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O rei do TikTok
PublishNews, Leonardo Garzaro, 19/02/2024
A editora havia sido inaugurada poucos antes quando um agente me trouxe a proposta: Que tal publicar o livro do rei do TikTok?

Em maio de 2020, lancei o primeiro título da editora Rua do Sabão, idealizada havia alguns anos. Estava tudo pronto desde novembro, com previsão de início para março. Havíamos planejado festas de lançamento, bate-papos em livrarias, combinado uma série de eventos para começar com força. O que não contávamos, claro, era com a pandemia. Me lembro bem de uma reunião virtual entre os sócios, algo tão alienígena, mas que em breve se tornaria comum. Tínhamos duas alternativas: esperar a pandemia passar, pois achávamos que levaria apenas alguns meses, ou começar de uma vez, transferindo todos os planos de eventos para as redes sociais e jogando com a sorte. Alguém disse "a sorte favorece os audazes, vamos de uma vez". Assim, lançamos o primeiro título, uma reedição do livro de Barbara Newhall Follett, a autora desaparecida, publicado originalmente quase 100 anos antes.

Ao primeiro título, adicionamos um segundo, uma aposta infantojuvenil. Em seguida, um livro-reportagem sobre a política ambiental da Noruega e um romance sueco, com tradução direta do original. Tínhamos atenção da imprensa e conquistávamos alguns leitores. As redes sociais estavam alcançando o público. Contudo, isso não se refletia em vendas. É a primeira lição que aprendemos como editores: nem sempre um livro que aparece na imprensa vende bem. Muitas vezes, um livro corre silenciosamente, de leitor em leitor, conquistando o público, e outros, apesar do estardalhaço na mídia, não vendem o suficiente. Nosso caso era justamente o segundo. Falavam da editora e dos livros, mas, vendas? As vendas estavam fracas.

Falei sobre esse quadro com um agente bastante conhecido e ele me trouxe a proposta, alguns dias depois: Que tal publicar o livro do rei do TikTok? Me mostrou os números: três milhões de seguidores, contratos com diversas marcas famosas, participação em programas de TV. Eu expliquei que a nossa linha editorial era muito diferente. Não dava para colocar literatura sueca e norueguesa na mesma cesta do livro do tiktoker. Ele replicou que nós podíamos criar um selo, publicar separado do nome principal. Outro problema é que eu nunca tinha ouvido falar no rapaz. Liguei então para uma prima adolescente. Já ouviu falar nele? Ela retrucou: Sim, ele é lindo! Decidimos seguir em frente. Era experimentar.

O que pesava eram os números, claro. Pensávamos: são três milhões de seguidores. Se apenas três mil comprarem o livro, ou seja, 0,1%, colocamos um faturamento significativo para dentro da editora. Naquela época, três mil livros eram uma quantidade estrondosa! Ainda mais, com as pilhas de literatura sueca e norueguesa nos encarando, longe de serem vendidas. Seria uma forma de trazer capital para a editora e seguir com nossa proposta editorial. E, quem sabe, uma fonte de receita permanente: me contaram que o livro da Kéfera, que eu também não conhecia, era impresso em quantidades descomunais. Talvez aí estivesse o segredo, lançar algo comercial para sustentar as publicações eruditas.

O contrato chegou depois de alguns dias. O livro, depois de algumas semanas. Acompanhava-o, claro, centenas de fotos: o tiktoker em pose de galã, andando pelo campo, sorrindo com a mão apoiada no queixo. Um jovem Tarcísio Meira. Conheci o círculo todo: pai e mãe, empresária, assessora de imprensa. Senti como se tratasse com uma promessa do futebol: a família inteira contava com o sucesso do rapaz. Seria uma oportunidade para mudarem de vida. Para mim também, claro. Brincava com os números: se 1% dos seguidores comprassem o título, seriam 30 mil livros. Eu levaria dez anos para vender essa quantidade com literatura norueguesa.

O livro ficou pronto em tempo recorde. Receávamos que a fama desaparecesse de repente, pois neste meio tudo é repentino. Também havia o risco do tiktoker falar alguma bobagem, ser cancelado, e terminarmos com pilhas de livros que nunca seriam vendidas (porque literatura sueca e norueguesa vendem devagarzinho, mas vendem sempre). Agitamos uma pré-venda, entregamos os primeiros exemplares para a família, colocamos à venda nos marketplaces, já que as livrarias estavam fechadas. Agora era esperar o resultado. Brincávamos com os números: sairiam quantos no primeiro dia? Se vencessem cem, seria promissor, mas e se vendessem mil já de largada?

Foram quarenta livros vendidos no primeiro dia. Dez comprados pela mãe do autor. No anúncio do livro, o tiktoker comeu metade do texto, falando atropelado. No segundo dia, cinco títulos vendidos. No terceiro, nenhum. Estranhamos, ainda, que ele só havia divulgado o livro no primeiro dia. Nos outros dois, não falou nada. Era um sinal de alerta. Pedimos uma reunião emergencial. Então, começaram os telefonemas. A mãe do rapaz me explicou que ela e a empresária tinham uma desavença, que em breve iriam romper o contrato de representação. A assessora de imprensa e a empresária também não se entendiam. Já o pai, tentava contemporizar: sua função era colocar panos quentes. Chamei o agente, que conversou com todo mundo. Lembramos do contrato: o tiktoker deveria divulgar o livro todos os dias! Sem a divulgação, o livro não iria vender. A mãe do talento me explicou que a empresária havia assinado o contrato sem passar as cláusulas corretamente para ele. O tiktoker me disse que ele queria ficar com os amigos, fazer os vídeos só de brincadeira, que aquilo não era sério. O pai garantiu que o contrato seria cumprido. Na maior parte do tempo, enquanto os livros seguiam encalhados, eu me via fazendo terapia familiar: descobri tudo sobre a família, do casamento dos pais aos primeiros namoros do menino. Respondia mensagens de fãs do tiktoker, que queriam conhecê-lo pessoalmente, mas não compravam o livro. Tudo isso enquanto a pandemia corria. Pensava que, talvez, quando os eventos presenciais retornassem, eu conseguiria vender tudo. Porém, será que ele seria famoso até lá?

Depois de uma semana do lançamento, após intensas negociações, o tiktoker decidiu voltar a divulgar o próprio livro. A má vontade era evidente. Entre uma centena de posts, fazia um mostrando o livro. Reclamei com a empresária, que pediu para escrevermos o roteiro do que ele deveria falar. Preparamos tudo, mas, não deu certo. A oferta do livro era feita seguindo o texto, mas com tal tristeza que eu mesmo tinha vontade de dispensá-lo do esforço. Aquilo não daria certo. Joguei a toalha.

Um mês após o lançamento, a assessora de imprensa do tiktoker me ligou. Queria saber os números de vendas, para cavar uma pauta. Quarenta mil? Trinta mil? Havíamos vendido oitenta livros, nada mais. A resposta era óbvia: claro, adoravam assisti-lo no TikTok, mas, daí para comprar o livro, era outra história. O público não dava esse passo. Ao menos, confesso, me diverti. Fiz uma boa amizade com os familiares. Gostei deles. Estávamos todos no mesmo barco.

Voltamos à programação normal da editora, ainda sob a pandemia, que, descobrimos, demoraria muito a terminar. Publicamos mais títulos escandinavos, alguma literatura holandesa, e um título sobre algoritmos, que se tornou um sucesso. Aí estava o que precisávamos para sustentar o projeto editorial.

Nunca mais me aventurei com títulos dessa categoria. Aprendi que não existe receita: o segredo me parece ser publicar o que amamos. Só publico o que estou desesperado para ler. Se o editor sabe porque está lançando aquele título, é o suficiente. O resto é sorte.

Leonardo Garzaro é escritor, editor e jornalista. Paulista, nascido em 1983, fundou diferentes editoras independentes e editou dezenas de livros. Seu primeiro romance, o infantojuvenil O sorriso do leão, teve os direitos vendidos para editoras de seis países, com traduções para o inglês, espanhol, turco e árabe. Alguns de seus contos foram publicados na premiada revista norte-americana Literal Latin Voices. É consultor de literatura brasileira das editoras Interzona, da Argentina; Arlequin Ediciones, do México; e Corredor Sur, do Equador. Lançou em 2022 O guardião de nomes, que foi elencado como um dos melhores romances de 2022 pelo Suplemento Literário Pernambuco.

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