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Um cafezinho com Ruth Rocha
PublishNews, Leonardo Garzaro, 14/03/2025
Com mais de 40 milhões de livros vendidos e uma dezena de prêmios, a autora conversou sobre política, adaptações dos clássicos, novos projetos e leituras empacadas

Quando o porteiro perguntou qual apartamento eu iria visitar, respondi com convicção: Vou visitar a dona Ruth, no segundo andar. Pouco depois, a porta se abriu revelando a autora dos melhores livros da minha infância, do óbvio Marcelo, Marmelo, Martelo ao Dois idiotas sentados cada qual no seu barril, com o qual eu e minha irmã demos boas risadas. Ruth Rocha me recebeu de pé, alta e ereta, vestida com elegância casual. Me apontou o sofá azul e se sentou na cadeira de balanço, sorrindo, interessada. “Fale alto, por favor. Eu não escuto direito com esse aparelho”, me preveniu. Entreguei-lhe uma sacola com sabonetes da Granado, que havia levado de presente. Ela agradeceu e passou o embrulho para a secretária. “O que é?”, “São sabonetes, dona Ruth”. “Ah...” Lamentei não ter comprado chocolates.

Antes da visita, li tudo o que encontrei sobre a autora, da transcrição do Roda Viva de 2002 às entrevistas recentes para a BBC, O Globo e Revista do Sesc. Fiquei com a impressão de que os jornalistas se restringem aos temas ligados à literatura infantil, esquecendo-se de que Ruth Rocha é também uma mulher, escritora, tradutora, que trabalhou durante a ditadura militar, a censura e o AI-5 em editoras e revistas, que foi mãe e esposa enquanto escrevia não um, mas duzentos livros. Embalado pelo Oscar do filme Ainda estou aqui, pergunto justamente sobre seu trabalho durante a ditadura militar. Em 1978, a autora publicou O reizinho mandão, que passa por temas como poder, democracia e liberdade. Perguntei se ela teve medo de publicar esse título e ela respondeu que sim, mas não ao ponto de se paralisar. “Eu sentia medo, mas pouco. Teve um menino que falou para mim: Esse rei é o presidente da República, não é? Eu falei: É, pode ser um pai mandão, pode ser um chefe mandão. E ele respondeu: É, mas esse é o presidente da República. Um amigo meu, autor, o João Marinho, foi detido por conta de um livro. Eu sabia que isso podia acontecer, mas, não sei. Eu não sou muito corajosa não.”

Seguimos nas atualidades. Questiono se ela acompanha os jornais, como vê a educação no Brasil, se ainda visita escolas.

“Olha, há muitos anos eu não vou às escolas. Eu visitei escolas no Brasil inteiro, mas fiquei cansada. Essas visitas que a gente faz, a gente não sabe grande coisa. Eles preparam para receber a gente, os alunos estão gostando, porque é farra. Não tem nada que a gente fique sabendo. Agora, a gente vê a avaliação que é feita fora do Brasil, que o Brasil está muito mal. A gente vê com muita tristeza, com muita agonia. E não vê ninguém que considere a educação como primeiro problema, não consideram. O Lula é outro em que eu votei, claro, mas eu não sou lulista, e não estou gostando nada dessa história da Venezuela, porque ele não reagiu na hora certa. Agora, ele não pode reagir. Ele está num papel de querer ser líder da América Latina, ele está num papel complicado. Mas deveria ter reagido na hora. Quando o Maduro disse para ele tomar chá de camomila, ele já tinha que explodir. Vai debochar da sua avó.” Após o excesso, a autora logo se corrige. “Vó não. Vó a gente respeita.”

E o mercado editorial? Alguém marcante? “Tenho sim. Eu comecei minha carreira fazendo livros na Abril, mas o programa deles não eram os livros. Eles faziam como um pedacinho da vida deles. Então eles publicaram meus livros, 13 livros de uma vez, puseram nas bancas, venderam bastante, guardaram num depósito, e só vendiam para livrarias que comprassem quinhentos. E ninguém compra 500 livros. O Marcelo, Marmelo, Martelo saiu bastante. E os outros saíam devagar. Nessa altura, a Ana Maria Machado foi trabalhar com um cara que era da editora... tá vendo esse esquecimento? Isso aí é velhice. Como é que chama a editora que é da Moderna? A Salamandra! A Salamandra era dirigida pela família Pereira. E a Ana indicou o meu livro. Eu estava na editora Cultura, que era editora antes de ser livraria. Mas vendeu pouquíssimo. Eu tirei de lá, ele não me pagou o que devia, e passei para a Salamandra, que passou a vender o Marcelo. E o Marcelo foi embora. E está lá até hoje. O Marcelo está em todo lugar.”

Ruth Rocha é formada em Ciências Políticas e Sociais. Trabalhava como orientadora educacional para o colégio Rio Branco e escrevia artigos para a revista Cláudia. No início dos anos 1970, a amiga Sonia Robatto, diretora da revista Recreio, da Abril, insistia para que ela escrevesse ficção. Ruth respondia que só sabia contar histórias para a sua filha, não escrever livros. Um dia, Sonia chamou Ruth em sua casa, trancou-a em uma sala e disse que ela só sairia de lá quando escrevesse uma narrativa completa. Ruth aceitou a brincadeira, sentou e escreveu uma adaptação de Romeu e Julieta com duas borboletas de cores diferentes que estavam proibidas de brincar. Foi sua primeira história publicada. Começou então a trabalhar como editora, a traduzir e escrever. O primeiro livro saiu em 1976, Palavras, muitas palavras, e a esse se seguiram algumas dezenas, entre eles Marcelo, Marmelo, Martelo e Os direitos das crianças. Hoje, as vendas de Ruth Rocha somam mais de 40 milhões de livros e os prêmios passam de uma dezena, entre eles oito vezes o prêmio Jabuti e a Ordem do Mérito Cultural. Pergunto se podemos esperar por novos títulos.

“Eu tenho vários livros começados e que eu parei. Mas eu não tenho achado vantagem não. Não sei se, procurando mais, talvez eu ache. Não adianta procurar, só acontece. De repente, a gente pensa uma coisa, poxa, isso daí, de repente, dá uma história. Será que dá? E se juntar não sei o quê? E se eu juntar não sei mais o quê? O grande livro dos macacos, é curioso, porque a parte engraçada do livro estava pronta. E eu achei que estava sem graça, achei que não era um bom livro. E aí eu coloquei a parte séria, e aí ficou bom. Faltava uma razão de ser, porque eu vivo achando graça em macaco. Porque tem uma história, os macacos têm um papel na nossa vida. A gente vê tanta gente que não quer parecer macaco, que diz ‘eu não sou descendente de macaco’. Bobagem. Primeiro, porque é, e segundo por que queria parecer jacaré? Queria parecer girafa? A gente também é animal, não adianta reclamar. E eu acho que é uma história épica. A história de um pequeno mamífero, que se transforma num homem, que transforma o mundo. É uma coisa épica, bonita. Não tem nada de vergonhoso não.”

A secretária nos interrompe para oferecer um café. Ruth Rocha se alegra. “Quer um cafezinho?” Logo nos servem, em xícaras vermelhas, o café fresco, que a autora toma em dois goles e logo repete. “Eu tomo café toda hora. Adoro café.” Comento que eu também adoro café. Que durmo cedo para acordar logo e poder tomar mais café. Ela solta uma gargalhada. Falamos sobre as exportações de seus livros e Ruth Rocha menciona oito publicações da Índia, duas nos Estados Unidos, a apresentação de seu trabalho ano passado na feira de Frankfurt e os planos para ir à feira de Bologna, em abril deste ano. A dificuldade está no mercado português. “Em Portugal, eles querem mexer no texto. Os portugueses, eles não aceitam o nosso texto. E eu não quero que mexa. Eu não aceito. Porque a gente lê os portugueses e entende muito bem. Por que eles não podem ler os nossos?”

Uma vez que falamos sobre alterar o texto original, pergunto sobre a onda de adaptações dos clássicos infantis. O exemplo óbvio está na obra de Monteiro Lobato, que foi adaptada por nomes como Walcyr Carrasco e Pedro Bandeira. Ruth demonstra que já havia pensado sobre o tema, e responde de pronto. “Eu acho o seguinte. Eu sou a maior fã do Lobato. O Lobato me influenciou muito. Foi muito importante para mim. No entanto, eu dei o Reinações de Narizinho para uma menina negra, e ela voltou e disse ‘você não fica triste se eu te falar uma coisa? Não gostei desse livro, esse livro tem coisas muito feias. Tem negro beiçudo, tem não sei o quê’. E eu fiquei pensando que eu não posso dar para criança nenhuma, apesar da admiração que eu tenho por ele, e apesar de que eu perdoo até o racismo dele, porque todo mundo era racista, mas todo mundo não escreveu livro. Então eu não posso dar para ninguém, e mexer na obra dele eu não mexo.”

Me rendo às perguntas sobre a infância da autora, que cresceu na Vila Mariana, em São Paulo.

“Eu fui muito feliz na infância. Eu tive pais muito bons, tive irmãos muito bons. Tive uma vida muito sossegada. Meu pai era um homem trabalhador, sério, honesto. Não era muito aberto, mas era muito engraçado. Ele era muito interessante. E ele conversava com a gente. Eu e a minha irmã éramos mais velhas, eles tiveram duas filhas, e depois de muitos anos, outros filhos. E ele pegava nós duas e explicava tudo. Ele comprou mapa para explicar a guerra, onde o exército tava, eu me lembro da guerra na África, foi no meio da guerra, e eu me lembro dele contando, eu ouço as palavras, eu lembro até hoje. Eu tinha oito anos, em 1939, e o meu pai contava tudo da guerra. Eu nunca na minha vida tive diferença por ser mulher. Nunca meu pai e minha mãe disseram ‘não faz isso por ser mulher’. Nunca. A minha família era democrática em tudo. Minha mãe era muito amorosa. Muito. E meu pai era sério, mas era muito amoroso também porque ele dava confiança para os filhos. Depois nasceram os outros, que eram menores. A gente sentava na mesa de jantar e ficavam conversando, conversando... Tanto que eu falo muito isso, que precisa conversar com criança, precisa dar confiança para as crianças, ouvir as perguntas, responder, e fazer perguntas para eles. Precisa cantar com eles, precisa fazer poesia com eles, porque a criança precisa aprender a gostar da língua. Precisa amar a língua. Assim ela aprende a ler e escrever e aprende tudo.”

“Seu pai aparece em algum personagem?”

“Olha, meus personagens não são ninguém. Na verdade, uma coisinha ou outra. É claro que os homens, os pais, têm a cara do meu pai. Mas não é assim, esse foi inspirado por aquele, não é. Eu invento. Eu tenho um amigo que desde pequeno achava que era o Marcelo. Outro dia ele foi num lançamento meu e disse ‘fala aí que eu sou o Marcelo’. ‘Grava aí, eu quero gravar.’ Eu gravei. Mas não é, não é. É assim: eu não sei como é que a gente escolhe o nome. A gente vai fazendo, e isso vem, vem de algum lugar. Não é muito trabalhado, ‘vou escrever um nome que seja...’. É assim: Esse é o Marcelo. Eu lembro que tinha muito Marcelo, eu trabalhava em um colégio e tinha muito Marcelo. E eu me lembro disso.”

“A senhora é uma pessoa nostálgica?”

“Não. Eu fui muito feliz, eu fui muito bem casada, fui uma filha muito feliz, tenho meus irmãos até hoje. Eu tenho quatro irmãos, todos vivos, todos com saúde. Eu tenho uma irmã com 96 anos que lê para mim. E eu tenho uma família divertida. Outro dia foi o aniversário do meu neto. A gente riu tanto. Foi tão bom. Eu sinto saudades do meu marido, eu fui muito feliz. Eu sinto saudades dele, mas eu não sou nostálgica não. Eu não fico nem pensando se estou velha. Eu não fico pensando ‘ah, por que eu estou velha?’. Não fico muito aflita não.”

E o hábito de leitura com a idade tão avançada? “Minha irmã me telefona todos os dias e lê uma hora para mim. E meu neto vem aqui duas vezes por semana e lê para mim. Eu gosto muito dos dois lendo. Meu neto é muito expressivo, ele lê engraçado, ele faz gestos, é bem interessante. Então eu gosto muito, é uma coisa muito feliz. Eu já tive gente que leu para mim. Meu marido uma vez leu um livro inteiro para mim. Meu genro, o Fabrício Corsaletti, me telefona uma vez por semana e lê uma poesia. Então eu gosto muito que leiam para mim. Agora eu estou com esse aparelho auditivo muito ruim. Mas no telefone eu ouço muito bem.” E a experiência é a mesma quando um livro é lido para nós? “Eu acho que sim. Eu por exemplo li o Cem anos de solidão há muitos anos, gostei muito. E o meu genro falou para o meu neto Pedro ler o livro comigo. Eu gostei mais do que da outra vez. É o livro que eu mais gostei na vida.”

E quais livros ainda não foram lidos? “Eu tenho um livro que está encalacrado comigo e com a minha irmã, que é o Ulisses, do James Joyce, que nós começamos a ler, mas não entendemos nada. Então a gente começou a procurar as notas, que explicavam, mas nós ficamos meio paradas, sem saber se queremos continuar. Eu ganhei o novo livro do Chico Buarque e agora eu quero ler este.”

Comento que, em dúvida sobre o que trazer de presente, considerei trazer o último livro do Ruy Castro, Os perigos do imperador. Ela sorri. “Ah, eu gosto muito do Ruy Castro. Li dois ou três livros dele.” Era óbvio: eu deveria ter levado um livro de presente. No dia seguinte, deixei o título na portaria.

Leonardo Garzaro é escritor, editor e jornalista. Paulista, nascido em 1983, fundou diferentes editoras independentes e editou dezenas de livros. Seu primeiro romance, o infantojuvenil O sorriso do leão, teve os direitos vendidos para editoras de seis países, com traduções para o inglês, espanhol, turco e árabe. Alguns de seus contos foram publicados na premiada revista norte-americana Literal Latin Voices. A revista literária Latin America Literature Today, LALT, elegeu seu conto The Fanatic's Story como um dos dez melhores de 2023.

É consultor de literatura brasileira das editoras Monogramático, da Argentina; Textofilia Ediciones, do México; Corredor Sur, do Equador; e da agência turca Introtema. O guardião de nomes, seu último romance, foi publicado em quatro países e indicado para o prêmio Jabuti de Literatura.

Tags: Ruth Rocha
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