
Em Pernambuco, a produtora cultural e mediadora Eliz Galvão cresceu frequentando o Centro Comunitário Vivendo e Aprendendo, entidade ligada à cultura e à educação popular na cidade de Camaragibe. Após se formar em publicidade no Recife, fundou em 2009 a Liga Criativa, empresa que comanda até hoje e que dá forma a projetos culturais. Um deles, o Histórias do meu Povo, dedicado a registrar em livro histórias orais em quatro municípios pernambucanos. “Eu me senti a Fernanda Montenegro em Central do Brasil”, brinca. Outro projeto, criado em 2019, foi o Ler Para Ser – com foco em contação de histórias, mediação literária, encontros com mestres griôs da oralidade e na publicação de uma revista, centrada na divulgação de projetos de incentivo à leitura realizados no estado. A iniciativa conta com um xodó da produtora: uma biblioteca móvel, sobre rodas, com dezenas de livros de diversos assuntos. Mais de 15 dessas bibliotecas foram distribuídas entre cidades do interior do estado com dificuldades no acesso a novos volumes. No total, Eliz Galvão estima que suas iniciativas já tenham impactado cerca de 900 pessoas em 14 cidades. Em 2025, o Ler Para Ser também promove ações no Centro Comunitário Vivendo e Aprendendo, completando na vida profissional – e pessoal – da produtora uma espécie de ciclo.
Projetos como os do Ibeac e da Liga Criativa são exemplos de iniciativas que todos os dias refletem e agem sobre a formação de leitores. Segundo dados do Indicador de Alfabetismo Funcional (Inaf) divulgados em maio, o índice de analfabetos funcionais no Brasil caiu de 39% para 29% em 23 anos, mas a porcentagem de indivíduos proficientes na leitura é constante na série histórica. Para a Ação Educativa, ONG que comanda a pesquisa, isso revela que os ganhos se acumulam nos níveis intermediários, etapas que deveriam ser apenas de transição. Esse é apenas um dos problemas graves que o Brasil precisa enfrentar se quiser se transformar em uma nação de leitores.
A Revista PublishNews conversou com profissionais envolvidos na questão da leitura para entender os erros cometidos pela sociedade e pelos gestores públicos quando o assunto é formação de leitores. A percepção geral é de que os profissionais e pesquisadores conhecem muitas das respostas – sugeridas ou escancaradas em pesquisas, como a Retratos da Leitura. Algumas ideias são praticamente unanimidades: o papel da escola e da família é crucial para que crianças e adolescentes adquiram o hábito da leitura e se interessem por livros o quanto antes. A participação e formação de mediadores de leitura – com capacidade de atrair público, conhecimento sobre os livros e recursos financeiros disponíveis – é outro pilar que merece atenção. Capilaridade e condições sustentáveis para a produção, comercialização e distribuição dos livros, ou seja, o funcionamento saudável do mercado editorial, também entram na conta. Não é novidade para ninguém que o país enfrenta dificuldades estruturais e históricas relacionadas à cultura e à educação.

Desde a divulgação da mais recente edição da Pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, em novembro de 2024, as manchetes chamaram a atenção para o fato de que, pela primeira vez desde o início da série histórica, em 2006, há mais não-leitores do que leitores no Brasil – mesmo com a definição, digamos, elástica que o Instituto Pró-Livro, em consonância com órgãos internacionais, dá a “leitores”: aqueles que leram ao menos parte de um livro nos três meses anteriores à pesquisa. Mas outros dados são igualmente reveladores da situação em que o país se encontra.
Segundo o estudo, 36% dos brasileiros têm alguma dificuldade de compreender o que leem. Outros 29% dizem que não gostam de ler. Mais de 90% dos entrevistados entre 14 e 39 anos afirmaram usar seu tempo livre na internet e nas redes sociais, e somente 20% deles disseram ler livros nesse tempo. Mais: 54% dos leitores responderam que ninguém os influenciou ou incentivou a ler – número obviamente maior ainda entre não-leitores, 85%.
A socióloga Zoara Failla, coordenadora da Pesquisa, organizou um livro reunindo análises e opiniões de especialistas sobre como transformar o quadro atual. Entre as ações necessárias e possíveis – no âmbito das políticas públicas – estão: garantir o letramento a todos os brasileiros; garantir o direito a crianças e jovens de descobrirem a literatura e o gosto pela leitura, formando mediadores de leitura, instalando bibliotecas infantis e espaços lúdicos em creches e escolas infantis, promovendo programas voltados a valorizar e integrar as famílias nas práticas leitoras; rever currículos para formar educadores leitores capazes de desenvolver práticas leitoras significativas e envolventes, com formação continuada e remunerada para professores que já estão em salas de aula; retomar o programa de universalização de bibliotecas escolares e a formação de bibliotecários que atuem como mediadores e “agitadores”; promover campanhas para despertar representações positivas no imaginário da população sobre a importância da leitura.

A professora e pesquisadora Renata Junqueira de Souza, que estuda o assunto desde os anos 1980, fala em “gestos embrionários de leitura”: as crianças gostam do objeto livro mesmo antes de ler – tocar, virar a página, olhar as figuras –, e o contato diário com o livro aumenta a janela de atenção da criança. A pesquisadora, professora aposentada sênior da UNESP/Presidente Prudente, onde fundou e coordenou o Centro de Estudos em Leitura e Literatura Infantil e Juvenil Maria Betty Coelho Silva (CELLIJ), há décadas está envolvida de diferentes formas nos programas de compra de livros por parte do governo.
“Desde o PNBE, a gente orienta o MEC no sentido de que os livros das editoras precisam ser entregues aos professores junto com um material de apoio, que os instrumentalize sobre as obras e como trabalhar em sala de aula. Hoje, no PNLD Literário, você recebe um catálogo de editora, apenas com uma resenha. Então, há um distanciamento entre as políticas de aquisição e as práticas de formação de leitura. Em primeiro lugar, se observa a insistência em não atender ao que a gente, da academia, tem pontuado sempre: a necessidade da formação de mediadores.”

A Head da unidade de negócios em Literatura da FTD Educação, Isabel Lopes Coelho, especialista em literatura infantojuvenil, avalia que uma formação continuada dos educadores, apropriada para o ensino literário, é um passo fundamental na discussão – que precisa, segundo ela, fazer parte do dia a dia de quem trabalha com livros e educação. “É necessário pensar num gap que existe, retratado nas pesquisas, de que as crianças deixam de gostar de ler e passam a ter dificuldades de leitura e compreensão. Quando o conhecimento é deslocado para outros suportes, o livro é desautorizado desse papel e perde importância”, analisa.
Papel do mercado
Para o diretor comercial e de marketing da Editora Rocco, Bruno Zolotar, uma das questões mais importantes na discussão sobre leitura e que envolve diretamente o mercado editorial é evidenciada por dados do Panorama de Consumo de Livros no Brasil: 26% dos não-compradores de livros alegam que a falta de uma loja ou livraria perto de onde se vive é o principal motivo para não adquiri-los.
“Tem muito pouco ponto de venda de livros no Brasil”, afirma Zolotar. “Com o tempo, perdemos coisas importantes: havia mais de 30 mil bancas de jornal que vendiam livros, por exemplo. O mercado sofreu muito na época da quebra das livrarias (2018 foi o marco inicial de um processo que redundaria na falência da Saraiva e no fechamento de toda a rede da Livraria Cultura), porque muito shopping ficou sem livraria. A pessoa vai ao shopping e compra outras coisas. Não está no seu repertório, as pessoas não passam por livros no dia a dia. É uma questão de distribuição”, diz.
Para o executivo, seria benéfico que livrarias não pagassem IPTU, trabalhassem sob um sistema de tributação diferente ou fossem classificadas como pontos de cultura. “Tem que ter livrarias mais populares mesmo. Mas o comércio em geral tem dificuldades, é uma categoria difícil de trabalhar.” Outra movimentação de mercado que, segundo ele, poderia criar valor em torno do livro são campanhas de marketing massivas. “Tenho visto um investimento menor em marketing em comparação ao que havia antigamente. Digital mudou muito, puxou muito investimento. Mas qual foi a última grande campanha de um livro? Sinto falta de campanhas grandes, isso atrai um público que não é o habitual.”
A relação entre a questão social da leitura e a produção editorial e industrial do livro é direta e indissociável, de acordo com Flávia Bravin, sócia e diretora sênior da Saber, braço editorial do Grupo Cogna. “Um país que lê pouco gera tiragens menores, o que eleva custos, encarece o livro e compromete a diversidade editorial. Com menos leitores, temos menos editores e menor bibliodiversidade. Ou seja, temos impacto social, pois a leitura é a base de formação cidadã, e industrial, pois, sem escala, o livro perde competitividade. O mercado editorial é ciente do seu papel e trabalha em diversas frentes para incentivar a leitura, desde a concepção do livro (pesquisas de tendência, escolhas de capa e de título, curadorias) até sua promoção em eventos, redes sociais e junto a influenciadores.”
O consenso para mudar o panorama, ou seja, para transformar o Brasil em uma nação de leitores, é de que o esforço deve ser coletivo, coordenado e contínuo. Bel Santos Mayer e Eliz Galvão, por exemplo, que o digam.

Fontes do infográfico: 6ª edição da Pesquisa Retratos da Leitura (2024), Panorama de Consumo de Livros no Brasil (janeiro de 2025), Inaf 2024
*Matéria veiculada na primeira edição da Revista PublishNews (impressa), lançada em junho de 2025, com tiragem de 10 mil exemplares e distribuição gratuita, tanto física quanto digitalmente (em breve). Quer contribuir financeiramente com o canal? Clique aqui.