Há uns bons anos, quando estudei Letras, havia uma nova disciplina chamada Leitor em Formação. O conteúdo era, basicamente, entender não só a função do texto, mas a dos leitores, de modo a se abrirem possibilidades de entendimento básico sobre poemas, contos, crônicas e outras categorias. Foi a primeira vez que entendi o conceito de mediação de leitura, que hoje se faz cada vez mais necessária diante dos sérios problemas que estamos enfrentando na área.
Em 1975, quando nasci, foi lançado o livro de contos Feliz ano novo, de Rubem Fonseca. O livro foi censurado em 1976. Segundo o ministro da Justiça, Armando Falcão, a obra atentava contra “a moral e os bons costumes”. Terminado o regime militar, o termo passou a ser usado de forma irônica, atrelado a algo antigo e ultrapassado. Mal sabíamos que, em plena democracia, a proibição de diferentes literaturas iria voltar, com força e de todos os lados.
Mas o interessante é que, em ambos os casos, tem-se a mesma desculpa da proteção das criancinhas, assim como o prefeito Marcelo Crivella tentou censurar uma história em quadrinhos na Bienal do Livro do Rio de 2019 (sobre isso escrevi aqui). Nenhum censor quer parecer censor, e sim um protetor da família.
A censura a livros é, hoje, um dos grandes problemas culturais no Brasil e no mundo. Não estamos tratando de casos isolados, apenas os que acabam saindo na imprensa, que já são frequentes. Dada a natureza da fruição da leitura, que é diferente de um espetáculo de música ou de teatro, a proibição a livros vem ocorrendo de forma silenciosa em escolas, instituições culturais e até dentro das casas, sem que tenhamos uma dimensão real do seu volume. Por exemplo, a distribuição de O avesso da pele pelo PNLD não garante que, de fato, a obra será lida com a devida mediação nas centenas de escolas que receberam o livro. O que mais tenho visto nos últimos anos são pilhas de livros “encostadas” porque alguém não gostou da obra. Uma vez que a compra foi feita e paga, parece não haver problema algum.
É certo que faltou, tanto à diretora da escola e aos políticos que proibiram o livro de Tenório, quanto aos dirigentes do Sesc que tentaram boicotar o de Airton, um entendimento sobre o que seja literatura contemporânea e como ela se manifesta hoje. Precisamos aceitar que uma literatura densa e mais questionadora já não faz parte do cotidiano de pessoas de fora da bolha, e que, por isso, podem encarar com todo tipo de preconceito essa manifestação artística. Bons livros são escritos com pesquisa, técnica, intuição e, sobretudo, a necessidade de comunicar algo sobre o nosso mundo por meio de manifestações simbólicas da palavra. Isso pode ser óbvio para nós, mas me parece que circulam muitas ideias distorcidas sobre o que é literatura.
Para essa compreensão, e pensando em termos de escala, uma saída seria a criação de um amplo programa de mediação literária atrelado às compras de livros para as redes escolares. Ainda que a escolha das obras seja feita pelas unidades de ensino, os materiais enviados (vídeos, resumos etc.) não parecem ser suficientes para uma boa preparação da leitura. Os professores, que são os grandes mediadores no processo, precisam passar, eles mesmos, por atividades de mediação, realizadas por círculos ou oficinas de leitura das obras que serão trabalhadas.
O investimento em mediadores culturais, já comprovados como elementos-chave na ampliação do processo de leitura, é a etapa que falta no bem-sucedido modelo de distribuição de livros no Brasil.
Além dessa metodologia de base que, se feita em escala, pode melhorar muito os nossos parcos níveis de leitura, funcionando como um feijão com arroz formativo, outra ponta a ser pensada são os grandes eventos literários que contam com verba pública, especialmente via leis de renúncia fiscal. Tenho participado como autor (e ajudado na elaboração) de diversos festivais nos últimos anos. Uma das grandes frustrações dos escritores participantes das programações é ver centenas de crianças com vale-livros trocando-os por best-sellers internacionais ou livrinhos chineses mixurucas. Não raro, seus livros sequer estão em algum estande. E parece estar tudo bem.
Os melhores eventos literários que tenho visto são aqueles em que as obras dos autores participantes são lidas previamente, seja na comunidade escolar ou em clubes de leitura locais. Com organização e curadoria competentes, é possível fazer a aquisição de livros, sua distribuição e as respectivas atividades de mediação cultural, de modo que a festa literária funcione como culminância – e, realmente, uma celebração da leitura.
Há uma série de metodologias que funcionam e podem ser implementadas em cada comunidade leitora. Talvez precisemos escapar das armadilhas fáceis e transformar a indignação em ações práticas. Não basta sermos contra a censura nas redes sociais se, no mundo real, apenas nos contentamos. Há pouco nos lembramos dos 60 anos do Golpe Militar no Brasil, que instituiu o cerceamento de livros, e só por meio da educação para a leitura vamos devolver essa prática aos porões da história, onde deve permanecer.
Henrique Rodrigues é diretor do Instituto Caminhos da Palavra, voltado para a promoção do livro, leitura e escrita. Com mais de duas décadas de experiência na área, é coordenador geral do Prêmio Caminhos de Literatura e curador do Prêmio Pallas de Literatura. Nascido no subúrbio do Rio de Janeiro, formou-se em Letras pela Uerj, cursou especialização em Jornalismo Cultural pela Uerj, mestrado e doutorado em Letras pela PUC-Rio. Já foi atendente de lanchonete, balconista de videolocadora, professor, superintendente pedagógico da Secretaria de Estado de Educação do RJ, coordenador pedagógico do programa Oi Kabum! e gestor de projetos literários no Sesc Nacional. Publicou 24 livros, entre poesia, infantil, conto, crônica, juvenil e romance, tendo sido finalista do Prêmio Jabuti duas vezes. É patrono de duas salas de leitura das escolas públicas onde estudou. www.caminhosdapalavra.com.br
** Os textos trazidos nessa coluna não refletem, necessariamente, a opinião do PublishNews.
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