Escrevo esta coluna em plena Quarta-Feira de Cinzas, após o resultado oficial dos desfiles das escolas de samba. E afirmo com boa convicção que, em 2024, a grande vencedora do Carnaval foi a literatura.
Pelo menos quatro grandes escolas cariocas tiveram livros como inspiração para os respectivos enredos: a Grande Rio, a partir do romance Meu destino é ser onça (Civilização Brasileira), do camarada Alberto Mussa; já o Salgueiro se baseou em Queda do céu: palavras de um xamã yanomami (Companhia das Letras), do líder indígena Davi Kopenawa e do antropólogo Bruce Albert; a Portela emocionou a Marquês de Sapucaí com o romance Um defeito de cor (Record), da Ana Maria Gonçalves; e a Imperatriz Leopoldinense levou para a Avenida o cordel O testamento da cigana Esmeralda, escrito pelo referencial Leandro Gomes de Barros.
Ninguém está inventando a roda. Em diversos anos as agremiações buscaram nos livros – e mesmo na biografia de escritores – a inspiração para os desfiles. Mas o interessante deste ano é que os enredos, se observados em conjunto, parecem trazer algo que extrapola cada uma das obras/escolas e atinge uma dimensão mais ampla como discurso para a sociedade.
Isso porque a fala dos povos originários dialoga com a preservação da Amazônia, cujo sentimento de proteção está também na narrativa da mãe negra e escravizada que busca o filho. Nesse quadro de formação do nosso povo, a imaginação e o sonho do cordel se juntam. Aliás, cordel que é Patrimônio Cultural Imaterial Brasileiro.
(A propósito, sobre esse protagonismo feminino: aproveito para compartilhar uma pequena alegria que vale prêmio literário. Por conta do meu novo romance Áurea, que trata de uma empregada doméstica que reconta sua história ao se formar no EJA - Educação de Jovens e Adultos, a minha mãe, que também foi doméstica, recomeçou a estudar na semana passada).
Parece que as vendas dos livros inspiradores do Carnaval dispararam após os desfiles. Esse ponto é importante porque temos um país com índices de leituras bem ruis, há poucas bibliotecas públicas convidativas e livraria, ponta final da cadeia, tem uma aqui e outra ali. Mas ao mesmo tempo livros se transformam em objetos de desejo quando apresentados em determinadas circunstâncias, como é o caso da imensa e lotada Bienal do Livro do Rio de Janeiro. Escrevi sobre a última edição aqui.
Por esses dias o escritor Maurício de Almeida publicou uma foto emblemática de uma livraria, em que a seção de Literatura Brasileira, que geralmente já fica escondida nos fundos, era ocupada apenas por materiais escolares. É triste ver como boa parte da nossa produção literária nem consegue ser distribuída e ficar nas estantes das poucas livrarias existentes – e não caiamos na armadilha de citar alguns best-sellers, pois me refiro ao grande volume do que é escrito e publicado e que não consegue circular minimamente.
Recentemente, o escritor Fabrício Carpinejar lembrou que no Big Brother Brasil, programa televisivo extremamente popular, livros são proibidos desde 2020. Ainda que a natureza do reality show seja que os participantes entrem em constantes conflitos para garantir a audiência, impedir a prática leitora, algo que deveria ser tão comum no cotidiano, é mais que um mero desserviço, como um culto à ignorância. Talvez porque uma grande editora não seja anunciante do programa, bancando uma prova de equilibrar livros por horas seguidas, por exemplo. Como diz o cordel que inspirou a Imperatriz: “A cigana Esmeralda / falando em seu natural / disse que neste mundo / a vida é comercial”.
Acho esses paradoxos (Brasil que lê/Brasil que não lê) muito instigantes, pois revelam o tanto que temos de ajustar para que tenhamos um sistema literário mais saudável e profissional para todos os envolvidos. Não há receita, mas sabemos que há caminhos. Agora que o Carnaval acabou, talvez seja hora de (re)começarmos o ano com alguns aprendizados.
Se na maior festa do mundo milhares de brasileiros correram à internet para adquirir um romance de quase mil páginas, é porque chegou a elas a ideia de que, naquele objeto, o povo está vendo suas histórias, jornadas, dores e alegrias. É para isso, também, que os livros servem.
Henrique Rodrigues é diretor do Instituto Caminhos da Palavra, voltado para a promoção do livro, leitura e escrita. Com mais de duas décadas de experiência na área, é coordenador geral do Prêmio Caminhos de Literatura e curador do Prêmio Pallas de Literatura. Nascido no subúrbio do Rio de Janeiro, formou-se em Letras pela Uerj, cursou especialização em Jornalismo Cultural pela Uerj, mestrado e doutorado em Letras pela PUC-Rio. Já foi atendente de lanchonete, balconista de videolocadora, professor, superintendente pedagógico da Secretaria de Estado de Educação do RJ, coordenador pedagógico do programa Oi Kabum! e gestor de projetos literários no Sesc Nacional. Publicou 24 livros, entre poesia, infantil, conto, crônica, juvenil e romance, tendo sido finalista do Prêmio Jabuti duas vezes. É patrono de duas salas de leitura das escolas públicas onde estudou. www.caminhosdapalavra.com.br
** Os textos trazidos nessa coluna não refletem, necessariamente, a opinião do PublishNews.
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