O mercado de audiolivros norueguês é um dos mais maduros e sofisticados do mundo. As receitas com audiolivros já correspondem a 30% do faturamento das editoras, superando em muito os resultados obtidos com e-books. Enquanto em muitos mercados os audiolivros estão em fase de consolidação, por lá já são um ativo rentável, estratégico e imprescindível. Obviamente, isso também está ligado à própria pujança da indústria do livro da Noruega, em que 93% da população leu um livro no ano passado e mais que 40% lê mais que 10 livros ao ano, conforme a associação dos editores da Noruega (Den Norske Forleggerforening). Carlo Carrenho, consultor internacional da Alpine Global Collective aponta que 52% dos livros de interesse geral vendidos na Noruega em 2023 foram audiolivros.
O centenário grupo editorial Gyldendal é um dos mais importantes, senão o mais relevante, da Noruega, e quem lidera seu departamento de áudio é Berit Solberg Folden. Confira abaixo minha conversa com Berit que, como Head de Publicações em Áudio de uma das maiores editoras de um país que é referência global em audiolivros, tem muito a dizer.
André Calgaro - Berit, muito obrigado por ter aceitado responder a essa entrevista! De qual cidade está nos escrevendo agora? Como está o clima por aí?
Berit - Estou em Oslo, onde moro e trabalho. Agora mesmo estamos no meio de uma onda de calor — sol e temperaturas em torno de 30°C. Nesta época do ano, fica claro quase a noite toda, então não estamos dormindo muito!
AC - Poderia, por favor, nos contar um pouco da sua trajetória profissional e como começou a trabalhar com audiolivros?
B - Minha trajetória original deveria ter sido na área de TI, mas uma série de coincidências me levou ainda jovem para a indústria de livros. Comecei como gerente de livraria, e foi lá que encontrei os audiolivros pela primeira vez — na época, vendidos em fitas cassete. Esse primeiro contato despertou um interesse duradouro.
A Lydbokforlaget, a editora de audiolivros à qual me juntei depois, foi fundada por um grupo de professores em uma pequena vila norueguesa em 1987. Em 2000, abri o escritório de Oslo, marcando o início de uma fase mais comercial para os audiolivros na Noruega. Foi uma década de mudanças rápidas de formato — fizemos a transição das fitas cassete para CDs, depois para o Digibok (um dispositivo parecido com um iPod, que já vinha com o conteúdo baixado), e por fim para o MP3.
Antes de assumir a função de Head de Áudio na Gyldendal, em 2021, ocupei diversos cargos de liderança — incluindo diretora de vendas e marketing em uma rede de livrarias e uma função fora do setor editorial.
É empolgante estar de volta ao universo do áudio, especialmente agora, num momento de transformação digital acelerada em tantas frentes.
AC - Como Head de Publicações em Áudio da Gyldendal, quais são exatamente suas principais responsabilidades no dia a dia? E qual é o papel do áudio dentro da estratégia da editora?
B - A Gyldendal é um grande grupo editorial, com várias divisões editoriais. Meu departamento é responsável por produzir audiolivros para todas elas. Minha principal função é garantir que nossa equipe altamente qualificada tenha as condições e ferramentas necessárias para realizar produção de áudio em larga escala em uma ampla gama de títulos — e sempre com alto padrão.
Do ponto de vista estratégico, também trabalho em estreita colaboração com os demais líderes da Gyldendal. O mercado está mudando rapidamente, então análise de dados e previsões são fundamentais para tomar as decisões certas. Também produzimos conteúdo original em áudio, incluindo podcasts de diferentes gêneros, tanto para adultos quanto para crianças — nesses casos, atuo quase como uma editora-chefe faria com livros.
O áudio, especialmente o conteúdo pensado para esse formato, é uma prioridade estratégica para nós. No mercado de interesse geral da Noruega, os audiolivros representaram 61% do volume total em 2024. Infelizmente, a receita por unidade é significativamente menor do que para livros impressos.
AC - Como você resumiria o momento atual da indústria de audiolivros na Noruega?
B - É uma pergunta ampla! Há alguns anos, vimos uma tendência clara: os audiolivros ultrapassaram os livros impressos em volume, e a maioria das editoras aumentou significativamente a produção de áudio. Hoje, os ouvintes noruegueses têm acesso à vasta maioria dos títulos do mercado geral em formato de audiolivro. Por isso, eu diria que somos um mercado relativamente maduro — embora eu acredite firmemente que ainda há espaço para crescer.
Durante muitos anos, só havia dois serviços de streaming dominantes — Storytel e Fabel —, mas agora surgiram diversos novos players. Com uma população de apenas 5,6 milhões, a competição por ouvintes é feroz. Como o modelo de streaming domina a região nórdica, o preço da assinatura se tornou o campo de batalha principal. Os serviços frequentemente oferecem longos períodos gratuitos de teste, e eu me preocupo que isso condicione os consumidores a esperar "todos os livros do mundo" de graça.
Recentemente, o foco mudou do preço para o conteúdo exclusivo — e isso, na minha visão, é uma direção mais promissora.
AC - Na Gyldendal, como é feita a seleção dos títulos que serão produzidos em formato audiolivro?
B - O gosto dos ouvintes noruegueses é bastante variado, então praticamente qualquer título que funcione bem em áudio será produzido — embora, claro, a gente sempre analise os números. Nosso objetivo é construir catálogos de áudio de alta qualidade tanto para o público infantil quanto adulto.
AC - Em um mercado tão competitivo como o norueguês, de que forma a Gyldendal procura diferenciar suas produções em áudio?
B - Assim como no mercado editorial em geral, os bestsellers também são os mais ouvidos. Por isso, ter um catálogo forte em romance policial, ficção popular e livros infantis — os gêneros mais consumidos — é essencial. Além disso, criamos uma ampla variedade de conteúdos originais, incluindo podcasts narrativos de não ficção, audiodramas de romances policiais e peças infantis em formato de áudio.
AC - Há hoje um debate muito grande sobre a disputa por exclusividade de títulos ou até de catálogos inteiros entre as diferentes plataformas de audiolivros. O que você pensa sobre isso? Acha que é algo relevante para a diferenciação entre as plataformas de streaming ou seria algo prejudicial à indústria? Niclas Sandin, CEO da plataforma BookBeat, que também atua na Noruega, posicionou-se recentemente contra os acordos de exclusividade.
B - Entendo por que esse debate está ganhando força. Os audiolivros talvez sejam o único produto cultural cujo preço médio caiu de forma contínua ano após ano — mesmo com a inflação e os custos aumentando. À medida que os assinantes consomem cada vez mais conteúdo, os serviços de streaming enfrentam dificuldade para lidar com o custo por unidade, enquanto editoras e autores dependem da receita do áudio para sustentar seu trabalho.
O que ninguém conseguiu apresentar ainda, na minha opinião, é uma resposta clara sobre como criar modelos de pagamento que sejam economicamente sustentáveis. Acredito que é positivo o fato de a competição estar se afastando do preço das assinaturas — e dos períodos “gratuitos” — e indo em direção à diferenciação através do conteúdo.
Se a exclusividade por si só será suficiente para garantir sustentabilidade a longo prazo, ainda não sabemos. É importante também esclarecer que a exclusividade vale apenas para o streaming — os audiolivros continuam podendo ser vendidos individualmente por qualquer livraria ou plataforma, desde que com os direitos adequados.
AC - Quais são as principais tendências que você observa como mais impactantes para a indústria de audiolivros nos próximos anos?
B - A IA, claro, é uma grande tendência — em toda a indústria do livro, inclusive no áudio. O norueguês é uma língua pequena com uma variedade de dialetos, então os modelos de voz não são tão bem treinados quanto para línguas maiores. No momento, a qualidade do text-to-speech em norueguês ainda não é boa o suficiente para o mercado editorial de interesse geral, mas estamos constantemente testando.
Já existe a possibilidade de o ouvinte escolher a voz do narrador, mas não estou convencida de que a maioria dos consumidores vá querer se dar ao trabalho de fazer essas escolhas. Acho que ainda querem a “melhor voz” para aquela história — escolhida e entregue com curadoria.
Também estamos vendo ouvintes de podcast migrando cada vez mais para as plataformas de audiolivro. Vai ser interessante observar se isso trará mudanças nos gêneros mais populares. Ao mesmo tempo, as gerações mais velhas estão se familiarizando com os smartphones, e esperamos que representem uma base crescente de ouvintes.
De modo geral, as fronteiras entre audiolivros e podcasts devem ficar cada vez mais tênues, e provavelmente veremos mais livros curtos — histórias parecidas com podcasts narrativos. O Spotify deve expandir ainda mais no mercado de audiolivros, e outros grupos de mídia podem querer adicionar audiolivros aos seus portfólios, como já fizeram com os podcasts.
AC - As fronteiras entre os diferentes formatos de áudio falado, como audiolivros e podcasts narrativos, têm ficado cada vez mais indistintas. Como você vê esse movimento?
B - Já vínhamos observando isso há algum tempo, e sim — acho que essas linhas vão se apagar ainda mais. Vamos começar a ver tipos de livros diferentes dos atuais. Se você tem uma boa ideia, pode agora pensar qual o melhor formato para ela: impresso, áudio — ou talvez só um deles.
Acredito que editores e produtores de áudio vão colaborar mais estreitamente no futuro. E, com as ferramentas certas de IA, poderemos adaptar histórias ao formato que melhor lhes convém.
B - Foi o Pianisten — um podcast que produzimos para a NRK e que ganhou o prestigiado prêmio Prix Europa em 2024. Outro exemplo é Misjonærbarna (As Crianças Missionárias), que resultou no reconhecimento público e compensação às pessoas envolvidas, pela primeira vez em suas vidas. Foi um projeto desafiador em todos os sentidos, e muito recompensador ver como ele impactou profundamente a vida das pessoas.
AC - Como você vê a relação entre o mercado norueguês e os outros países nórdicos? Quais são as principais diferenças e semelhanças?
B - Uma diferença importante é que a Noruega tem uma lei de preço fixo do livro. Isso significa que, durante um ano após o lançamento, os livros — incluindo os audiolivros — só podem ser vendidos por download avulso (à la carte), e com preço fixado pela editora — não podem entrar no streaming ainda. Só após esse período eles podem entrar no mercado de streaming. Nos demais países nórdicos, os audiolivros vão direto para o streaming. Isso torna comparações diretas um pouco complicadas.
Quanto a preferências de gênero e maturidade de mercado, somos bastante parecidos. Uma distinção é que os ouvintes noruegueses consomem mais conteúdo em idiomas estrangeiros do que nossos vizinhos, que tendem a se manter mais fiéis à própria língua.
AC - Para terminar, quais três dicas você daria para editoras de mercados de audiolivros em desenvolvimento, como o brasileiro?
B - Não espere. Os audiolivros vieram para ficar e o mercado global só tende a crescer.
Valorize seu conteúdo. Boas histórias têm valor — e autores e editoras vão depender cada vez mais da receita do áudio para crescer e inovar.
Foque na qualidade. O áudio é um formato profundamente íntimo — uma voz no ouvido do ouvinte. No mundo do streaming, os consumidores são impiedosos: se não gostam do que estão ouvindo, trocam de livro na hora.
Bônus: deixo aqui uma frase que usávamos na Lydbokforlaget — “Quando suas mãos estão ocupadas, mas seus ouvidos estão livres.”
Os audiolivros permitem que você leia muito mais do que conseguiria sentado no sofá. E uma curiosidade: uma das figuras públicas mais conhecidas da Noruega está neste momento no estúdio ao meu lado, gravando um livro para lançamento global ainda este ano. Mas isso ainda é segredo...
André Calgaro é contador de histórias em áudio, empreendedor e pesquisador do universo do áudio digital. É fundador da Narratix, empresa especializada em áudio storytelling em vários idiomas, incluindo a produção de audiolivros, podcasts e outros conteúdos falados. Também criou a NarraKids, um selo editorial de áudio que oferece conteúdos premium voltados para crianças e famílias. Seu contato é andre.calgaro@narratix.com.br.
Mais de 13 mil pessoas recebem todos os dias a newsletter do PublishNews em suas caixas postais. Desta forma, elas estão sempre atualizadas com as últimas notícias do mercado editorial. Disparamos o informativo sempre antes do meio-dia e, graças ao nosso trabalho de edição e curadoria, você não precisa mais do que 10 minutos para ficar por dentro das novidades. E o melhor: É gratuito! Não perca tempo, clique aqui e assine agora mesmo a newsletter do PublishNews.
Precisando de um capista, de um diagramador ou de uma gráfica? Ou de um conversor de e-books? Seja o que for, você poderá encontrar no nosso Guia de Fornecedores. E para anunciar sua empresa, entre em contato.
O PublishNews nasceu como uma newsletter. E esta continua sendo nossa principal ferramenta de comunicação. Quer receber diariamente todas as notícias do mundo do livro resumidas em um parágrafo?