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Quem tem medo de escritores negros nas escolas?
PublishNews, Henrique Rodrigues, 29/03/2022
Em sua coluna, Henrique Rodrigues defende o contato entre autores e alunos como estímulo à leitura crítica

Não tem muito tempo, a visita de escritores nas redes escolares era algo bastante raro. Para muitos estudantes, e me incluo nesse grupo, o autor era aquela foto de um senhor barbudo de outro século, que havia criado um monte de coisa abstrata e sobre a qual seria necessário decifrar aquele temido “o que o escritor quis dizer”. Um óbvio processo de deformação de leitores.

Daí que se estabeleceram práticas paralelas entre o que se entende por leitura como obrigação escolar e aquela “por prazer”, como se fossem processos bastante distintos e inconciliáveis. Mais recentemente, com o aumento das compras de literatura contemporânea por editais públicos, somadas ao fácil acesso a escritores pelas redes sociais e em eventos culturais, esse quadro tem mudado.

Se na Educação Básica as leituras literárias ainda são majoritariamente determinadas pelas grandes “editoras didáticas”, que contam com todo um aparato de divulgação e vendas, as universidades têm adotado obras com mais diversidade, cujos autores participam das aulas, contribuindo para o aprofundamento dos debates. De todo modo, visitar escolas tem sido mais comum, especialmente entre autores e livros premiados.

A visita de Jeferson Tenório, vencedor do Prêmio Jabuti com o ótimo romance O avesso da pele (Companhia das Letras), a uma escola particular baiana seria um desses encontros, nos quais uma obra lida e trabalhada em sala de aula é complementada pela presença do escritor. Após o anúncio da visita, Tenório começou a receber ameaças anônimas, conforme divulgado na imprensa. Por questões de segurança, o bate-papo foi realizado de forma on-line, e mesmo assim as mensagens agressivas continuaram.

Infelizmente, não se trata de um caso isolado. A censura e outras formas de ataques a artistas de todas as áreas têm sido recorrentes. No campo da literatura, alguns casos seriam cômicos se não fossem trágicos, conforme já escrevi aqui.

O ódio gerado pela leitura de O avesso da pele tem teor racista, uma vez que está relacionado à negritude do autor e dos protagonistas do romance. É uma ironia perversa que o fato tenha ocorrido logo numa escola: o romance de Tenório trata justamente de um professor negro assassinado por policiais que o haviam tomado por bandido. O recurso técnico da segunda pessoa faz do próprio leitor um personagem a quem o narrador se dirige, o que torna a história ainda mais incisiva. E sendo na Bahia, estado cuja população tem grande orgulho das origens e heranças africanas, o caso ainda chama mais a atenção.

Esse episódio simboliza bastante o momento em que vivemos. Artistas são censurados e atacados como se fossem terroristas, milicianos ocupam posições de poder e uma parcela da população assina embaixo. Por outro lado, não deixa de atentar para o fato de que a literatura, não raro vista como manifestação artística menor e desimportante, incomoda profundamente. Quando pessoas se dispõem a atacar um artista, significa que elas foram cutucadas em algo sobre o qual, acreditam, não se pode falar.

A visita de escritores negros a escolas precisa ser defendida e estimulada por vários motivos. Primeiramente, porque existe a Lei 10639/03, mais conhecida do que devidamente cumprida, que versa sobre a obrigatoriedade do “ensino da História da África e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política pertinentes à História do Brasil”. Em segundo lugar por um fato óbvio: segundo o IBGE, 54% da população brasileira é negra (incluindo pardos), de modo que seria natural os escritores brasileiros também existirem e receberem espaços nessa mesma proporção. Ou não pode? E, por último, porque esse é o perfil étnico também dos alunos, que devem se ver representados na mesma proporção entre os artistas a cuja obra têm acesso.

E vale lembrar: o chamado “letramento literário” é um processo formativo de professores, que busca não só aumentar a bagagem cultural desses profissionais, mas também criar um leque de possibilidades de atividades de mediação. A presença de escritores, rappers, slammers, contadores de histórias e demais profissionais da palavra na vida escolar deve ser parte integrante de uma política pública saudável para a formação da cidadania e da leitura de mundo.

Esse processo ainda não é parte da nossa cultura em termos de escala. Por esses dias, o escritor Joca Reiners Terron me lembrou da grata surpresa que teve no México, onde a vida literária está íntima e sistematicamente ligada à experiência escolar. Quando escritores visitam os espaços de ensino, todos saem aprendendo.

Quando um escritor negro é ameaçado de morte por visitar uma escola, acende-nos um alerta que só pode ser respondido com mais educação, escuta e afeto. Que é, aliás, o grande tema do romance O avesso da pele, livro que merece ser lido e discutido em sala de aula, como tantas obras que podem despertar a consciência cidadã dos alunos.

Afinal, como o narrador do livro diz ao personagem que também somos nós: “Até o fim você acreditou que os livros poderiam fazer algo pelas pessoas”.

Henrique Rodrigues nasceu no subúrbio do Rio de Janeiro, em 1975. É curador de programações literárias e consultor para projetos e programas de formação de leitores. Formou-se em Letras pela Uerj, cursou especialização em Jornalismo Cultural pela Uerj, mestrado e doutorado em Letras pela PUC-Rio. Já foi atendente de lanchonete, balconista de videolocadora, professor, superintendente pedagógico da Secretaria de Estado de Educação do RJ, coordenador pedagógico do programa Oi Kabum! e gestor de projetos literários no Sesc Nacional. É autor de 24 livros, entre poesia, infantis, juvenis. www.henriquerodrigues.net

** Os textos trazidos nessa coluna não refletem, necessariamente, a opinião do PublishNews.

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