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Domínio público e voz
PublishNews, Gustavo Martins de Almeida, 16/10/2018
Em sua coluna, Gustavo Martins de Almeida analisa, sob o ponto de vista jurídico, dois assuntos: Domínio público e a explosão dos audiolivros

A sucessão de novidades na área cultural me estimula a escrever um artigo por semana, mas os prazos que oprimem o advogado impedem essa tarefa. Assim sendo, vou condensar aqui dois itens relevantes na recente história do direito e mercado editorial: o domínio público e os audiolivros.

Domínio público. Sobre o domínio público, o jornal O Estado de S. Paulo do último dia 22/09 noticiou a renovação do contrato de edição da obra de Graciliano Ramos com a Editora Record, salientando que, por força de lei especial, os direitos autorais não entrariam em domínio público 70 anos após a morte do autor, mas sim quando sua filha mais nova falecesse, ainda que após as sete décadas.

A análise jurídica do tema mostra algumas singularidades da fértil relação direito-literatura. Graciliano morreu em 1953, quando o art. 649 Código Civil vigorava com a seguinte redação:

Art. 649. Ao autor de obra literária, científica, ou artística pertence o direito exclusivo de reproduzi-la.

§ 1º Os herdeiros e sucessores do autor gozarão desse direito pelo tempo de sessenta anos, a contar do dia do seu falecimento.

§ 2º Morrendo o autor sem herdeiros ou sucessores, a obra cai no domínio comum.

Em 1955, Luiz Vianna Filho, que fora eleito para a Academia Brasileira de Letras em 1954, e deputado federal pela Bahia apresenta projeto de lei com base na ideia da “perpetuidade dos direitos autorais... enquanto houver filho vivo”, e cita os casos de Strauss, José de Alencar e Visconde de Taunay. Nesse período, Juscelino Kubitschek tomou posse como presidente (31/01/1956) e estimulou muito a indústria editorial (cf. Laurence Halleywell, A História do Livro no Brasil, EDUSP, 2ª ed. P. 532). Exemplo desse apoio consiste na sanção da lei 3.447, de 23/10/1958, que acrescenta o seguinte parágrafo ao art. 649 do Código Civil:

§ 3º No caso de caber a sucessão aos filhos, aos pais ou ao cônjuge do autor, não prevalecerá o prazo do § 1º e o direito só se extinguirá com a morte do sucessor.

Ou seja, os direitos autorais não vigorariam somente por 60 anos após a morte do herdeiro, mas, se fosse filho, até a sua morte, ainda que ultrapassado aquele prazo.

Em 1973 é promulgada uma lei específica sobre direito autoral, a lei 5.988, que manteve essa disposição, explicitando:

“Art. 42. Os direitos patrimoniais do autor perduram por toda sua vida.

§ 1º Os filhos, os pais, ou o cônjuge gozarão vitaliciamente dos direitos patrimoniais do autor que se lhes forem transmitidos por sucessão mortos causa.

§ 2º Os demais sucessores do autor gozarão dos direitos patrimoniais que este lhes transmitir pelo período de sessenta anos, a contar de 1º de janeiro do ano subseqüente ao de seu falecimento.”

Em 1998, a atual lei de direitos autorais (lei 9.610) aumenta o prazo para queda em domínio público dos direitos para 70 anos após a morte do autor (art. 41), que até hoje vigora, mas suprime a questão da vitaliciedade dos direitos autorais, em caso de sucessão para filhos.

Pode-se dizer, então, que a alteração do Código Civil de 1958, que aumentou o prazo de vigência de direitos autorais em caso de sucessão para filhos, beneficiou os herdeiros de Graciliano Ramos, apesar do autor ter falecido em 1953, antes da sanção da lei. Penso que não é uma interpretação pacífica – pode-se dizer que a lei posterior não se aplicaria – mas não vou abrir discussão sobre o tema neste local.

Sobre prorrogação de prazo de vigência de direitos autorais, submeto um caso curioso. O mesmo Juscelino Kubitschek sancionou, em 18/4/1957, a lei 3.126, que dizia:

“Art. 1º Fica dilatado, por um decênio, a contar de sua expiração, o prazo para a fruição, pelos herdeiros, dos direitos autorais das obras do maestro Antônio Carlos Gomes.”

Carlos Gomes faleceu em 1896, antes da entrada em vigor da Lei 496/1898, que estipulava a manutenção dos direitos autorais por 50 anos após a publicação da obra (art. 3º), e o Código Civil, de 1916, alterou esse prazo para 60 anos após a morte do autor. Numa interpretação conjunta das leis de 1898 e 1916, a obra de Carlos Gomes entraria em domínio público em 1956, mas a lei de Juscelino prorrogou esse prazo por mais 10 anos.

Curiosamente em 11 de dezembro de 1968, dois dias antes do malsinado AI-5, que dentre outros abusos estipulava censura imotivada, o Marechal Costa e Silva promulga a lei 5.558, determinando, paradoxalmente, que:

“Art. 1º. É renovada, por cinco anos, a contar da expiração do prazo estabelecido pela Lei nº 3.126, de 18 de abril de 1957, a garantia da fruição, pelos herdeiros, dos direitos autorais das obras do Maestro Antônio Carlos Gomes.”

Portanto, concederam-se na verdade 75 anos de validade dos direitos autorais sobre a obra de Carlos Gomes para a sua família.

Essas prorrogações são circunstâncias peculiares, que confrontam, de um lado, o interesse da família em tirar justo proveito da obra criada por autor, que nem sempre conheceu a fama e remuneração adequada em vida, e de outro, o interesse público em usufruir livremente de obra fruto da cultura aliado ao intelecto. Essa a constante tensão contemporânea, às vésperas de 2019, ano em que Monteiro Lobato entra em domínio público.

A tormentosa matéria da extensão dos direitos autorais ganha contornos mais fortes no EUA (Copyright Term Extension Act), tudo indica por conta do temor da queda em domínio público dos personagens de Walt Disney, mas isso é assunto para outro(s) artigo(s). Apenas acrescento, já no forno este texto, que em 11.10.2018 Presidente Donald Trump assinou a lei chamada Music Works Modernization Act -MWMA, com enormes alterações protetivas ao sistema musical norte-americano, inclusive reflexos no sistema de streaming, e na qual se destaca a chamada blanket license, licença cobertor que abrange inúmeros direitos e hoje tende a se constituir padrão no mercado fonográfico. Breve novos capítulos do assunto.

Voz e literatura. No meu último artigo no PublishNews, Papel, tela, fone de ouvido, de 19/7/2018, escrevi sobre a voz como novo meio de transmissão de conhecimento e os audiolivros. Acho que intuí bem, pois na semana passada, na Feira de Frankfurt, noticia o trepidante jornalista Leonardo Neto; “Markus Dohle, CEO da Penguin Random House fez a seguinte declaração durante uma conferência em Barcelona: ‘Audiolivros são o futuro. Em menos de sete anos, mais de 50% das vendas digitais da Penguin Random House virão dos audiolivros’. E, de fato, em alguns mercados, os audiolivros têm ganhado força, crescido a dois dígitos por ano e conquistado milhares de leitores. Não à toa, uma das grandes novidades para esta edição da Feira do Livro de Frankfurt foi justamente a sua Audiobook Conference que reuniu cerca de 200 editores internacionais na manhã desta quarta-feira.”

Este ano de 2018 a gravadora alemã Deutsche Grammophon comemora 120 anos de sua fundação em Hannover e no Brasil completam-se 140 anos (1878) da primeira apresentação do fonógrafo no Brasil, no Rio de Janeiro, no Edifício da Escola da Freguesia da Glória, para fins pedagógicos (Humberto Franceschi, Registros sonoros por meios mecânicos no Brasil. Rio de Janeiro: Studio HMF, 1984). Tecnologia recentíssima, se comparada à descoberta dos tipos gráficos.

Vivemos numa sociedade em que, como afirma Gilles Lipovetsky “os momentos são vividos num regime de urgência” e que “não se suporta a espera na caixa do supermercado ou as lentidões do computador”; é o mundo do “homo consumericus”, mas que vai enfrentado resistências para se conseguir o equilíbrio do “imperativo de qualidade aplicado às artes de massa, à vida cotidiana...” (A estetização do mundo).

Em contraponto, a escuta de livros pode ser um casulo, uma imersão em texto, no meio da loucura da vida moderna e que ainda proporciona, como salientei no artigo de julho, oportunidades para narradores, a exemplo da plataforma AHAB (que congrega narradores de livros para possível contratação por renomadas editoras). A poderosa Screen Actors Guild - American Federation of Television and Radio Artists também atua no setor de orientação de contratação de narradores, assim como a Booklava se expande no mercado árabe de audiolivros. Como diz a professora Marisa Lajolo sobre a narração, “...restaura a importância dos sinais de pontuação, aquelas coisinhas às quais nem sempre se dá a importância devida... penso que elas sugerem silêncios, pausas e entonação”. Essa reflexão traz à lembrança as radionovelas, do tempo da transição do radio para a televisão.

Juntando todos esses aspectos com a primeira parte do artigo, a pergunta que pode ser feita é: a voz vinculada a narração de um livro, cai em domínio público?

A princípio, quem publica um audiobook d’ Os Maias tem exclusividade sobre a reprodução da voz do narrador pelo período do contrato de edição. Findo o contrato, não se poderia mais utilizar o arquivo, nem conceder novas licenças. Outro ponto consiste na tendência da voz comandando os aparelhos de comunicação, o que desocupa as mãos e facilita atividades paralelas. Google Assistant, Siri, Echo e Alexa (confiram no Google) são as novas secretárias domésticas, que controlam a iluminação, chamam táxi, reservam restaurante, ainda fazem ligações, recitam poesias, e muito, muito mais.

São novos desafios, que põem em destaque a profissão do narrador, sempre ameaçada pela oferta de vozes sintéticas, e afetam a ergonomia, já que cada vez mais usa-se menos o teclado.

O livro ainda é o reduto do aprendizado individual, seja pela leitura visual, seja pela audição. Novos hábitos, novas tecnologias – até um caso de holografia na Feira de Frankfurt esse ano - novos desafios, muita informação fluindo, o que exige bons contratos, para delinear adequadamente os direitos das partes envolvidas.

Gustavo Martins de Almeida é carioca, advogado e professor. Tem mestrado em Direito pela UGF. Atua na área cível e de direito autoral. É também advogado do Sindicato Nacional dos Editores de Livros (SNEL) e conselheiro do MAM-RIO. Em sua coluna, Gustavo Martins de Almeida aborda os reflexos jurídicos das novas formas e hábitos de transmissão de informações e de conhecimento. De forma coloquial, pretende esclarecer o mercado editorial acerca dos direitos que o afetam e expor a repercussão decorrente das sucessivas e relevantes inovações tecnológicas e de comportamento. Seu e-mail é gmapublish@gmail.com.

** Os textos trazidos nessa coluna não refletem, necessariamente, a opinião do PublishNews.

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