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Os sotaques brasileiros em audiolivros
PublishNews, André Calgaro, 06/05/2025
Em novo artigo, André Calgaro analisa a questão dos sotaques nos audiolivros – sua importância e a diversidade agregada – e sobre a escolha de bons narradores

Não há como negar, os sotaques fazem parte da diversidade cultural brasileira. São muitas influências diferentes vindas especialmente do nosso peculiar processo de miscigenação, mas não restritas a ele. Nossos sotaques, mais do que meras formas de falar, dão cores às identidades regionais, seja numa comunidade no extremo agreste alagoano ou numa cidade sul-mato-grossense fronteiriça. Em países bem menores que o nosso abundam dialetos. Em outros países, os idiomas oficiais foram frutos de um planejamento linguístico deliberado, como o italiano e o japonês. No Brasil, temos o nosso português próprio, que foi se misturando, se torcendo, se esgueirando e se metamorfoseando, embora com uma espinha dorsal de fala reconhecida em todo território.

Mas, e com os audiolivros? Os diferentes sotaques brasileiros, com seus ziriguiduns, nhenhenhéns e molhos próprios, hoje são tolerados ou desejados? Quando vale torná-los acentuados e quando vale suavizá-los?

Vamos explorar isso na coluna de hoje.

No começo de 2019, um editor de livros me enviou uma mensagem em resposta a um teste de voz que eu havia encaminhado a ele. O teste, gravado por um ator de teatro, que agora se arriscava no ainda nascente mercado de audiolivros da nova era do áudio digital, fazia parte de um casting (processo de seleção de narradores) para um audiolivro. O editor em questão comentou que, embora tivesse gostado artisticamente da narração, identificou alguns ruídos “fortes”, presentes em algumas partes do áudio. Peguei meus fones de ouvido para verificar, em uma audição mais minuciosa, e quando fui ouvir novamente, entendi o que havia ocorrido: o editor — um paulistano —, ao escutar a narração do artista de voz — um carioca —, havia estranhado a pronúncia da letra “R” no meio de palavras (como em “coRte”) e ao final (como em “paraR”).

Ou seja, o sotaque gerou uma percepção de desconfiança, já que no Rio de Janeiro, bem como em alguns outros locais do Brasil, o “R” nessas situações é falado de uma forma mais arrastada, gutural. No caso dos cariocas, a teoria mais aceita é que isso decorre de uma influência da França, cujo idioma possui uma forma similar de pronunciar o “R”, e em tempos nos quais a cultura francesa era profundamente admirada, o modo de falar também foi assimilado como algo chique.

Esse caso reflete um pouco como os sotaques eram percebidos naquele período. Vale notar que estamos citando um dos sotaques que eram mais aceitos. O carioca e o paulistano eram tidos como os mais “permitidos” (obviamente não havia nenhuma regra assim, mas era um entendimento tácito), salvo exceções de títulos bem regionais. Era uma espécie de sotaque “global” (falando aqui da rede Globo, mesmo). Algo que se propunha a ser neutro, porém era um misto das formas de falar de São Paulo e do Rio de Janeiro.

De modo geral, pedia-se sempre a suavização de qualquer sotaque, o que faz sentido, uma vez que a circulação dos audiolivros se dá de forma nacional e até internacional – quem distribui audiolivros globalmente já notou que há ouvintes de fora do Brasil e não estamos falando só dos países lusófonos. Porém, na prática, o carioquês e o paulistanês eram muito aceitos.

Aceleremos agora para os tempos atuais. O que mudou?

Para usar como base comparativa, nos últimos meses, alguns exemplos de sotaques que já buscamos na Narratix, a pedido de clientes: mineiro, cearense, pernambucano, gaúcho, baiano, sergipano... Em praticamente todos esses casos, a ideia era refletir, na narração, a origem do personagem principal (ou, de vários personagens, em títulos em que havia alternância de pontos de vista), ou do autor (no caso de não ficção), trazendo assim, maior autenticidade.

Não só isso, mas também maior imersão, afinal, pode gerar um anticlímax escutar um sotaque que não é natural do narrador, interpretado de forma mal feita, ou mesmo usando um outro sotaque forte para uma personagem que, segundo a história do livro, possui outro bem diferente. O resultado fica caricato.

Bem, então houve um aumento consideravelmente maior, certo? Sim, certo. Porém... ainda estamos falando de narrações que visam representar na voz características da origem de personagens ou autores. Não exatamente narradores com sotaques diferentes narrando títulos tido como neutros (em que tanto faz o sotaque do narrador). Digamos, um título de desenvolvimento pessoal, sem autorreferências do autor.

E por qual razão isso não ocorre mais frequentemente?

Temos algumas possíveis causas.

Uma delas está relacionada à baixa oferta de artistas de voz, de outros estados, capacitados para narrar.

A narração de audiolivro é uma forma de arte distinta da dublagem, da locução comercial ou da atuação teatral, por exemplo, e embora em alguns casos a transição ocorra bem de um campo para outro, isso não é uma regra. Há dubladores talentosíssimos que não funcionam para narração, pois possuem um nível de erro de leitura muito alto; existem locutores que não conseguem atingir uma naturalidade na narração, presos sempre à mesma musicalidade da fala; temos atores de teatro que travam na hora de gravar. Além disso, certas obras requerem experiência por parte do narrador, horas em estúdio dedicadas a audiolivros. Em regiões do Brasil com menos tradição (ou seria com falta de oportunidades?) nesse segmento, naturalmente teremos menos narradores e narradores menos experientes.

Outra razão pode estar enraizada diretamente a essa que agora mencionei: o fato de as produtoras não oferecerem muito às editoras e plataformas vozes com sotaques diferentes (mesmo que atenuados). Isso porque a maior parte das produtoras não possui em seus bancos de vozes muitos narradores fora do eixo RJ-SP. Logo, está tudo muito ligado.

E claro, pode existir, em algum grau, traços de glotofobia (o preconceito contra certos sotaques), ligado a questões sociais. Sim, um preconceito linguístico mesmo.

Consideremos um cenário em que a oferta de narradores de diferentes origens fosse ampla. O ideal seria ter como regra que cada personagem ou autor de Minas Gerais, a título de exemplo, só pudesse ser narrado por um mineiro, e assim por diante? Para um título autobiográfico seria mandatório um narrador nascido na mesma região?

Nos casos das situações fictícias acima, se seguíssemos rigidamente a esses preceitos, incorreríamos em outras perdas.

No caso de ficção, na arte de contar histórias e transportar o ouvinte para uma realidade proposta pelo uso direto e único da voz (sem gestos, imagens e contextos visuais), demanda-se um grupo de habilidades e técnicas (e até de dons). O narrador (assim como o ator) veste diferentes máscaras, vive, revive e por vezes falece em diferentes pontos de vista. Uma das magias da atuação é exatamente essa. E quando limitamos narradores unicamente por sua origem, podemos por vezes perder oportunidades de ouvir alguém narrando, talvez não com a precisão absoluta do sotaque, mas o domínio da contação de história, ou alguma outra habilidade singular que ele possui, como dar vida a inúmeros personagens.

Não esqueçamos disso. A maioria dos audiolivros é narrada por um só narrador, fazendo todas as vozes (num título de ficção). Isso não é simples. Em muitas histórias, precisaremos de alguém que emule múltiplos sotaques, enquanto em outras, a capacidade de quase neutralizá-los será muitíssimo necessária.

Além disso, claro, a premissa de seguir cegamente o vínculo de regionalidade entre narrador-personagem ou narrador-autor poderia restringir muito a atuação dos artistas de voz, já que, por um lado as oportunidades aumentariam (só em proporção aos autores ou personagens da sua região, claro), mas, por outro, os deixaria como narradores de nicho.

Temos um elemento adicional interessante aqui. Uma tendência, cada vez mais florescente, de que o narrador espelhe certos elementos pessoais de um protagonista do livro, ou do autor. Ilustremos isso com mais alguns castings que fizemos recentemente. Pediram um narrador de gênero fluido, para um autor com essa mesma identificação; uma narradora com ascendência indígena (sem especificar a etnia) para um livro infantil escrito em português e maraguá; uma narradora trans para um livro autobiográfico de uma autora trans; um narrador com ascendência japonesa para um romance que tem como pano de fundo a migração japonesa no Brasil; e várias outras situações similares.

Ou seja, o sotaque é um dos elementos que pode ser usado para essa representatividade, para essa associação entre a voz e a história, que se espera que gerará uma carga pessoal preciosa de identificação no processo de narração, no momento de criação, quando, de posse do texto e em frente ao microfone, o narrador transmutará sua voz em arte para os ouvidos de quem depois apertará o botão de play. Na hora de narrar, ele lança mão, inevitavelmente e muitas vezes indiretamente, da sua própria história e trajetórias no caminhar da vida.

E, mais uma vez, não é somente de sotaques e identificações pessoais que se faz um bom narrador, mas por aquela gama de conhecimentos e experiências que já citamos. Não adianta o narrador ser fiel, quase idêntico, quase um gêmeo do autor ou protagonista e simplesmente não saber narrar.

A resposta talvez seja a mais detestada por todos que se perguntam algo: sim, depende. Em um certo audiolivro, a técnica de quem dará voz preponderará na escolha; em outro será impossível não considerar sua origem; e em alguns todo o listado agora e mais outros elementos diferentes.

Talvez o mundo ideal fosse sempre conseguir juntar a raiz que aproxima e a qualidade da narração que encanta.

E tudo isso é enormemente significativo, especialmente quando o avanço da inteligência artificial, das vozes sintéticas, é imparável – não fazendo aqui juízo de valor, mas uma constatação fria e analítica.

São esses elementos diferenciais, como técnica, sensibilidade, identificação pessoal com o narrador, dentre outros, que nos dão unicidade, que nos distinguem do autômato e do automático.

Oxe, tchê, é isso também que nos torna humanos.

André Calgaro é contador de histórias em áudio, empreendedor e pesquisador do universo do áudio digital. É fundador da Narratix, empresa especializada em áudio storytelling em vários idiomas, incluindo a produção de audiolivros, podcasts e outros conteúdos falados. Também criou a NarraKids, um selo editorial de áudio que oferece conteúdos premium voltados para crianças e famílias. Seu contato é andre.calgaro@narratix.com.br.

Tags: audiolivros
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