Estamos todos celebrando o sucesso que foi a edição comemorativa da Bienal do Livro Rio. Aos 40 anos, o evento fez dos três pavilhões do Riocentro um entusiasmado formigueiro de gente. Foram muitos recordes, com 5,5 milhões de exemplares vendidos e um público composto por mais de 600 mil pessoas. É coisa pacas.
A programação cultural foi um show à parte, democraticamente cobrindo todos os gostos e segmentos das manifestações literárias: do pop à ABL, dos best-sellers de qualidade duvidosa aos premiados que poucos leem, dos iniciantes aos consagrados, das estrelas globais aos professores e bibliotecários que, quase invisivelmente, batalham pela leitura todos os dias.Aliás, tive uma experiência muito feliz quando, ao participar do Café Literário na mesa “Os livros que me (trans)formaram”, vi na plateia a professora da rede pública que, há mais de três décadas, dissera que eu poderia sim ser escritor quando crescesse. Chamei-a ao palco para receber as merecidas palmas da plateia, uma vez que, se os livros me transformaram e ajudaram a contrariar as estatísticas, foi pelas mãos dos professores. E choramos todos juntos. Há todo um movimento bem forte para dar vez e voz literária a pretos, pardos e pobres, assunto que é tão importante que vou me dedicar a ele na próxima coluna.
Antes de continuar, deixo duas críticas sobre pontos recorrentes.A primeira é à organização da Bienal do Livro: uma vez que se trata de um evento cultural de negócios, com altas cifras circulando, incentivos governamentais suntuosos, ingressos pagos, uma megaestrutura de logística, tudo de primeira, é preciso pagar cachê aos escritores convidados, como tem sido a prática de quase todos os eventos no país, e sobre o assunto já escrevi aqui. Escritor feliz é escritor lido e tratado como profissional que, afinal de contas, está também prestando um serviço. O argumento da visibilidade oferecida não cola mais, e já virou até piada no meio literário – que perde a graça quando, ao perguntar sobre pagamento, ouvimos o famoso “não há rubrica para cachês” e, logo depois, descobre-se que o mesmo evento pagou, com recursos públicos, uma dinheirama para atender exigências de estrelas internacionais.
A segunda é para as secretarias de educação: se uma imagem linda na Bienal do Livro são os alunos da rede pública circulando pelos pavilhões, por que para a galera que estuda à noite, especialmente as turmas de Educação de Jovens e Adultos, não existe visita com ônibus, voucher para compra de livros e tudo o mais? Em tempo: boa parte dos números de vendas se refere a compras com os vales dados a professores e estudantes. Esses alunos mais velhos, que passam por grandes dificuldades e ainda acreditam na educação, são especiais demais para serem excluídos de um evento como esse. Paguei do meu bolso a meia entrada para dez alunas de EJA da escola onde estudei, pois não havia plano de levá-las, e a felicidade delas foi indescritível.
Voltando à via principal que me motivou a este texto: é maravilhoso o que acontece durante os dez dias da Bienal do Livro, mas o problema é justamente o que não acontece no intervalo de dois anos entre uma edição e outra. Ao conversar com colegas do setor, a gente se pergunta: se temos um evento tão lotado de pessoas que amam livros e gastam em média 200 mangos nos estandes, por que tem tão pouca livraria na cidade, concentradas na geograficamente pequena área rica da Zona Sul? Pelo que me lembro, são apenas 2.700 pontos de venda de livros no país. O próprio bairro de Jacarepaguá, onde é realizada a Bienal (e, por acaso, onde moro) não tem nenhuma livraria – até a que existia no shopping mais próximo fechou por falta de clientes.
Nem o tradicional Salão do Livro de Paris, cujo acesso é muito mais fácil que o longínquo Riocentro, recebe tanta gente, e sabemos que na França existe uma cadeia de consumo de livros invejável. Será que as pessoas só querem dar atenção a livros quando o assunto aparece no Jornal Nacional? Não sei, parece que entramos num estado de hibernação livresca assim que a pauta sai de cena, para retornar só dois anos depois.
Para entender isso, podemos puxar o fio de algumas hipóteses.
Quem trabalha no setor sabe que eventos literários em si não formam leitores (e nem vou entrar aqui na controvérsia que esse termo “formação de leitores” traz, pois isso também é assunto para outro fórum). São necessárias ações sistemáticas e cotidianas que, por não conferirem grande visibilidade, ficam deixadas de lado.
Daí, talvez, venha a febre dos eventos literários das últimas duas décadas. Temos FLIs para todo lado, o que é excelente, porém não existe hoje nenhum programa como política pública voltado para clubes de leitura, o estímulo a saraus, a implementação e manutenção de bibliotecas e outras estratégias regulares. Num exemplo simples que me vem: já ouviram falar de Madureira, bairro riquíssimo culturalmente, localizado no subúrbio carioca, tão cantado e celebrado nacionalmente? Não existe biblioteca pública ali – por acaso, onde também já morei.
Vira e mexe são lançados editais de cultura nos quais a literatura é esquecida, gerando uma grita na área. Mas mesmo a onda dos editais tem um lado difícil, pois eles costumam ser anuais, e nada garante que um projeto belamente implementado numa comunidade leitora vá voltar no exercício seguinte. Também sabemos que, em educação e cultura, as verdadeiras mudanças vêm apenas com a continuidade.
Daí que também trazemos outra questão sobre quem administra a grana no país, que já ouvi de “gente de marketing”: as grandes empresas privadas querem mesmo é destinar os recursos a algo que gere mídia para promover suas marcas, e ponto. Já os políticos adoram a repercussão obtida na abertura de um grande evento – à exceção do nada saudoso Marcelo Crivella, prefeito que censurou quadrinhos em 2019 porque dois personagens (ohh!) se beijavam (ohh!) na capa da HQ (ohh, salvemos as crianças!). Então em muitos lugares as feiras e festas podem parecer com a cena de prefeitos inaugurando hospitais, com toda a pompa, sem se preocupar que eles vão funcionar na semana seguinte, o que, como se diz por aí: é raro, mas acontece.
Antes que o assunto da Bienal do Livro vire pauta velha e voltemos aos rame-rames literários (Livro no Brasil é caro? Existe literatura feminina? Livro é entretenimento? Letra de música é poesia?), creio que dei toda essa volta para, talvez, concluir que os eventos literários são maravilhosos, mas tão importantes quanto eles é a necessidade urgente de política pública para a área, com metas claras e de curto, médio e, a mais difícil, longo prazos.
Minha rápida experiência trabalhando no serviço público não me dá muita esperança, pois raramente se fala sobre políticas de Estado, apenas de governos, cujos resultados devem ser colhidos na própria gestão, quando não para favorecer interesses de fornecedores influentes. Que, às vezes, já nem fazem questão de esconder, como foi o caso recente da tentativa de troca dos livros didáticos por material digital em São Paulo, cujo secretário de Educação é – que coincidência! – um empresário neotecnocrata.
Vale lembrar que temos uma lei federal para a área, que pode ser lida aqui. Mas leis que não são postas em prática não passam de boas intenções. Políticas de Estado e com recursos aplicados fariam bem para leitores, editores e toda a cadeia comercial do livro. Pelas cenas que vi no Riocentro, me parece que existe uma demanda grande da população – e não só a cada dois anos. Se a Bienal do Livro desperta leitores, cabe a nós mantê-los acordados.
Enquanto isso, acordado que estou, meu sonho é ir um dia na inauguração da biblioteca pública de Madureira e, de repente, fazer um lançamento na primeira livraria no Riocentro – e aposto que os alunos de EJA iriam aparecer.
Henrique Rodrigues nasceu no subúrbio do Rio de Janeiro, em 1975. É curador de programações literárias e consultor para projetos e programas de formação de leitores. Formou-se em Letras pela Uerj, cursou especialização em Jornalismo Cultural pela Uerj, mestrado e doutorado em Letras pela PUC-Rio. Já foi atendente de lanchonete, balconista de videolocadora, professor, superintendente pedagógico da Secretaria de Estado de Educação do RJ, coordenador pedagógico do programa Oi Kabum! e gestor de projetos literários no Sesc Nacional. É idealizador do Prêmio Caminhos de Literatura e curador do Prêmio Pallas de Literatura. Publicou 24 livros, entre poesia, infantis, juvenis e romances. www.henriquerodrigues.net
** Os textos trazidos nessa coluna não refletem, necessariamente, a opinião do PublishNews.
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