programa de leitura amplo voltado a mediadores no país: o saneamento básico não dá voto nem marketing.
Sobre edital de cultura e a cultura do edital. Vivemos a era dos editais, formato democrático e, em tese, acessível para a distribuição de recursos privados e públicos. Segundo os setores jurídicos de empresas e instituições públicas, esse formato de concorrência resolve todo o problema. Ainda que esteja certo em parte, na prática esse canal tem trazido algumas dificuldades. A primeira é o excesso de burocracia, fazendo um coletivo de poetas ser tratado como um fornecedor de obras de metrô. Já sofri muito tentando facilitar esses trâmites para artistas, mas é um clássico brasileiro que setores administrativos criem empecilhos para artistas, sobretudo os menos favorecidos. Não será surpresa se, em breve, pedirem certidão de óbito dos artistas: ordem do jurídico. Outro problema é o formato anual de editais, que impede o amadurecimento de projetos. É como se, por exemplo, uma comunidade leitora recebesse apenas o piloto de uma ideia. Em termos formativos, o que dá errado não pode ser ajustado para a etapa seguinte; se der certo, impede a perspectiva de um trabalho de continuidade que seja realmente efetivo. Despertar leitores nem é tão difícil, mas mantê-los acordados é que são elas. No fim, voltamos às políticas públicas.
Sobre a cadeia do livro e quem não lê chongas. Dia desses, estive num debate universitário com Luciana Villas-Boas, minha primeira editora à época e hoje uma importante agente literária. Demos uma geral nas últimas décadas do livro no Brasil: crises constantes, dificuldades logísticas, facilidades aparentes da era digital, o fechamento das grandes livrarias, o crepúsculo da crítica e a aurora dos influencers, o papel das pequenas, médias e grandes, editoras, os prêmios literários. Mas sempre fico com aquela sensação de que estamos falando para nós mesmos, num grupo cada vez menor. O Millôr dizia que uma coisa é cult quando não tem adeptos suficientes para compor uma minoria. É por essas e outras que, em minha humilde opinião (afinal, sou o escritor mais famoso do meu prédio), precisamos sair do nosso próprio perímetro, trabalhar menos pelos leitores e mais pelos não-leitores. Mas também não cair no erro de acreditar que as pessoas que podem entrar no universo da leitura são tabula rasa esperando ser conduzidos por toda sorte de ações de marketing, como se vê nas bienais de livro, onde costuma haver mais plateia consumidora do que povo em formação, como disse mais ou menos o Lima Barreto. Em escolas e eventos literários, onde sempre tento falar para esse público de “não-leitores”, tenho concluído que foi replicado no mundo dos livros o mesmo processo de invisibilização da sociedade em geral: merendeiras, pessoal de limpeza, gente de trás do balcão fica de fora. Eita, que elite intelectual besta a nossa! Minha hipótese é que esses serão os próximos leitores de literatura, e será dessa gente que virão grandes histórias e expressões poéticas.
E eu com isso? Tudo! Um lance de trabalhar numa área é que, quanto mais o tempo passa, mais a gente se inquieta com o que pode ser melhorado. Reclamar não basta, mesmo porque chato reclamão de braços cruzados tem um monte, basta olhar no Instagram. Se estão por aí censurando prêmios e autores, a gente fez o Prêmio Caminhos de Literatura, cujo resultado da segunda edição está para sair, livre de dirigentes homofóbicos e com critério claro de seleção para dar oportunidade a autores inéditos. Em tempo: credibilidade se conquista, não se compra. (No máximo se aluga, mas o pessoal sabe a diferença.) Estamos oferecendo uma formação bacanuda sobre mediação de leitura, inclusive o módulo com a escritora Sônia Rosa sobre diversidade e negritudes está com inscrições abertas, e professores têm desconto. Se a literatura está se abolhecendo, criamos o projeto Livro a Caminho, que leva leitura, educação editorial e rap para as escolas. Tentamos trabalhar para dar voz a quem foi silenciado historicamente. Nessa onda, fico feliz por ir a Portugal lançar um romance sobre uma empregada doméstica negra, baseado em histórias das mulheres da minha família, para poder dizer como as sequelas da escravidão colonial ainda são tão profundas nas nossas vidas. A gente teve ministro boçal que se incomodava de empregada ir à Disney, pensamento que, não nos enganemos, também é presente numa parte da intelligentsia que se afirma progressista mas, não raro, é umbilical, quando não machista e racista nos bastidores. São alguns jornalistas, editores e curadores, cercados de puxa-sacos facilmente compráveis. Essa elite também deve aceitar: um grupo grande, que passou a vida como serviçal, está com autonomia por aí, publicando e contando suas histórias, sem se curvar, irreverente, na melhor etimologia da palavra.
Henrique Rodrigues é diretor do Instituto Caminhos da Palavra, voltado para a promoção do livro, leitura e escrita. Com mais de duas décadas de experiência na área, é coordenador geral do Prêmio Caminhos de Literatura e curador do Prêmio Pallas de Literatura. Nascido no subúrbio do Rio de Janeiro, formou-se em Letras pela Uerj, cursou especialização em Jornalismo Cultural pela Uerj, mestrado e doutorado em Letras pela PUC-Rio. Já foi atendente de lanchonete, balconista de videolocadora, professor, superintendente pedagógico da Secretaria de Estado de Educação do RJ, coordenador pedagógico do programa Oi Kabum! e gestor de projetos literários no Sesc Nacional. Publicou 24 livros, entre poesia, infantil, conto, crônica, juvenil e romance, tendo sido finalista do Prêmio Jabuti duas vezes. É patrono de duas salas de leitura das escolas públicas onde estudou. www.caminhosdapalavra.com.br
** Os textos trazidos nessa coluna não refletem, necessariamente, a opinião do PublishNews.
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