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Infiltrado na Letônia
PublishNews, Leonardo Garzaro, 31/03/2025
Apesar das pequenas dimensões territoriais, o país faz um excelente trabalho de marketing; na Feira de Londres, cartazes bem posicionados convidam para uma sessão de yoga e um tipo ranzinza nos escara nos mictórios

Era noite do dia 2 de março e eu estava diante da televisão torcendo pelo gatinho Flow, que concorria ao Oscar de Melhor Animação contra Divertida Mente 2, da Pixar, e Wallace and Gromit, famosa produção francesa. Às 21:42, Andrew Garfield e Goldie Hawn abriram o envelope e anunciaram a vitória da animação letã, filme independente e de baixo orçamento, primeira indicação e primeira estatueta da Letônia. Soltei um “viva!” e acessei o grupo de WhatsApp “Língua e Cultura Letã” para distribuir foguetinhos e figurinhas. Me levantei do sofá e tentei pegar o gato, que fugiu, assustado. Vencemos! Só faltava agora o Brasil trazer para casa o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro e a Fernanda Torres bater a Demi Moore. Nanda havia pedido para não transformarmos o Oscar em uma Copa do Mundo, mas isso não é para nós. O brasileiro gosta mesmo é de torcer.

Walter Salles e Gints Zilbalodis - cineasta e animador Letão
Walter Salles e Gints Zilbalodis - cineasta e animador Letão
O primeiro Oscar do Brasil veio faltando dois minutos para a meia-noite. Entre os descendentes de letões, metade comemorou a vitória nacional, metade lamentou, torcendo para um segundo prêmio para o país báltico. Para acalmar os ânimos, logo postaram uma foto de Walter Salles ao lado do Gints Zilbalodis, cada qual com a sua estatueta. No dia seguinte, a animação continuou: parecia obrigatório aos membros do grupo enviar fotos em frente ao cartaz do Flow, em salas de cinema de todo o Brasil, e compartilhar todas as notícias que encontravam. Fiquei tentado a acompanhá-los. Um membro mais empolgado escreveu para a Kopenhagen, marca de chocolates fundada no Brasil por imigrantes letões, sugerindo uma edição especial do chocolate homenageando o personagem. Decepcionado, ele compartilhou a resposta morna recebida da empresa.

Estande da Letônia na Feira de Leipzig
Estande da Letônia na Feira de Leipzig
Em 2023, quando fui pela última vez à Feira de Londres, eu mal lembrava da existência da Letônia. Contudo, apesar das pequenas dimensões territoriais, o país faz um excelente trabalho de marketing. Na Feira do Livro de Londres, cartazes bem posicionados convidam para uma sessão de “yoga para introvertidos” no estande letão. Nos banheiros, a ilustração de um tipo ranzinza, segurando um guarda-chuva, encara os visitantes com as indicações do estande oficial da “Latvia”. Não tive tempo de praticar yoga ou me reunir com os editores, mas, eles me encontraram: após voltar ao Brasil, passei a receber e-mails oferecendo títulos interessantes e instruções sobre o funcionamento do programa de apoio à tradução. Através do Carlo Carrenho, descobriram meu telefone e passaram a me enviar mensagens diretas. Uma perseguição! O resultado foi a negociação de dois títulos, Jelgava 94, de Jānis Joņevs, e Leite Soviético, de Nora Ikstena, que chegam ao Brasil ainda em 2025. A Letônia me pegou.

Estande da Letônia na Feira de Bolonha
Estande da Letônia na Feira de Bolonha
Pessoalmente, me encanto ao desbravar literaturas inéditas em português. Diferente do que acontece no inglês, francês ou espanhol, quando encontramos literaturas fora do mapa, tudo está disponível, os escritores mais famosos, os clássicos fundamentais. Além disso, como escritor, julgo indispensável dialogar com autores além dos óbvios, presentes nas listas dos cem mais ou nas indicações do influencer favorito. Em países como a Letônia, é possível iniciar um trabalho bem feito, do zero, com o que há de melhor em sua literatura.

Negociados os direitos, era preciso encontrar um tradutor. Conversei com amigos editores, que garantiram: É impossível. Conversei com outros tradutores, que me desanimaram, afirmando inexistirem tradutores do letão no Brasil. A embaixada sequer me respondeu. Mas, claro, era questão de procurar. Através das redes sociais da década passada, encontrei um primeiro grupo de língua e cultura letã. Escrevi para os administradores, e eles me colocaram em outros. Me vi inserido na comunidade, torcendo pelo gatinho Flow, reclamando pela falta de um chocolate com a forma do personagem, trocando fotos de Riga e escutando depoimentos de quem no Brasil era sempre o último a ser escolhido no futebol, mas na Letônia virou atacante.

Como pude perceber, o objetivo principal dos que estão no grupo é a cidadania letã, que se torna o famoso passaporte vermelho da União Europeia, sonho de muitos brasileiros. Discute-se o idioma, trocam-se dicas de gramática, mas também se trabalha a preservação da cultura. Em um sábado à noite, havia 50 descendentes no Zoom falando sobre pratos típicos. Há quem aproveite para fazer propaganda de pratos, vender café, oferecer livros de receitas e cursos do idioma.

Como não poderia deixar de ser, uma polêmica estourou. Um membro do grupo comentou que estava em Brasília, e que por lá havia um grupo de cultura letã. Outro respondeu: “Brasília, tá trabalhando para o cabeça de ovo?”. Retrucaram: “E os gastos no cartão corporativo da primeira-dama?”. Logo o administrador interferiu, explicando que existiam outros grupos para política e que o espaço não era ali. Algumas mensagens deletadas depois, o grupo voltou a ser o território tranquilo do gatinho vencedor do Oscar.

Esta pequena jornada me lembrou de um dos motivos da literatura. Quinhentos anos atrás, na Europa, faziam grande sucesso os livros que narravam as aventuras dos navegadores nos muitos Brasis que se descobriam. Na minha não tão distante adolescência, conheci a Paris pela qual a Maga escapava de Cortázar e a Havana de Pedro Juan Gutiérrez sem jamais ter saído do Brasil. Assim, nos últimos meses, vivi intensamente a Letônia, e ainda a viverei muito mais, com a sua literatura, sem jamais ter pisado em seu território.

Propaganda nos banheiros da feira
Propaganda nos banheiros da feira

Leonardo Garzaro é escritor, editor e jornalista. Paulista, nascido em 1983, fundou diferentes editoras independentes e editou dezenas de livros. Seu primeiro romance, o infantojuvenil O sorriso do leão, teve os direitos vendidos para editoras de seis países, com traduções para o inglês, espanhol, turco e árabe. Alguns de seus contos foram publicados na premiada revista norte-americana Literal Latin Voices. A revista literária Latin America Literature Today, LALT, elegeu seu conto The Fanatic's Story como um dos dez melhores de 2023.

É consultor de literatura brasileira das editoras Monogramático, da Argentina; Textofilia Ediciones, do México; Corredor Sur, do Equador; e da agência turca Introtema. O guardião de nomes, seu último romance, foi publicado em quatro países e indicado para o prêmio Jabuti de Literatura.

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