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O editor cordial
PublishNews, Leonardo Garzaro, 25/11/2025
Para a dupla de escritoras estrangeiras, um dos choques culturais mais curiosos foi perceber como os brasileiros estavam sempre se abraçando, como se fôssemos parentes distantes em sucessivos reencontros

Mai Khaled e Cecilia Manguerra Brainard na Feira do Livro de Porto Alegre | © Divulgação
Mai Khaled e Cecilia Manguerra Brainard na Feira do Livro de Porto Alegre | © Divulgação
Era quarta-feira à noite e eu estava ao volante, acompanhado pelas vozes animadas de duas escritoras estrangeiras: Mai Khaled, do Egito, e Cecilia Manguerra Brainard, das Filipinas. Íamos rumo a uma pizzaria em São Paulo, mas o carro respirava a atmosfera da Feira do Livro de Porto Alegre, de onde vinham. Falavam sem pausa, encantadas com a recepção: a generosidade dos leitores, a hospitalidade, o cuidado da Larissa Har, entrevistadora do podcast para o qual foram convidadas. Elogiavam recepcionistas, garçons, taxistas. E, como um refrão, voltavam sempre ao nome de Morgana Baldissera, elogiando-a como a personificação perfeita da gentileza.

Quiseram saber se todas as pessoas no Brasil eram assim ou se Porto Alegre guardava um tipo particular de doçura. Perguntavam se os gaúchos, por alguma razão histórica ou sociológica, eram um povo especialmente amigável.

Talvez a idade tenha me moldado um ufanista tardio, porque imediatamente embarquei na narrativa que elas construíam. Confirmei tudo com entusiasmo: disse que todos os brasileiros eram assim mesmo — alegres, receptivos — e que, se um dia fossem ao Nordeste, descobririam o significado profundo da palavra recepção.

Empolgado, entreguei exemplos que reforçavam a caricatura: o Chris Martin, vocalista do Coldplay, bem recebido no futevôlei carioca. Bruno Mars cantando “O Bonde do Tigrão” (na minha tradução, “the bus of the big tiger”), interessado em ganhar a cidadania brasileira. Elas gargalharam, incrédulas.

Disseram que um dos choques culturais mais curiosos foi perceber como os brasileiros estavam sempre se tocando, abraçando, encostando uns nos outros, como se todos fossem parentes distantes em sucessivos reencontros. E eu, já completamente tomado, fui além: falei do Homem Cordial, da nossa suposta vocação para a simpatia, de como éramos, afinal, um povo maravilhoso — escolhidos por Deus, bonitos por natureza, destinados a acolher o mundo inteiro de braços abertos.

Chegamos à pizzaria e o escritor Wilson Loria se juntou a nós. À sua chegada, mais abraços. O garçom, percebendo a dupla internacional, arriscou algumas palavras em inglês, o que deixou as escritoras ainda mais encantadas. A teoria parecia confirmada: éramos mesmo um povo de uma simpatia quase coreografada.

O passo seguinte da conversa foi a imigração, inevitável quando se fala de São Paulo. Relembrei os povos que moldaram a cidade, em especial italianos, japoneses e libaneses. Cecilia Manguerra brincou que os próximos imigrantes a chegarem seriam os democratas americanos, expulsos pela fúria crescente do Partido Republicano. Rimos e confirmamos: seriam muito bem-vindos, assim como foram os ucranianos, recentemente, e os sírios, antes deles.

Foi então que uma buzina forte começou a atravessar a nossa conversa. Tentávamos retomar o fio, mas o som retornava, persistente. Alguém mantinha a mão colada à buzina na rua em frente. As duas escritoras se sobressaltaram:

— Algum problema?

— Não, claro que não.

Nesse exato momento entrou na pizzaria um rapaz visivelmente alterado — roupa de academia, músculos escapando pela regata. Começou a gritar antes mesmo de cruzar totalmente a porta, e o restaurante inteiro silenciou. Alguém havia deixado o carro com o manobrista de maneira a fechar a rua. O rapaz, vermelho de raiva, intimidava o dono do carro aos berros, exigindo que liberasse a passagem imediatamente, ou os vidros seriam quebrados.

Uma moça se levantou, envergonhada, e foi retirar o carro. Aos poucos, superado o susto coletivo, retomamos a conversa.

Respirei fundo e expliquei o ocorrido — e também os motivos pelos quais a teoria do Homem Cordial havia sido descartada há muito tempo, assim como a fábula da democracia racial que enfeitava os discursos dos anos 1970.

Quando nos levantamos da mesa, Mai e Cecilia continuavam sorrindo, ainda convencidas de que o Brasil era um lugar especial. E, de certo modo, não estavam erradas. Talvez o que nos defina não seja a cordialidade idealizada, mas o esforço frágil — e às vezes heroico — de continuar sendo gentis apesar de tudo.

Leonardo Garzaro é escritor, editor e jornalista. Paulista, nascido em 1983, fundou diferentes editoras independentes e editou dezenas de livros. Seu primeiro romance, o infantojuvenil O sorriso do leão, teve os direitos vendidos para editoras de seis países, com traduções para o inglês, espanhol, turco e árabe. Alguns de seus contos foram publicados na premiada revista norte-americana Literal Latin Voices. A revista literária Latin America Literature Today, LALT, elegeu seu conto The Fanatic's Story como um dos dez melhores de 2023.

É consultor de literatura brasileira das editoras Monogramático, da Argentina; Textofilia Ediciones, do México; Corredor Sur, do Equador; e da agência turca Introtema. O guardião de nomes, seu último romance, foi publicado em quatro países e indicado para o prêmio Jabuti de Literatura.

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