O canto de sereia do marketplace
PublishNews, Jaime Mendes*, 22/07/2020
Em seu artigo, Jaime Mendes discorre sobre a história, a importância e outras questões que os envolvem os marketplaces

Pressupõe-se que exista comunicação entre as pessoas que exercem a atividade livreira e seus clientes. Consegue imaginar, ou sabe de alguma livraria que não tenha um telefone para esse contato, apesar de, talvez “obsoleto” hoje em dia?

Mas nem sempre foi assim. Até a invenção do telefone pelo italiano Antonio Meucci em 1856, (reconhecido pela resolução 269 da Câmara dos Deputados dos USA em 11/06/2002), com demonstração pública em 1860, a comunicação entre o livreiro e o cliente acontecia de forma presencial ou por carta, via serviço dos correios.

Também é difícil imaginar que, hoje, alguma livraria não tenha um e-mail. O serviço de correio eletrônico foi criado em 1971 por Ray Tomlinson dentro da ARPANET. O primeiro serviço gratuito de e-mail, via um navegador na Web, foi o Hotmail, lançado em 04/07/1996, desenvolvido pelos indianos Jack Smith (que teve a ideia) e Sabeer Bhatia. A Microsoft comprou o Hotmail em 31/12/1997.

À medida em que novas tecnologias vão surgindo, elas vão sendo incorporadas ao nosso dia a dia. Além das mencionadas acima, ainda existem outras que as livrarias devem colocar à disposição do cliente para a comunicação entre ambos. Facebook, Instagram, Twitter, Whatsapp, YouTube, Telegram, Skype, Meet etc., etc. Portanto, se existem essas possibilidades para a comunicação, não faz nenhum sentido que não sejam disponibilizadas para a interação com seus clientes. Isto faz parte do serviço, do atendimento ao cliente. E uma boa gestão delas pode ser um diferencial para a fidelização do cliente. Serviço fideliza; preço não.

Nessa mesma linha de argumentação, cada vez mais as editoras conversam com seus leitores, independentemente de onde comprem seus livros. E, por falar nisso, cabe às editoras também oferecer outras opções de leitura de seus conteúdos, que não exclusivamente o livro impresso. O e-book já deveria ter a comercialização disponibilizada ao mesmo tempo do impresso e, quiçá, até antes. O audiolivro deve ser a próxima etapa de suporte a ser disponibilizado com maior frequência, para os livros que sejam adequados a esse suporte, é claro. Fica difícil imaginar um livro de engenharia ou de álgebra funcionando bem no suporte audiolivro.

O mercado do livro é muito lento no que diz respeito às mudanças na comercialização de seu conteúdo, na comparação com outros conteúdos de mesmo segmento na arte e cultura. Na música, entre o fonógrafo de 1877 e o iTunes de 2001, passaram-se 124 anos. Na imagem, entre o cinematógrafo de 1895 e o streaming da Netflix em 2007, a diferença é de 112 anos. No livro, entre Gutemberg imprimindo entre 1450 e 1455 as 1.282 páginas da Bíblia distribuídas por 73 vols., e comercializando as 180 cópias que fez, e o início do e-commerce em 1995, passaram-se 545 anos.

Mesmo se pensarmos somente nos 25 anos entre 1995 e 2020, quantas livrarias e quantas editoras ainda não estão na internet? Muitas, é a resposta, apesar dos exemplos de sucesso no mercado, dos inúmeros congressos de e-commerce, da diminuição do custo de entrada, da importância da comercialização por multicanal e de alguns alertas (escrevi no blog em fevereiro de 2009 sobre isso). Precisou vir uma pandemia, que virou a economia de pernas para o ar, para mostrar a importância da presença na internet, no e-commerce. E, agora, virou uma correria para recuperar o tempo perdido.

O Bruno Mendes, do #coisadelivreiro, no Podcast do Publishnews de 06 julho passado, comentou que a demanda por e-commerce e construção de lojas virtuais aumentou 110%. Ressaltou também que:

“não é só a construção das lojas que resolve o problema (...) Na conversa, elencou três pontos para que o livreiro ou o editor possa vender bem na internet. Além de conhecer bem o seu cliente, o que Bruno considera fundamental, o vendedor precisa entender (1) de tráfego de internet ou como impulsionar, patrocinar e encontrar o seu público na internet; (2) de estratégia de copy-writing ou o texto de venda do produto; e (3) de funil de vendas ou o fluxo até que o cliente efetivamente compre o seu produto.”

Neste momento, a estratégia principal para o e-commerce, parece ser o Marketplace. E o que é Marketplace? Basicamente uma plataforma de e-commerce onde vários varejistas podem vender, mediante o pagamento de uma comissão para o Marketplace, que gira em torno de 15% sobre a venda total (produto + frete). Portanto, não é necessário ter um site próprio para vender nesse tipo de e-commerce.

O primeiro Marketplace foi lançado em 1995, uma start-up do Vale do Silício fundada por Pierre Omidyar, e seu nome era Auction Web. Já ouviu esse nome antes? Não? E e-Bay? Então, são a mesma “pessoa”. A partir de 1997 o nome e-Bay passa a ser usado e está aí até hoje, como um dos gigantes do e-commerce.

Em março de 1999 Jeff Bezos participa do congresso da Association of American Publishers e, no seu discurso, diz o seguinte:

“Não nos vemos como uma livraria nem como uma loja de música. Queremos ser o lugar onde uma pessoa encontra e descobre tudo que quer comprar.” - Citado por STONE, Brad. A Loja de Tudo: Jeff Bezos e a era da Amazon. Rio de Janeiro, Intrínseca, 2014.

Seguindo essa visão, a Amazon lançou no ano 2000 seu Marketplace nos USA com a venda direta de produtos por diferentes varejistas. Começou também com o livro, desta vez o usado. Todas as ofertas de venda de um produto apareciam na mesma página desse produto da própria Amazon. A ideia e a pretensão de ser a “Loja de Tudo”, só é possível com a estratégia de comercialização via Marketplace. E, nisso, Bezos é visionário e sabe por em prática, sabe executar. Em cinco anos começou a transformar um incipiente e-commerce de um só produto, o livro, numa das maiores empresas do mundo. Os grandes custos da comercialização no varejo são a compra dos produtos, a armazenagem desse estoque e a logística para a entrega. O Marketplace elimina isso.

Pensando pelo viés do livro, pode-se dividir os Marketplaces em dois grandes tipos:

1- Os que também vendem livros e, portanto, são concorrentes das livrarias e editoras que estão nesses Marketplaces. São exemplos a Amazon; B2W com Americanas, Submarino e Shoptime; Magazine Luiza etc.

2- Os que são somente Marketplaces, sem uma área própria de aquisição e comercialização de livros. Portanto, não são concorrentes diretos de quem está nesses Marketplaces. São exemplos o Mercado Livre; Estante Virtual (mesmo tendo sido comprada pelo Magazine Luiza); Portal dos Livreiros; OLX; Cnova com Casas Bahia, Extra, Ponto Frio etc.

No Brasil o primeiro Marketplace foi o Mercado Livre, fundado em agosto de 1999 na Argentina, e que aqui começou as operações em outubro desse mesmo ano.

Em outubro de 2005 foi lançada a Estante Virtual, que mudou a forma de se vender livros usados. Com o sucesso, muitos sebos deixaram de ter loja física aberta, operando somente através do Marketplace. A Estante Virtual foi comprada pela Livraria Cultura em dezembro de 2017. Esta, por sua vez, pelas dificuldades com a Recuperação Judicial, vendeu-a em março de 2020 ao Magazine Luiza.

Em maio de 2014 a Saraiva já tinha Marketplace no seu site para várias categorias de serviços e produtos, mas não para livros. E, numa decisão questionável, ela preferiu ser um fornecedor no Marketplace do Walmart (ver aqui no PN) para o livro, CDs, DVDs e artigos de papelaria.

A Amazon começou a vender livros físicos no Brasil em agosto de 2014 e lançou seu Marketplace de livros em abril de 2017 (aqui no PN). Talvez em reação a isso, os dois maiores vendedores de livros da época, a Saraiva e a Livraria Cultura, tomaram as seguintes decisões:

Em maio de 2017 a Livraria Cultura passa a vender seu acervo de livros pelos sites das Casas Bahia, Extra e Ponto Frio (aqui no PN);

Em novembro de 2017 a Saraiva passa a vender livros pelo sites da B2W (Submarino, Americanas e Shoptime), (aqui no PN);

Em setembro de 2019 a Saraiva passa a vender livros no site da Amazon. Já seria o desespero? (aqui no PN).

O Marketplace é uma realidade. Editoras, livrarias, distribuidoras e outras empresas, que não são de nenhum dos tipos anteriores, também vendem livros via Marketplace. Portanto, a questão não é estar ou não no Marketplace, mas, em qual deles estar para fortalecer o mercado do livro como um todo, isto é, para que as livrarias físicas (e as editoras) continuem a existir nos próximos anos. (ver artigo anterior no PN).

Assim como na livraria física é necessário criar condições e estratégias para que as pessoas entrem na livraria, também assim o é para a internet. E o termo usado para medir a quantidade de pessoas que entram num site é: tráfego.

Portanto, a escolha mais fácil que se faz para vender no e-commerce, é entrar num Marketplace e, escolher os de maior tráfego é o óbvio. Entretanto, se esquece que nenhum deles começou grande. Todos começaram do zero, inclusive Amazon, Mercado Livre, Submarino etc.

Nos últimos 11 anos, de 2009 a 2019, foram publicados no Brasil quase 200 mil novos títulos.

A Amazon disponibiliza cerca de 90 mil, isto é, nem a metade dos lançamentos nesse período.

Outros vendedores no Marketplace completam a oferta:

Isso acontece também no Submarino que disponibiliza cerca de 55 mil títulos. Outros vendedores oferecem muito mais, conforme abaixo.








Segue uma pequena análise da disponibilidade de um best-seller:

Tanto na Amazon quanto no Submarino, existem mais de 40 vendedores diferentes. Entretanto, o preço mais baixo é, e no caso dos best-sellers, sempre será, do próprio Marketplace. Então, qual sentido das livrarias e distribuidores oferecerem esse livro no Marketplace? Só vão conseguir vender em caso de ruptura de estoque da Amazon, Submarino, Magazine Luiza etc., o que será raro. Pelo preço nunca vão conseguir ganhar a disputa. Caso tenha dúvidas, faça a seguinte experiência:

1- Selecione um livro best-seller que a Amazon tenha em estoque;

2- Coloque a sua oferta desse mesmo livro com um preço menor do que o da Amazon, mesmo que você não tenha desconto da editora para tal;

3- Espere uma hora ou menos e verá que a Amazon vai oferecer esse livro com um preço menor do que o seu.

A Amazon tem tecnologia automatizada e capacidade de processamento para, rapidamente, alterar o preço. Ela tem por princípio sempre oferecer o menor preço. É claro que ela prefere não perder margem nem vender com prejuízo, mas o fará se necessário for, para que seu preço seja sempre o menor. Houve um tempo em que tive que contratar a ferramenta Sieve para monitorar os preços, pois Saraiva, Submarino, Cnova, Cultura etc ficavam sempre reclamando que a Amazon estava com o preço muito baixo. Ao pesquisar, ela realmente estava com o preço mais baixo, mas era sempre em resposta a uma descida de preço que algum desses outros clientes tinha feito antes. E por quê? Porque precisa garantir e aumentar sempre o tráfego para o site. Usei a ferramenta Similar Web para as pesquisas (dia 20/07), mas pode-se usar também SEMrush, Alexa, Ubersuggest etc. Seguem alguns exemplos:

Casos em que a Amazon perde muito no volume de tráfego para Mercado Livre e Americanas.

Agora uma narrativa importante a contar. Em abril de 2018 o Submarino começou a privilegiar mais o Marketplace de livros do que a compra direta das editoras, inclusive com a saída de gestores importantes da categoria. Ao longo desse ano editoras importantes, como a Companhia das Letras, disponibilizaram todo o catálogo no Marketplace, como noticiou o PN. Ao longo de 2019, voltou a comprar um pouco mais das editoras, mas ainda ficou muito longe dos valores de 2016 e 2017. No fim desse ano de 2019 o Submarino assinou (aqui no PN) com a Metabooks para ter os metadados de forma rápida e eficaz. Em maio de 2020 mais um movimento do Submarino, com a cessão de dados para a lista de mais vendidos do PN. Numa entrevista para próprio PN, Anna Sotero, diretora comercial da B2W, disse que estava focada na retomada do crescimento da categoria livros. O gráfico abaixo ajuda a explicar o movimento do Submarino.

Fica claro que a Amazon e o Magazine Luiza passaram, e em muito, o Submarino no tráfego. Isso implica a perda de milhões em faturamento em outras categorias de produtos. Assim, em 2020, o Submarino aumentou muito as compras diretas das editoras para garantir que tenha condições comerciais para a disputa de preço nos best-sellers com a Amazon, por exemplo. Se voltarem no texto um pouco acima, verão que o preço de venda na Amazon e no Submarino é exatamente o mesmo, até nos centavos, para o livro Sapiens. Um desconto de mais de 37%. As livrarias recebem com 40%. Logo, impossível competir no preço.

Existe um outro dado importante a comparar. Duas livrarias de referência, de fundo de catálogo, duas livrarias de curadoria, duas livrarias com livreiros experientes, duas livrarias com e-commerce, duas livrarias com lojas físicas nas duas maiores cidades do país. Uma atua com muita presença nos Marketplaces da Amazon, Submarino, Mercado Livre, Magazine Luiza etc. A outra não está em nenhum Marketplace. Qual das duas terá maior visibilidade na internet, maior tráfego?

Resposta no gráfico abaixo.

Estão tecnicamente empatadas. E é a Travessa que não está em nenhum Marketplace!

É impossível disputar tráfego e preço com os gigantes do Marketplace. Os números são de milhões de visitas, contra alguns milhares de visitas nos sites de livrarias e editoras.

Mas existe uma maneira de concorrer, que é ter um produto que o Marketplace, que é seu concorrente no livro, não tenha. Como já disse, nem a Amazon consegue ter em estoque próprio todos os livros, pois economicamente não compensa. Fica muito caro. Então, por que entregar de bandeja um diferencial que a sua livraria pode ter? A Amazon não se importa que o livro de baixo giro não seja entregue por ela. O que ela, e qualquer outro Marketplace precisa, é que a percepção do cliente seja de que encontrou o livro na Amazon ou nesse Marketplace. Portanto, não se iludam, no Marketplace, o cliente é mais do dono do Marketplace, do que de quem lá vende. Como não basta falar/escrever, vamos à comprovação:

Note-se que quase 50% do tráfego da Amazon vem de alguém que, simplesmente, digitou a palavra Amazon na internet. Isso já está consolidado. Essa percepção já existe, de que na Amazon tem. Amazon tem mérito nisso.

Os Marketplaces precisam do produto livro! É fato. (ver aqui no PN). Entretanto, para editoras e livrarias é melhor estar em qual tipo de Marketplace?

É melhor estar no Marketplace e esquecer de investir na geração de tráfego para o seu site?

Por que as editoras não podem se transformar num Marketplace para as livrarias?

Neste caso, a oferta tem que ser além do produto livro. Que produtos são afins ao livro? Estantes, lápis, canetas, cadernos tipo moleskine, marcadores, vinho, canecas, chá, cafés em cápsulas, máquinas de café...? Enfim criar um ambiente, um sistema de produtos e serviços para o cliente, no qual o livro seja o centro.

É o trabalho diário e com foco no seu negócio, no seu site, na sua loja, na sua editora, que pode fazê-lo crescer ou até diminuir, se tomar decisões equivocadas. Qualquer escolha sempre terá consequências. Mas é melhor escolher com base em dados e em análises.

Tal qual Ulisses (ou Odisseus) na sua volta para Ítaca, é possível ouvir o canto da sereia, mas sem deixar o barco afundar. Para isso ele colocou cera nos ouvidos dos marinheiros, que assim continuaram navegando e desviando das rochas, enquanto ele, que estava amarrado ao mastro, pode ouvir o canto da sereia sem o risco de se jogar ao mar atrás dele e, assim, morrer.


* Sobre Jaime Mendes - Desde janeiro de 2020 Jaime Mendes reside em Portugal onde cuida da empresa Nova Guanabara, do Grupo GEN, que distribui os livros do grupo para o mercado português e para outros países da Europa e África. Ele trabalha com livros desde 1981 quando, ao entrar para a faculdade de História no IFCS/UFRJ, foi um dos responsáveis pela cooperativa dos estudantes. Em 1986, já formado e com o fim da cooperativa funda, com mais quatro amigos, a Livraria Bruzundangas no próprio IFCS. Sai da sociedade em 1988 ao ser contratado pelo Arquivo Nacional | MJ. Em 1992 foi um dos sócios-fundadores da Contra Capa Livraria. Em 1995 pediu exoneração do emprego público para se dedicar exclusivamente à livraria que abriu a segunda loja em 1998, no Leblon. Jaime deixa a sociedade, por opção pessoal, em setembro de 1999. Em outubro desse mesmo ano entrou na editora Zahar, onde trabalhou por quase 12 anos, na função de gerente comercial. Entre maio de 2011 e novembro de 2012 trabalhou na editora Cosac Naify em São Paulo onde exerceu a função de diretor comercial. De janeiro de 2013 a dezembro de 2019 exerceu as funções de diretor comercial no GEN | Grupo Editorial Nacional, holding fundada em 2007, e que é líder no segmento de publicações e conteúdos CTP (científico, técnico e profissional) no Brasil.

** As ideias expostas não representam as de quaisquer empresas ou instituições a que estou ou estive vinculado.

*** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do PublishNews.

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[22/07/2020 09:30:00]