Lá se foram duas décadas em que os eventos literários se multiplicaram país adentro. O boom das festas pelo país, com seus diferentes portes, temáticas e configurações, criou um cenário que é repleto de paradoxos. De fato, quem é de fora custa um pouco a entender como funcionam as engrenagens da área do livro e da leitura. Quase toda vez que converso com alguém não iniciado no setor acabo ouvindo “não entendi como funciona, pois não parece sustentável”.
Quando comecei a trabalhar na área, primeiramente como professor e depois em gestão cultural, a cena era bem diferente. Apocalípticos diziam que aquela tal internet iria matar os livros. Eis que a própria internet se tornou o maior canal de divulgação de textos literários. Ainda era difícil publicar um livro, por isso meus contemporâneos de geração usaram e abusaram dos blogs, em cujas caixas de comentários aconteciam, entre uma e outra brincadeira, grandes fóruns de discussão. Eis o primeiro paradoxo: com o fechamento dos blogs, todos esses registros se perderam. Comecei a entender, olhando meus disquetes com arquivos importantes, que o digital prometia o eterno, mas nem passaria do próximo inverno.
A tecnologia evoluiu, fomos publicados por editoras pequenas, médias e grandes. Em todas elas, os livros estão cada vez mais bonitos. Vimos toda uma nova geração surgindo, imersa nas possibilidades das redes sociais que, ao resumir as formas de expressão aos seus parâmetros e algoritmos, começaram a dar o tom dos modos de se divulgarem livros. Nem vou entrar nesse vespeiro (agora, mas aguardem), mas esse cenário apenas evidenciou o segundo paradoxo: que temos grande lacuna na complexa e fundamental área de mediação.
A derrocada da mídia tradicional como espaço de conquista de leitores é um fato: há umas décadas, ser resenhado num suplemento literário significava que sua obra seria procurada por muita gente; hoje ter o livro mencionado num quadradinho de grande jornal funciona apenas como uma conquista simbólica para postar. Gostando-se ou não, a bola da vez está com os booktokers/influenciadores, com toda a sua variação em termos de qualidade. Os espaços e mimos recebidos nas últimas bienais o confirmam.
A grande festa indica que temos, sim, um mercado imenso de pessoas interessadas em livros no geral. Existem cerca de 320 eventos literários no país. É animador ver centenas de milhares lotando pavilhões. Alguns escritores no evento me disseram que boa parte do público estava ali mais pelo acontecimento festivo e para postar fotos com fadas e cavaleiros do que pelo interesse genuíno do assunto. Discordei, naturalmente, mesmo porque não há nada de errado em gostar de livros de fadas e cavaleiros. Mas só achei estranho ver o truculento candidato à prefeitura de São Paulo ir ao evento e dizer que vai proibir livros e sair ovacionado, e não com ovos na cabeça – o futuro lhe reservaria algo mais pesado. Mediei um debate lá sobre esse a censura a livros, esse fantasma que, lenta e continuamente, está corroendo a ideia de leitura literária em todo o país. O aumento da área de livros religiosos me fez lembrar de um quadro perigoso que vi Brasil adentro: em muitas cidades, num raio de quilômetros, a única livraria existente é religiosa, fazendo com que a ideia de leitura deixe de ser uma atividade aberta e rica para ser dogmática.
Não tenho dados precisos, mas parece que o número de leitores de literatura brasileira, se não encolheu, é o mesmo há muitas décadas. Recentemente, foi publicado aqui que o faturamento do setor de livros caiu 43% de 2006 para cá. Alerta de paradoxo: se temos tanto livro publicado, tanta gente interessada lotando eventos, por que não existe um sistema sadio e farto no comércio de livros? Por que o boom dos eventos literários, em duas décadas, não conseguiu formar leitores, que seria o seu grande objetivo? Para onde vai toda essa multidão entusiasmada quando se encerram as feiras?
Não, não creio que 700 mil pessoas hibernem para a leitura. Mas me lembro daquela frase de fim de ano: o que engorda não é o que você come entre o Natal e o réveillon, e sim entre o réveillon e o Natal. Daí que volto a dizer: os eventos literários são maravilhosos, mas eles sozinhos não criam práticas de leitura regulares, tampouco a valorização moral e financeira da nossa produção.
Sem políticas públicas eficazes, sem investimentos privados nas ações de mediação, nos clubes de leitura, nas bibliotecas públicas, nas intervenções poéticas, sem apoio aos saraus e slams, sem atenção à formação de leitura literária dos professores, passarão mais duas décadas e continuaremos com os mesmos indicadores vergonhosos e nada instagramáveis: em algum momento, nem os filtros vão dar conta.
Henrique Rodrigues nasceu no subúrbio do Rio de Janeiro, em 1975. É curador de programações literárias e consultor para projetos e programas de formação de leitores. Formou-se em Letras pela Uerj, cursou especialização em Jornalismo Cultural pela Uerj, mestrado e doutorado em Letras pela PUC-Rio. Já foi atendente de lanchonete, balconista de videolocadora, professor, superintendente pedagógico da Secretaria de Estado de Educação do RJ, coordenador pedagógico do programa Oi Kabum! e gestor de projetos literários no Sesc Nacional. É idealizador do Prêmio Caminhos de Literatura e curador do Prêmio Pallas de Literatura. Publicou 24 livros, entre poesia, infantis, juvenis e romances. www.henriquerodrigues.net
** Os textos trazidos nessa coluna não refletem, necessariamente, a opinião do PublishNews.
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