Quem trabalha na cadeia produtiva da literatura vive num mundo cheio de paradoxos. Se por um lado é senso comum que livro, leitura, poesia e termos correlatos são benéficos para a sociedade em geral, por que na hora de se falar em investimentos a área é jogada para escanteio, ou resumida a nichos quase sempre já privilegiados? Por que falar de histórias faz sorrir, mas o sorriso vira pigarro na hora do faz-me-rir?
Pensei nisso quando, nesta semana, recebi de uma nova editora o link para uma plataforma na qual poderei acompanhar pari passu as vendas do livro e os meus direitos autorais. Pode parecer óbvio, mas em todos esses anos nesta indústria vital é a primeira vez que isso me acontece. Geralmente, nas editoras com mais estrutura e sérias, recebemos a prestação de contas semestral ou anualmente, de acordo com o contrato fechado. Em editoras médias, muitas vezes a prestação de contas não vem, e somos obrigados a mandar constrangidos e-mails cobrando e sendo, não raro, ignorados ou enrolados. Nas pequenas raramente é assunto, porque a maioria funciona mais como gráfica para impressões por demanda, com pouca ou nenhuma distribuição nas redes de livrarias físicas.
O saudoso e necessário escritor Bartolomeu Campos de Queirós me deu uma dica daquelas para sempre: distribua seus livros em diferentes editoras, pois o que falha em uma compensa na outra, e no geral a coisa fica equilibrada.
De todo modo, esta coluna não é para falar dos nossos esmirrados direitos autorais de 10%, gorjeta que nos situa como os garçons e as garçonetes da literatura. Na esteira da questão, e considerando o retorno da Cultura como ministério e o consequente retorno de investimentos públicos e privados, por que a nossa expressão artística fica sempre jogada para escanteio?
A escritora e camarada Micheliny Verunschk (apanho toda vez que vou escrever o sobrenome dela, austero de vogais) lançou um rugido certeiro nas redes ao notar que o recente edital do Banco do Brasil deixava a literatura de fora. A questão ecoou e, na hora de a onça beber água, alteraram o documento.
Pelo que tenho acompanhado, há certa dificuldade de entendimento geral sobre a literatura como manifestação artística na hora de cortar o bolo dos investimentos.
O próprio MinC acaba de divulgar um edital para levar representantes da área cultural (chamam de “empreendedores criativos”, mas nem quero falar aqui sobre como o termo “empreendedorismo” me incomoda por outros motivos) para um evento na Argentina, o Mercado de Indústrias Culturais Argentinas (MICA). Na lista, constam “audiovisual, circo, dança, teatro, design, editorial, hip hop, música e games”.
Para não me precipitar e pagar mica (perdão pelo trocadilho), fui conferir a descrição dos itens. De início, é excelente que os games estejam presentes, pois apesar de ser um setor de expressões simbólicas dos mais presentes na sociedade, muita gente (e bota gente nisso) torce o nariz por ignorância ou elitismo (“não é arte, é entretenimento, ui ui”). Sobre o editorial, trata-se de editores, livreiros, agentes, distribuidores e até autores, mas constam todos os segmentos, de obras técnicas a religiosas. Meu ponto é: por que as outras áreas são nomeadas e a literatura não, permanecendo diluída num quase vale-tudo?
Em diversos espaços culturais, não é de hoje que a velha arte da palavra também deixa de ser nomeada nos materiais de divulgação, escondendo-se no genérico “Ideias” ou como o anacrônico puxadinho das atividades de “dinamização” de bibliotecas.
Quando há investimento público para a produção literária, ela se volta, via Educação, para as compras de livros, que salvam a lavoura do setor editorial. Há outro lado da moeda, especialmente em editoras de livros para crianças e jovens: parte do mercado de livros está dependente de editais. Livros são pedidos já contando não só com o calendário, mas com os formatos já definidos (design, número de páginas, termos permitidos/proibidos, temáticas do momento), de certa forma cerceando a criatividade dos artistas. Outra hora escrevo mais sobre, mesmo porque vários autores e ilustradores têm me relatado o incômodo.
É preciso lembrar também dos casos em que produtores lançam mão de leis de incentivo para a criação de coffee table books que são nada menos que materiais de divulgação ou autocelebração da própria empresa apoiadora, macete que muitos produtores usam para poder captar. Toda vez que vejo esses livros grandes, coloridos e cheios de fotos, caríssimos e com a logo de patrocínio público no verso dá um arrepio. De vez em quando me pedem ajuda porque precisam enviar caixas dessas obras para escolas públicas, onde é despejada essa “contrapartida social”. Os nossos alunos não merecem isso.
Já escrevi outras vezes sobre o assunto, mas me parece que outras causas da invisibilização literária reside no fato de que os próprios profissionais da área não se entendem como classe. Entre eles, percebo que os contadores de histórias são os mais unidos nesse aspecto, talvez pelo fato de muitos também serem atores, classe mais organizada – ou menos desorganizada. Daí que quaisquer reivindicações dependam, quase sempre, do resultado de reclamações que caem na mídia.
Para que eu não receba a pecha de reclamão, é importante salientar que progressos estão sendo feitos. Nesta semana foi divulgado o prêmio Carolina Maria de Jesus, que vai oferecer apoio para a publicação de 40 mulheres, algo importantíssimo para diminuir a desigualdade de gênero que existe na área, como assuntei na coluna passada. Fica como sugestão, porque sei que a turma que toca o projeto lê o PublishNews, que a premiação não se esgote ao dar os R$ 50 mil brutos para cada autora se virar imprimindo o livro, e sim que haja um plano de mediação para que essas obras cheguem aos leitores (e leitoras!) – por exemplo, promovendo atividades literárias e outras ações de mediação, especialmente nas localidades onde elas vivem. No Prêmio Sesc de Literatura, também voltado para inéditos, promovemos um circuito nacional com os vencedores, algo tão importante quanto a publicação em si.
No caldeirão da cultura, a arte literária precisa sair das entrelinhas e ocupar o lugar que merece. Esse estado de sofá-cama, que não é muito confortável nem como uma coisa nem como outra, vem causando uma tremenda dor nas nossas lombadas.
Henrique Rodrigues nasceu no subúrbio do Rio de Janeiro, em 1975. É curador de programações literárias e consultor para projetos e programas de formação de leitores. Formou-se em Letras pela Uerj, cursou especialização em Jornalismo Cultural pela Uerj, mestrado e doutorado em Letras pela PUC-Rio. Já foi atendente de lanchonete, balconista de videolocadora, professor, superintendente pedagógico da Secretaria de Estado de Educação do RJ, coordenador pedagógico do programa Oi Kabum! e gestor de projetos literários no Sesc Nacional. É idealizador do Prêmio Caminhos de Literatura e curador do Prêmio Pallas de Literatura. Publicou 24 livros, entre poesia, infantis, juvenis e romances. www.henriquerodrigues.net
** Os textos trazidos nessa coluna não refletem, necessariamente, a opinião do PublishNews.
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