O surgimento de um novo hábito, conduta ou tecnologia geralmente é sucedido por tentativas de contorná-lo ou alterar sua função.
Nos artigos Papel, tela, fone de ouvido; Domínio público e voz; Escute... e leia! e A voz do livro, o livro da voz, tive como tema a voz no mercado editorial.
Destaco o primeiro deles, Papel, tela fone de ouvido no qual disse serem os earphones a nova longa auris, uma extensão dos ouvidos do ser humano, que captam os sons por aquele acessório, conectado aos seus e-readers, audiobooks e Spotify.
Também naquela coluna falei do discurso que John Kennedy tinha pronto, datilografado, no dia de seu assassinato, que posteriormente foi “lido por ele” através da inclusão e processamento de gravações de sua voz num computador, que sintetizou os sons e “pronunciou” o texto por ele criado.
Pois essa onda vocal já começa a sofrer os efeitos da irrefreável tendência humana de descobrir o atalho, o contorno, ou mau uso de novas tecnologias.
Notícia publicada ontem (12.07.21), no jornal britânico The Guardian, informa que a sofisticação do processo de criação de vozes artificiais torna a ficção científica realidade. Já é possível a reprodução, em máquinas, dos sons da voz humana, inclusive em outros idiomas, com variações a respeito de entonação, velocidade, timbre, sotaque, respiração e também a expressão de sentimentos vocais, como alegria, ira e frustração, dentre outros.
O espectro de produtos benéficos é quase tão grande quanto o de efeitos nocivos. A nova tecnologia pode, num mundo em que o reconhecimento vocal serve como fator de identificação humana, comprometer a segurança de conversas telefônicas, diálogos por aparelhos, autorização de operações financeiras, abertura de fechaduras eletrônicas e muito mais.
Já falei em outra coluna do Spinbot (Spinbot, o robô do mal), o robô que disfarça a escrita, criando novos textos do próprio autor, ou de terceiros, facilitando o autoplágio e o plágio. A nova tecnologia sonora (re)cria a voz de terceiros, podendo permitir a obtenção de informações confidenciais, forjar discursos (parênteses para a lembrança da cena final d'O Grande Ditador e o discurso de Chaplin), simular conversas, alterar conteúdo.
O mercado começa a acordar para o NFT (Non Fungible Token) e os problemas da autenticidade da obra artística visual, área em que as falsificações proliferam. Agora também a obra sonora corre maiores riscos de falsificações.
O museu Salvador Dali, de Saint Petersburg, Florida / EUA recriou, por meio da superposição de imagens e vozes, um filme do genial artista, que ele nunca fez nem interpretou, dando boas-vindas ao visitante da exposição sobre seu trabalho.
O hoje sofisticado site VOCALiD criado pela renomada Professora de Comunicação e Linguagem Rupal Patel, da North Eastern University de Boston, usa algoritmos e dá vários e impressionantes exemplos dessa recriação de vozes!!! Ela visa a corrigir disfunções de fala e das próteses vocais, porém o mau uso desse mecanismo pode causar grandes danos a direitos de intérpretes e autores.
O holograma desponta como quase uma realidade nas experiências artísticas, como no famoso desfile de Alexander McQueen, interpretado por Kate Moss. É a criação artificial, do artífice, alcançando o produto da natureza.
Outra preocupação é a cópia de ordens para os assistentes de voz, tão em moda: “Destranque as portas da casa, Alexa!”, “Transfira dinheiro para fulano!”.
Agora surge o risco do audiolivro fake, no camelô, com a voz original copiada, ou com uma voz que nunca tivera narrado o texto original.
Ainda acho que, se há cambista, o espetáculo é bom. Não me recordo de acidente ou assalto a caminhão de transportadora de livros, em que o conteúdo tenha sido saqueado pelos moradores de qualquer grupo, seja bairro de luxo, seja a mais simples comunidade.
Mas a onda de audiobooks pode sofrer, com essa descoberta, significativa ameaça, que exige algum controle da autenticidade da voz.
Já mencionei no último artigo que a Constituição e a Lei brasileira de direito autoral (Lei 9.610/98) protegem a voz dos intérpretes:
“Art. 90. Tem o artista intérprete ou executante o direito exclusivo de, a título oneroso ou gratuito, autorizar ou proibir:
I - a fixação de suas interpretações ou execuções;
II - a reprodução, a execução pública e a locação das suas interpretações ou execuções fixadas;
III - a radiodifusão das suas interpretações ou execuções, fixadas ou não;
IV - a colocação à disposição do público de suas interpretações ou execuções, de maneira que qualquer pessoa a elas possa ter acesso, no tempo e no lugar que individualmente escolherem;
V - qualquer outra modalidade de utilização de suas interpretações ou execuções.
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§ 2º A proteção aos artistas intérpretes ou executantes estende-se à reprodução da voz e imagem, quando associadas às suas atuações.
Novos e grandes desafios para a tecnologia!
Gustavo Martins de Almeida é carioca, advogado e professor. Tem mestrado em Direito pela UGF. Atua na área cível e de direito autoral. É também advogado do Sindicato Nacional dos Editores de Livros (SNEL) e conselheiro do MAM-RIO. Em sua coluna, Gustavo Martins de Almeida aborda os reflexos jurídicos das novas formas e hábitos de transmissão de informações e de conhecimento. De forma coloquial, pretende esclarecer o mercado editorial acerca dos direitos que o afetam e expor a repercussão decorrente das sucessivas e relevantes inovações tecnológicas e de comportamento. Seu e-mail é gmapublish@gmail.com.
** Os textos trazidos nessa coluna não refletem, necessariamente, a opinião do PublishNews.
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