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Censurar livros, esse crime impune
PublishNews, Henrique Rodrigues, 05/03/2024
Em sua coluna, Henrique Rodrigues comenta a recorrente perseguição à literatura contemporânea

Há pouco tempo, a simples ideia de proibir livros era tomada como algo absurdo, criminoso, dos tempos da Inquisição ou mesmo associado ao nazismo. Quando muito, na nossa memória recente associava-se ao período da ditadura, prática morta e enterrada nos porões da história. Dificilmente, pelo que me lembro, o senso comum aceitava que uma obra de poesia ou ficção pudesse fazer mal a qualquer indivíduo. Imediatamente evocávamos o alerta da própria literatura pelo romance Fahrenheit 451, de Ray Bradbury, porque proibir livro, ora bolas, só podia ser coisa de distopia.

Pois bem. Cá estou, nova e infelizmente, voltando ao assunto, como se já não tivéssemos tantos desafios na área. Escrevi aqui, aqui e aqui sobre o sério problema da censura a livros, sendo que, no último link, foi sobre um mesmo ataque sofrido pelo camarada Jeferson Tenório, cujo excelente romance O avesso da pele (Companhia das Letras) acaba de ser censurado por uma diretora de escola pública do Rio Grande do Sul.

Circula nas redes um vídeo em que Janaina Venzon, diretora da Escola Estadual de Ensino Médio Ernesto Alves de Oliveira, de Santa Cruz do Sul, desqualifica o livro, argumentando que a obra enviada pelo PNLD tem vocabulário de "baixo nível" e que seria um absurdo o MEC adquiri-la para a sua unidade de ensino. A diretora parece desconhecer que os livros do PNLD são selecionados pelas próprias escolas, a fim de se adequarem aos seus projetos pedagógicos.

Para qualquer pessoa alfabetizada em literatura, destacar um trecho de um livro para atacá-lo, retirando do contexto, é mais que preguiça, é cegueira e má fé. Trata-se de uma prática de imensa ignorância. No caso de uma educadora, ainda mais a que chefia uma escola e que conta com a hierarquia a seu favor, é algo de profunda irresponsabilidade com a sua função.

Cena filme 'Fahrenheit 451' | © YouTube
Cena filme 'Fahrenheit 451' | © YouTube
Consta que a Coordenadoria Regional de Educação já estava mandando recolher as obras até manifestação do MEC, porém a Secretaria orientou que o livro seja trabalhado em sala. Apesar de parecer que o problema foi resolvido, quem conhece esses casos tão comuns hoje sabe qual é o destino provável dos exemplares: ficarem num canto da escola amontoados até que se esqueça do assunto. É o que já aconteceu com livros meus e de tantos colegas de ofício. Semana que vem voltaremos à programação normal, e a diretora da escola continuará exercendo o seu papel de censora.

A diretora Janaina, com tal atitude reacionária e pseudomoralista, não sofrerá qualquer punição ao tentar privar o acesso a um bem cultural de qualidade. Qual o preço da não-leitura na trajetória de centenas de jovens, cujas existências deixarão de ser contempladas pelas questões levantadas no romance O avesso da pele? O livro, belamente narrado em segunda pessoa, faz com que as reflexões sobre racismo estrutural, educação, relações familiares e afetos sejam ditas diretamente aos leitores. Como mensurar esse silêncio?

Seria a solução um projeto para tipificar como crime a censura à literatura e às artes em geral, especialmente quando há por trás um projeto tão criterioso e correto como o PNLD? Pode parecer um exagero, e talvez seja, mas me parece que essa não será a última vez em que vamos ver esse tipo de arbitrariedade na nossa produção literária. Enquanto não houver alguma punição, pessoas como a diretora Janaina, do alto do seu micropoder, se sentirão sempre à vontade para impor sua visão mesquinha de mundo. Com nossos índices de leitura tão ruins, especialmente para a nossa literatura brasileira contemporânea, dificultar o acesso a livros, para mim, é um delito inafiançável. No mínimo, essas pessoas deveriam perder os cargos de chefia.

Assim como os bombeiros de Fahrenheit 451 incendeiam livros para manter a suposta ordem da sociedade, quando uma escola promove a censura de uma obra literária está nos inserindo cada vez mais numa realidade de trevas que, conforme a história nos ensinou, deveria ser evitado a todo custo.

Henrique Rodrigues nasceu no subúrbio do Rio de Janeiro, em 1975. É curador de programações literárias e consultor para projetos e programas de formação de leitores. Formou-se em Letras pela Uerj, cursou especialização em Jornalismo Cultural pela Uerj, mestrado e doutorado em Letras pela PUC-Rio. Já foi atendente de lanchonete, balconista de videolocadora, professor, superintendente pedagógico da Secretaria de Estado de Educação do RJ, coordenador pedagógico do programa Oi Kabum! e gestor de projetos literários no Sesc Nacional. É autor de 24 livros, entre poesia, infantis, juvenis. www.henriquerodrigues.net

** Os textos trazidos nessa coluna não refletem, necessariamente, a opinião do PublishNews.

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