Nesses dias em que respiramos as Olimpíadas, alguns aspectos já ficaram muito compreensíveis, permitindo algumas conclusões. O primeiro é a ausência do esporte mais valorizado no Brasil, o futebol masculino, cujo desempenho pífio nos últimos anos, e levando-se em consideração os imensos salários dos jogadores, tem gerado revolta em boa parte da população. O segundo é que são as mulheres quem estão trazendo mais medalhas ao Brasil. Enquanto escrevo, nossas duas de ouro vieram da judoca Bia Souza e da ginasta Rebeca Andrade. Para complementar, é importantíssimo dizer que são duas mulheres pretas e de origem pobre.
Enquanto as atletas nos davam orgulho em Paris, circulava por esses dias um vídeo em que uma artista plástica praticava crime de racismo contra atendentes e um policial em São Paulo. Essa triste rotina dos noticiários parece dar uma folga quando temos conquistas tão representativas como as das Olimpiadas. Chorei quando a judoca Rafaela Souza, oriunda da minha vizinha Cidade de Deus, conquistou a medalha de ouro nas Olimpíadas do Rio em 2016. Pensei que iria desencadear um grande volume de investimentos na região, e vimos a piada que foi o chamado legado olímpico. Infelizmente, parece que basta passar o evento e logo voltamos à programação normal.
E o que isso tem a ver com o mundo do livro e da leitura?
Primeiramente, vale fazer um paralelo sobre a nossa vida literária brasileira, que vem abrindo um relativo espaço para escritores. Celebramos o acesso à universidade, à publicação de livros, vibramos com a vitória em prêmios dos pretos, pardos e pobres, mas cada vez menos com a ilusória sensação de justiça racial e mais como entendimento de que, como acontece nos EUA, as chamadas “pautas identitárias” (põe aspas nisso) vêm se tornando mais um filão de mercado.
Nessa onda, é importante não glamourizar a origem humilde, as dificuldades da infância, as histórias de superação com pitadas de meritocracia contadas por quem está embalando a miséria como mais um storytellying a ser consumido. Porque não adianta celebrar escritores negros que, ao sair nas ruas, são abordados com a truculência racista de sempre, como acontece com o camarada Jeferson Tenório, escritor imenso que está sempre sendo censurado e sofrendo injúrias raciais. Creio que haja uma lacuna entre as representações simbólicas e a vida ordinária.
Nessa linha, nos faltam projetos em escala que alcancem a base da sociedade, desde uma educação para a leitura de si e do mundo até a ampla possibilidade de reescrita da realidade. Parece uma frase utópica, e talvez seja, mas não totalmente. Há poucos dias tive a oportunidade de dar um curso de formação para agentes de leitura do Espírito Santo – estado, aliás, geralmente apagado no mapa da cultura brasileira, mas que tem uma vida literária pulsante. Tal como agentes de saúde, os profissionais irão em diversas comunidades promover atividades sistemáticas de clubes leitura, oficinas de escrita e saraus. Da mesma força que são feitas ações preventivas a doenças, essas iniciativas podem contribuir para o combate a diversas mazelas culturais: analfabetismo funcional, censura e a própria desvalorização das nossas formas de expressão.
E foi nesse aspecto que, talvez sem saber, a jovem Rebeca Andrade deu um show: ao ser perguntada por Galvão Bueno sobre a questão de não falar inglês em entrevistas, a ginasta respondeu que se sente mais confortável falando na sua própria língua. “Vou falar português e pronto!”, disse a atleta.
O que deveria ser óbvio ganha novos contornos quando vemos nossa realidade. Num tempo em que o universo corporativo supervaloriza termos anglófonos, algo que já deveria ter sido abolido por ser marca de submissão e provincianismo, a resposta de Rebeca mereceria mais uma medalha.
Aproxima-se mais uma Bienal do Livro dessas graúdas, agora em São Paulo. Estarei por lá e vou fazer uma previsão: estandes lotados, jovens em filas longas dos best-sellers, matérias nas grandes mídias celebrando o gosto do povo brasileiro por livros etc. E depois o ranking de mais vendidos, cuja maioria é de livros estrangeiros, causando espanto e surpresa em zero pessoas. Ah, sim, temos meia dúzia de estrelas para fazer algum contrapeso, mas nada que mude a base real do país quando acaba o evento.
Na nossa ginástica para promover a literatura brasileira, ficamos mal-acostumados a celebrar as exceções enquanto nos resignamos com as regras. Rebeca Andrade deveria ser levada para Bienal e apenas repetir a frase com uma pequena alteração: “Quero livro brasileiro e pronto!”.
Estou aqui no Pelourinho, vale dizer: tem até estrangeiro e autores brancos na programação. E nem precisou de cota, só de bom senso. Como não amar Salvador e essa gente que nos resume tão bem num lugar que foi palco de tanta injustiça? Se eu pudesse traria as pessoas que sofreram racismo em São Paulo para assistir à programação, com tudo pago. E condenaria a artista plástica racista a vir também – com ela custeando tudo, claro – para que tentasse entender o que é ser brasileiro e aprendesse a ser gente.
Ah, sim, cabe perguntar: até quando editores brasileiros vão se tratar como publishers? Porque periga os escribas começarem a se apresentar com “prazer, sou Fulano/a, writer...”. Nem quero dar ideia, pois vem aí a Flip e vai que...
Henrique Rodrigues nasceu no subúrbio do Rio de Janeiro, em 1975. É curador de programações literárias e consultor para projetos e programas de formação de leitores. Formou-se em Letras pela Uerj, cursou especialização em Jornalismo Cultural pela Uerj, mestrado e doutorado em Letras pela PUC-Rio. Já foi atendente de lanchonete, balconista de videolocadora, professor, superintendente pedagógico da Secretaria de Estado de Educação do RJ, coordenador pedagógico do programa Oi Kabum! e gestor de projetos literários no Sesc Nacional. É idealizador do Prêmio Caminhos de Literatura e curador do Prêmio Pallas de Literatura. Publicou 24 livros, entre poesia, infantis, juvenis e romances. www.henriquerodrigues.net
** Os textos trazidos nessa coluna não refletem, necessariamente, a opinião do PublishNews.
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