Diário de Frankfurt. Dia 3: Das conexões que levamos conosco
PublishNews, Ing Lee*, 1º/11/2024
Em seu terceiro e último relato, Ing encerra sua participação na Feira de Frankfurt e compartilha seu passeio extra em Berlim

Por fim, o último dia de evento para mim, que foi a sexta-feira (25), foi o mais marcante de todos. Primeiro, porque descolei um encontro de última hora com uma editora-chefe russa que soube que eu estaria lá e me chamou para uma reunião, que aconteceu ali mesmo na área de alimentação! Quem sabe muito em breve não veremos a concretização de alguns dos frutos que plantei na Feira?

Depois, topei com a presidente da CBL e diretora geral da VR Editora, a Sevani Matos, que é a mesma editora que irá publicar minha história em quadrinhos João Pé de Feijão no próximo ano. É engraçada a sensação de encontrar brasileiros pela primeira vez logo quando vocês estão fora do país!

A Tamires Atzingen, gerente executiva editorial da VR, também estava ali e me levou junto em algumas reuniões que fez com editoras estrangeiras, nas quais fiquei de penetra e embasbacada com o capricho de projetos gráficos delas. As capas com relevos brilhantes, laminações holográficas localizadas, hot stamping, cortes não somente coloridos como também laminados e o uso indiscriminado de pantone… Meus olhos de capista se encheram de brilho folheando os catálogos e exemplares, ao mesmo tempo que uma melancolia tomava conta dos meus pensamentos porque não conseguia esquecer da triste realidade do mercado brasileiro, em que esses tipos de ornamentação encarecem muito o preço do livro e se limitam somente a títulos ou projetos muito específicos. Sinto que aprendi muito vendo a Tamires entrando em ação, nesse vislumbre de como são feitos esses jogos de negociação em Frankfurt.

Foto instax que tiramos juntos no Mr. Lee | © Ing Lee
Foto instax que tiramos juntos no Mr. Lee | © Ing Lee
Jennifer Kim, dona da livraria e selo editorial canadense Nooroongji Books (nome que vem do 누룽지, a parte tostadinha e crocante do arroz coreano que sobra no fundo da panela), também de ascendência coreana e com quem eu havia me conectado logo no primeiríssimo dia, me convidou junto com Lianne (a Young Talent da Holanda) e um amigo dela, Morinobu Yoshida, assistente de direitos autorais na The Rights Factory, para jantarmos num restaurante coreano depois do fim da Feira, pois ela estava com saudades daquela comida – sentimento que percebi que compartilhava com ela quando começamos a comer! E aí foi a minha vez de arrastar a Tamires para o meu mundinho, no qual muitas noites terminam num restaurante coreano, e a levei para o nosso jantar no Mr. Lee (que, curiosamente, partilha do mesmo sobrenome que eu).

Um aspecto que acho muito bonito em minha cultura é a de dividir comida, pois as porções de restaurantes coreanos comumente são feitas para serem compartilhadas entre as pessoas. E assim saboreamos uma noite de trocas e relatos, partilhando uma mesa com pessoas de quatro continentes diferentes, como Lianne observou em determinado momento e que eu complementei dizendo que éramos como os Power Rangers do mercado editorial. A comida tem mesmo um poder incrível de conectar as pessoas.

De repente, Berlim!
De repente, Berlim!
Para quem achou que minha saga acabou por aí, muito pelo contrário. Eu ainda iria para Berlim na manhã seguinte, então peguei um trem até lá e fiquei hospedada na casa de uma querida amiga. Aproveitei para passar num evento super conhecido no mundo dos quadrinhos de lá, o 24-Stunden-Comic am Wannsee 2024 (“24-Horas-de-Quadrinhos no Wannsee 2024”), que é um desafio cuja proposta é produzir uma HQ de 24 páginas em 24h. Este ano o evento recebeu mais de 40 quadrinistas de vários países e origens, tendo sido coorganizado pelo jornalista e especialista em HQs Augusto Paim e a Inko – Escola de Mídias Criativas. Foi incrível ver um evento de tamanha magnitude sendo organizado por outros brasileiros fora do país. Eu, como uma pessoa com histórico de duas lesões na mão – ambas causadas por desenhar quadrinhos –, fui apenas observar, a convite do Augusto, que depois me levou para conhecer mais da cena quadrinhística local com o Nik Neves, outro capista que mora entre o Brasil e a Alemanha.

ft1: No evento de quadrinhos com Augusto Paim | ft2: Uma das livrarias especializadas em quadrinhos que me levaram para conhecer
ft1: No evento de quadrinhos com Augusto Paim | ft2: Uma das livrarias especializadas em quadrinhos que me levaram para conhecer

A estátua das Mulheres de Conforto em Berlim
A estátua das Mulheres de Conforto em Berlim
Também fiz questão de prestar reverência à estátua em homenagem às Mulheres de Conforto coreanas, que foram as mulheres escravizadas sexualmente pelo Império Japonês durante o período da 2ª Guerra Mundial e da ocupação japonesa na península coreana. Uma ferida aberta entre os dois países até hoje, essa escultura existe em diversos lugares no mundo e representa a resiliência das sobreviventes que batalham pela retratação oficial do governo japonês. Infelizmente, a mesma estátua corre o risco de ser retirada por pressão do governo japonês junto a políticos locais, uma disputa narrativa que uma ONG chamada Korea Verband, integrada por coreanos e descendentes que moram na Alemanha, está protagonizando para manter viva a memória dessas mulheres.

Apesar do objetivo inicial da ida a Berlim ter sido meramente um passeio turístico, acabou virando muito mais que isso: fui convidada para palestrar na Freie Universität Berlin, no Instituto de Estudos Latino Americanos (LAI). Pude discorrer sobre o contexto da hierarquia racial brasileira e como se deu o desenvolvimento dos coletivos asiático-brasileiros de que participei, e contextualizei como minha trajetória artística se conecta a essas questões.

Embora já tenha ministrado inúmeras palestras e superado a vergonha de falar em público há um tempo, foi a minha primeira vez me apresentando totalmente em inglês para um público estrangeiro. Mas, como já estava afiadíssima e com a apresentação bem amarrada, correu tudo bem. Na verdade, foi excelente! Após a minha fala, tivemos uma discussão com as mediadoras e o público que foi não somente bastante produtiva, como também muito afetiva e bonita. Comparamos as experiências que nos diferenciavam e as semelhanças que encontrávamos em nossas trajetórias, e foi simplesmente algo muito lindo de se vislumbrar. Senti-me acolhida e ouvida, e voltei da Alemanha de coração quentinho pelas conexões que construí durante toda a viagem, e que tenho certeza que continuarão comigo muito depois dela.


*Ing Lee é coreano-brasileira e surda oralizada, natural de Belo Horizonte(MG) e reside atualmente em São Paulo(SP). É bacharel de Artes Visuais pela UFMG, atua como quadrinista e ilustradora freelancer desde 2018. Já trabalhou para clientes como Penguin UK, Wim Wenders Foundation, KCC, Bioré, Companhia das Letras, Sesc-SP, LUSH, Japanese Breakfast, Piauí e Revista Pesquisa Fapesp. Este ano, foi a vencedora do Prêmio Jovens Talentos da Indústria do Livro do PublishNews em parceria com a Feira do Livro de Frankfurt, sendo a primeira capista do mercado editorial a ganhar o prêmio. Foi artista convidada do FIQ 2022 e da Bienal de Quadrinhos de Curitiba em 2020; em 2022, foi júri no Prêmio João-de-barro na categoria "Livro Ilustrado". É representada internacionalmente pela agência de ilustração IllustrationX e também pela agência literária Três Pontos. Ministra cursos, palestras e workshops para instituições como Sesc SP e Instituto Tomie Ohtake. Entre seus trabalhos de HQs, destacam-se as webtiras sobre a imigração coreana no Brasil para o Sesc Av. Paulista, e o projeto de webcomic 'João Pé-de-feijão'. Paralelamente, integrou o programa Amigos da Embaixada da Coreia em 2022, como promotora da cultura coreana no Brasil; fez parte do Mitchossó (coletivo da diáspora coreana da Casa do Povo), Lótus Feminismo Asiático e foi co-fundadora do Selo Pólvora (coletivo artístico feminista asiático-brasileiro).

[01/11/2024 08:00:00]