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“Louca obsessão” - Quando a relação autor-editor deixa de ser profissional
PublishNews, 23/11/2011
“Louca obsessão”, um clássico diferente

“Louca obsessão” é um clássico diferente. E tem vários méritos: não é o tradicional cult, nem é tão antigo, mas foi o primeiro filme de terror a render um Oscar de melhor ator principal. Geralmente, filmes de terror não são cogitados ao Oscar, pois concentram sua ação na violência em si, não no drama psicológico. Este foi um caso de encontro entre um ótimo texto de Stephen King com uma excelente realizaçao de um diretor, Rob Reiner. A escolha da atriz, Kathy Bates, desconhecida na época, foi mais que acertada. E ela ganhou o Oscar pela atuação, disputando com Meryl Streep, Julia Roberts (por “Uma linda mulher”) e Anjelica Huston.

Vamos ao filme. James Caan é Paul Sheldon, escritor de uma série de livros de

sucesso chamada Misery. A série leva o nome de sua personagem principal e é o acontecimento editorial de sua editora. No entanto, ele está cansado de escrever mais um romance sobre o mesmo tema. Sente-se escravizado por sua personagem e decide acabar com a série: como? Poderia simplesmente fazê-la casar e ter filhos, dar-lhe um happy ending, mas preferiu algo mais radical. Matar sua personagem. Assim, ele vai até o seu refúgio em uma cidadezinha, num pequeno hotel, onde passa sozinho vários meses para escrever, como havia feito para escrever todos os outros livros. Termina o livro e toma o caminho de volta dirigindo seu velho Mustang. É pleno inverno. As estradas estão cobertas de neve e ele dirige por ruas que parecem gelo puro, até perder a direção e o carro cair num barranco. Quase desacordado, Paul é retirado do carro por uma pessoa que o carrega sozinha na neve. Acorda dois dias depois e se vê numa casa, sendo cuidado por Annie Wilkes (Kathy Bates). Ela é enfermeira e o salvou do acidente. Conta que estava há dias espreitando-o do lado de fora do hotel, porque Annie é sua fã numero um. E o seguia quando viu todo o acidente, por isso o salvou.

Logo que recobra a consciência, Paul quer falar com sua agente e com sua filha para dizer como está, mas, segundo Annie, a nevasca cortou todo o contato com a cidade. Então ela se oferece para ir à cidade, ligar e dar o recado. O que não faz. A agente de Paul avisa a polícia. O xerife da cidade comeca a investigar até encontrar o carro e vai até a casa de Kathy.


Lá, pouco a pouco, a imagem da fã amorosa começa a mudar. Quando ela lê o novo original que apresenta a morte de Misery, ela oscila entre a doçura e o ódio profundo. Bate no corpo já alquebrado de seu ídolo, tortura-o e começa um jogo em que, ele sabe, pode acabar morto se Annie não acreditar que ele está fazendo tudo o que ela deseja. Um desses desejos é queimar o original inteiro. Ela o coage a queimá-lo, e tamanha é a tensão da cena que ele acata.

Tenho de confessar. Senti um aperto quando vi essa cena. É como se alguém jogasse fora o disco rígido de um trabalho que levou mais de seis meses para fazer. Se ele quisesse o livro teria de reescrever inteiro, frase por frase, e não acho nada mais desgastante na vida que ter de refazer um trabalho de criação artística, sobretudo quando já se gostou do resultado. Quantas vezes não perdemos pra sempre a frase que não anotamos? Há gente que pode se orgulhar da excelente memória. Eu não conseguiria lembrar das frases escritas ao longo de meses a ponto de reescrever...

Quando o xerife chega, Annie o despista num primeiro momento, mas, prestes a sair da casa, ele ouve os gritos de Paul Sheldon e volta. É surpreendido por Annie e nesse ponto o filme assume outro tom. O clima fica mais violento. Trava-se uma batalha de emoções e cada passo errado por ser o fim do nosso autor de best-sellers. As lutas entre a enfermeira e paciente parecem intermináveis, dignas de um Street fighter, refletindo tanto a loucura da fã quanto o desespero do autor, que tem de lutar com todas as dificuldades de mobilidade para sair dali vivo. Vejam os vídeos.

É um filme para ver e rever. E eu o trouxe aqui por tratar da relação neurótica da fã com seu autor. Mas, na transposição para a coluna, quero tratar da relação entre autor e editor. Desde que escrevi sobre o filme “A proposta” e falei do assunto, recebi muitas mensagens comentando as dificuldades que pessoas da área editorial tiveram nessa relação. Volto à questão para contar as regras de ouro que aprendi com a experiência.

Já tive muitas experiências em que autores se transformaram de anjos a ditadores em poucos meses. Não é dificil entender que um autor está entregando algo muito pessoal num livro e, mesmo tendo por contrato estabelecido que sua parte no processo é a entrega do texto, ele trata do livro como se fosse uma parte de si. Uma rasura, um furo de revisão, uma foto mal impressa, um nome que faltou nos créditos ou um nome incluído nos créditos numa função de edição de texto podem criar uma história completa. E qualquer uma dessas coisas pode assumir um tamanho imenso, da dimensão de uma ofensa pessoal pública.

Um dia um autor recebeu um exemplar de seu livro e me ligou – tendo antes falado com TODOS os amigos a fim de garantir que todos pensavam como ele –, perguntando por que eu havia colocado no copyright uma pessoa com a função de preparação de textos? Ele estava incomodado que alguém pensasse que ele havia precisado de ajuda no trabalho de escrita. E tive de explicar demoradamente que se tratava de um termo usual para uma das funções editoriais de revisão de textos.


Outro caso foi de um autor que poderia bem passar por um monge tibetano, até que seu livro saiu da lista de mais vendidos por uma semana. Ele teve uma crise e me ligou durante toda a madrugada revoltado, pois acreditava que ele havia me entregado ouro e eu não estava sabendo fazê-lo brilhar.


Para lidar com tantos casos assim acabei por elaborar algumas linhas de trabalho, evitando fugir delas e transformando-as em regras:


1 – Contrato. Ele precisa estabelecer o que cabe a cada um. Colocar livro na lista, garantir que se mantenha e que não haverá nenhum concorrente lançado ao mesmo tempo não está em nenhum contrato.
2 – Nunca começar o trabalho editorial sem um contrato.
3 – Na contratação, explicar com alegria o que esta sendo feito (a decisão da editora de investir naquele livro deve ser um momento feliz) e que a ela caberão as decisões para transformar o livro num sucesso, de modo a ter retorno do investimento. Título, capa, marketing e distribuição são definidos pela editora. Podem contar com a experiência do autor, mas nunca inverter a hierarquia de quem tem a decisão.
4 – Consultar o autor apenas no necessário sem, no entanto, alijá-lo do processo editorial.
5 – Sob a menor sombra de crise, cortar o mal pela raiz. Se um autor escapar da sua área de atuação e quiser decidir sobre coisas que não lhe competem, indique isso objetivamente. Se o tom se elevar, eleve para situá-lo das condições. Se persistirem os sintomas, distrate. Pode ser um projeto em que você trabalhou por meses. Asseguro, a dor de cabeça não valerá a pena. E não conheço casos de projetos lançados sem felicidade que deram muito certo. Conheço o contrário. De montes.
6 – Nunca amarrar um autor à editora por contrato. Um autor infeliz é uma propaganda negativa. O livro para de vender como mágica. Instaura-se uma energia de má-vontade em todos os níveis. Não vale a pena.

Estou falando aqui de um dos lados do negócio, mas há o outro que precisa ser considerado. O autor precisa estar a par do processo de seu livro; é normal que queira continuar participando e o editor deve tentar mantê-lo o mais bem informado possível. É saudável que seja assim para o sucesso da obra e as vendas da editora. O autor deve estar motivado a falar com imprensa, a convidar seus amigos, a escrever para leitores, a postar coisas nas redes sociais e isso só se consegue se ele estiver motivado, participando do processo.

Como um autor PERDE quando a editora adia o seu lançamento continuamente? Pense em quanto o autor investiu em tempo, em expectativas, em adiamento de outros projetos em favor do livro? Isso deve ser considerado. E quando o autor fica sabendo do lançamento de seu livro porque algum amigo o avisou por ter visto o título numa loja? Ele nem havia sido contatado pela editora para falar de eventos de lançamento... Tudo isso pode parecer um absurdo para muita gente que lê, mas acontece o tempo todo.


Da parte da editora, acredito que todas as conversas, até a mais difícil, devem ser objetivas e respeitosas. Deixar as emoções de lado, colocar os fatos e usar de sinceridade é o unico caminho para resolver qualquer conflito. Não sei o que acontece em outras áreas de trabalho, como na política ou na publicidade, mas costumamos dizer que o mundo editorial é pequeno. Toda hora, a gente esbarra com as mesmas pessoas em posições e empresas diferentes. Isso tem um lado bom e um ruim. O bom é que muitas vezes pode parecer uma família, por exemplo, nos grandes eventos do livro, quando as pessoas se reencontram, muitas vezes, uma vez por ano, se visitam nos stands e atualizam as novidades um do outro. O ruim é que os passos errados e os desvios de caráter são rapidamente espalhados. E isso começa a repercutir na vida das pessoas. Já vi gente sair da área e ter de mudar de ramo depois de desvios de livros, quero dizer, de caráter. Já vi gente ficar, mas que acaba sendo apontada por um erro pelas costas, por 10, 20 anos, e tem a confiança perdida até mesmo por gerações que nem sonhavam trabalhar com livro. Pensando bem...Talvez isso seja mais um lado bom.

Nunca poderia esgotar o assunto, pois a experiência de cada um é variada, mas espero ter trazido alguma contribuição para essas questões. Regras claras e sensibilidade para agir rapidamente são necessárias quando um sinal vermelho aponta para uma relação que está entrando por um caminho ruim.

Curtam “Louca obsessão”. Esse é um daqueles filmes que não envelhecem. Dizem que um livro novo é o livro que você não leu. O ditado cabe ao filme também.

Na próxima coluna, penso em buscar filmes bem conhecidos de qualquer área para usar os exemplos em nosso mercado editorial. Por exemplo, “Mudança de hábito”, com Whoopy Goldberg. Penso que seria um bom exemplo sobre renovação, gestão e flexibilidade. Estou buscando filmes que abordem algo sobre antiburocracia fiscal relacionada a departamentos financeiros e algo que possa usar sobre normas corporativas e sobre o que é a missão de uma empresa. Quem tiver indicações, por favor, mande para mim.

Curiosidades sobre Misery:

• O diretor Rob Reiner havia demonstrado antes seu talento com textos de Stephen King ao adaptar “Conta comigo” para o cinema.
• Misery foi adaptado também para o Teatro em todo o mundo. No Brasil houve uma bela montagem feita por Marisa Orth e Luis Gustavo em 2010, dentre outras.

• Há quem diga que o clipe da Canção Misery da banda Maroon 5 teve uma ponta de inspiração no livro se Stephen King. Uma mulher sem coração que bate no heroi apaixonado durante todo o clipe: uma relação de amor e ódio. Vejam: http://vimeo.com/21417739
Até a próxima coluna. Se quiserem fazer comentários mandem para o meu blog: www.faroeditorial.wordpress.com


LOUCA OBSESSÃO (Misery, 1990). Direção: Rob Reiner. Elenco: James Caan, Kathy Bates, Lauren Bacall, Richard Farsnworth, Frances Sterngahen.

Pedro Almeida é jornalista profissional e professor de literatura, com curso de extensão em Marketing pela Universidade de Berkeley. Autor de diversos livros, dentre eles alguns ligados aos animais, uma de suas paixões. Atua no mercado editorial há 26 anos. Foi publisher em editoras como Ediouro, Novo Conceito, LeYa e Saraiva. E como editor associado para Arx; Caramelo e Planeta. É professor de MBA Publishing desde 2014 e foi presidente do Conselho Curador do Prêmio Jabuti entre os anos 2019 e 2020. Em 2013 iniciou uma nova etapa de sua carreira, lançando a própria editora: Faro Editorial.

Sua coluna traz exemplos recolhidos do cinema, de séries de TV que ajudam a entender como funciona o mercado editorial na prática. Como é o trabalho de um ghost writer? O que está em jogo na hora de contratar um original? Como transformar um autor em um best-seller? Muitas dessas questões tão corriqueiras para um editor são o pano de fundo de alguns filmes que já passaram pelas nossas vidas. Quem quer trabalhar no mercado editorial encontrará nesses filmes algumas lições importantes. Quem já trabalha terá com quem “dividir o isolamento”, um dos estigmas dos editores de livros. Pedro Almeida coleciona alguns exemplos e vai comentá-los uma vez por mês.

** Os textos trazidos nessa coluna não refletem, necessariamente, a opinião do PublishNews

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