Uma carta de amor anônima é encontrada pela dona de uma livraria... e, ao terminar de ler, ela fica hipnotizada, como se aquela carta tivesse revolvido sentimentos que há muito estavam adormecidos...
Você sabe o quanto sou apaixonado por você? Estou sonhando? Será que posso acordar? Perder o equilíbrio, pisar em falso... despedaçar meu coração?
Eu sei que estou apaixonado cada vez que te vejo. E também quando estou distante. Nenhum músculo se move. As folhas das árvores caem por qualquer brisa. O ar apenas existe. Eu fiquei totalmente apaixonado sem ter dado nenhum passo...
Você representa tudo o que seria errado, algo que eu deveria tentar esquecer, mas eu não ligo para esses pensamentos... pois só consigo pensar em estar contigo.
Quando estou perto de ti, sinto o roçar dos seus cabelos acariciando o meu rosto mesmo quando isso não acontece. Algumas vezes olho para você à distância, então corro para estar perto novamente. E quando calço os sapatos, descasco uma laranja, dirijo meu carro, ou deito cada noite... eu sempre permaneço, seu"
Em uma cidade na Nova Inglaterra, Helen (Kate Capshaw), a dona de uma livraria, encontrou estar carta entre as almofadas do sofá. Helen acredita que a carta é destinada a ela e tenta descobrir seu autor, pensando em vários homens da cidade. Então inicia um affair com Johnny (Tom Everett Scott), que trabalha na livraria. Mas Johnny lê a carta por acaso e pensa que foi Helen quem escreveu, para ele. Então essa carta passa de mãos em mãos e outras pessoas da cidade leem, cada um achando que aquela carta foi escrita para si.
Uma mulher se muda para uma pequena cidade. Abre uma livraria, trazendo muitos dos seus livros preferidos, mas ninguém quer ler seus livros. Passam a destratá-la publicamente, e alguns moralistas promovem um boicote. Então ela decide criar edições especiais de seus livros. Tão especiais que eram feitos quase exclusivamente para cada cliente. A mágica então acontece. Todos começam a comprar compulsivamente seus livros... cada um por seu próprio motivo.
Esse é outro filme que vale a pena ser visto ou assistido novamente com esse olhar, de que a confeiteira está ali numa posição de editora, que pensa, escolhe e desenvolve o produto que vai produzir, vender, pensando no universo de questões de seu possível público consumidor.
O “dom” de escrever para os leitores
Ao analisar livros, sempre tento separar os que foram escritos para si, os que visam pares e críticos e os que foram escritos para os leitores. O primeiro tem pouco público, geralmente a família; o segundo, um nicho; o terceiro, tem público em potencial imenso. A diferença é sutil, muitas vezes difícil de ser identificada ou distinguida num conjunto de características, mas depois de algum treino é possível entender aspectos comuns nos tipos de texto.
Creio que a origem desse problema – a direção do foco da leitura – reside em nossa formação cultural. Na infância, somos treinados desde pequenos a escrever para nosso avaliador, o professor ou os pais. Quem não se lembra de ter escrito ou ouvido a declamação de redações premiadas, sobre conceitos de responsabilidade, paz mundial, fome na África, guerras, sustentabilidade, etc., ainda que com uma “voz” de criança. Temas que não faziam parte do universo cotidiano infantil, mas agradavam os professores e aos pais. Eu nem me lembro se naquela fase tive interesse ou achei que valia a pena escrever sobre temas de interesse mais pessoal, mas uma certeza eu tinha: não era um caminho apreciado. Uns 20 anos depois reencontrei algumas dessas redações. Eu as relia e sentia uma vergonha imensa, tanto que fui perdendo uma a uma com o passar dos anos. Eram coisas que não valiam guardar.
Textos campeões de cartas
Mas desde que comecei a trabalhar em editoras passei a prestar atenção naqueles autores que se tornavam os campeões de cartas. Venho colecionando esses cases há vários anos porque chamam a atenção, especialmente por existirem tanto em literatura quanto em não ficção, em autoajuda ou livros técnicos, sem distinção. Ficava intrigado sobre objetivo daquilo. O que fazia o leitor gostar tanto daquele texto, a ponto de tocá-lo tão pessoalmente, levando-o a escrever uma carta de agradecimento à editora, o envio de um relato pessoal, um comentário feliz?
E outro aspecto ainda mais interessante para mim foi ver que alguns daqueles livros não eram nem escritos unicamente pelo próprio autor. Alguns tinham um redator profissional balizando a escrita, quase como um ghost writer.
Ainda vi nesses campeões de feedbacks textos com uma escrita bastante simples, quase plana. Então percebi que a questão era ainda mais complexa, pois alguns dependiam da forma, outros do conteúdo, mas em geral, uma combinação incertamente equilibrada entre um aspecto e outro. Passei a chamar privadamente esses aspectos de “alma”.
Então parti para outra proposta da discussão, ainda mais complexa: o que produzia aquela qualidade tão rara e tão buscada nos textos? Seria um dom? Um aprendizado especial? O formato do pensamento, do mundo interior, traduzido em palavras? Um misto de tudo isso?
Eu não sei muito bem dizer o que é, só sei quando enxergo. Nem todo livro em que vi esse “dom” se tornou sucesso, alguns foram sim, bem gigantescos, mas os que passaram desapercebidos nas livrarias (porque para fazer sucesso não basta ser ótimo) pelo menos se tornaram long sellers. Suas vendas foram sustentadas pelo boca a boca... e isso levou a obra para algumas edições.
Quando penso em cada um deles e vejo a parte em comum só consigo enxergar uma falta de padrões, então não adianta, por exemplo, uma entrega total à produção do texto sem entrega da alma. E entregar a alma não requer técnica, uma análise metódica da própria escrita, mas do sentido que se quer com ela. Do desejo e, sobretudo, da capacidade de oferecer ao outro uma experiência tão própria e vívida como foi consigo mesmo. É um processo que lembra a terapia. Escrever um texto que pertença ao outro é se colocar numa posição universal, sair do próprio lugar, tentar se afastar da posição central e oferecer tudo aquilo que gostaria que tivessem lhe oferecido, sem concessões. Portanto, um livro assim não pode ser escrito numa tarde, num prazo curto, pois aí não há uma reverberação, a compreensão global de todos os elementos. A distância e maturação do pensamento se tornam necessárias. A posição de advogado do diabo, tentando extrair as vaidades, a autopromoção, a arrogância, coisas que não podem estar presentes de forma subliminar num texto que deve pertencer ao outro. E isso não significa que ele tenha de estar asséptico... não. Pode ser opinativo, forte, vigoroso sem ser autoritário.
Ao longo do tempo descobri que uma ideia ótima, realizada com muita simplicidade (textualmente) pode ser “consertada”, mas o oposto, uma ideia elaborada com a mais perfeita combinação de recursos estilísticos, se for fraca, torna-se tediosa e impossível de se recuperar.
Tendo mesmo a acreditar que a escrita é um dom. Há formas de se burilar um dom, mas não de criá-lo. Cursos de leitura e escrita podem ajudar a melhorar a qualidade de quem sabe pintar bem as palavras, mas nunca de transformar radicalmente a qualidade dos textos de seus frequentadores. A sólida formação cultural oferece bagagem, conteúdo, informação, que pode ser utilizada de forma acumulativa num texto sem qualquer brilho e alguém com uma formação incrivelmente simples pode conseguir criar textos e histórias capazes de fixar nossa atenção, ainda que possam conter erros gramaticais e sua construção não possuir qualquer sofisticação. O aspecto democrático disso, prefiro ver assim, é que não há qualquer distinção de classe ou grau de instrução. Todo mundo já viu iletrados que são exímios contadores de histórias, não seria diferente na literatura. Felizmente há espaço para todos os tipos de escritores e o que cada um precisa é encontrar a sua voz, o gênero onde seu “dom” pode se manifestar. Esse me parece o grande segredo. Quanto mais cedo uma pessoa encontra a sua voz literária, o seu tipo de escrita, seu tema, seu público, mais cedo ele vai sendo aperfeiçoado. São assim com os contadores de histórias, de piadas, os romancistas, os grandes repórteres, os memorialistas, blogueiros, cronistas...
Descobrindo seu próprio “gênero”, com esforço, cada um pode figurar entre os ótimos, os bons e os editores; estes últimos, diabos que, privados do “dom”, tentam infernizar a vida dos seus autores, e muitas vezes, acabam ajudando-os.
Até a próxima coluna. Se quiserem fazer comentários mandem para o meu blog: http://faroeditorial.wordpress.com
Pedro Almeida é jornalista profissional e professor de literatura, com curso de extensão em Marketing pela Universidade de Berkeley. Autor de diversos livros, dentre eles alguns ligados aos animais, uma de suas paixões. Atua no mercado editorial há 26 anos. Foi publisher em editoras como Ediouro, Novo Conceito, LeYa e Saraiva. E como editor associado para Arx; Caramelo e Planeta. É professor de MBA Publishing desde 2014 e foi presidente do Conselho Curador do Prêmio Jabuti entre os anos 2019 e 2020. Em 2013 iniciou uma nova etapa de sua carreira, lançando a própria editora: Faro Editorial.
Sua coluna traz exemplos recolhidos do cinema, de séries de TV que ajudam a entender como funciona o mercado editorial na prática. Como é o trabalho de um ghost writer? O que está em jogo na hora de contratar um original? Como transformar um autor em um best-seller? Muitas dessas questões tão corriqueiras para um editor são o pano de fundo de alguns filmes que já passaram pelas nossas vidas. Quem quer trabalhar no mercado editorial encontrará nesses filmes algumas lições importantes. Quem já trabalha terá com quem “dividir o isolamento”, um dos estigmas dos editores de livros. Pedro Almeida coleciona alguns exemplos e vai comentá-los uma vez por mês.
** Os textos trazidos nessa coluna não refletem, necessariamente, a opinião do PublishNews
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