Ing Lee, vencedora do Prêmio Jovens Talentos 2024 conta quais foram suas primeiras impressões na Feira do Livro de Frankfurt
Bem que me disseram que, ao desfazer as malas, você percebe o quanto as coisas mudaram desde que teve que fazê-las pela primeira vez. Apesar de ainda estar digerindo tudo o que essa viagem significou para mim, posso afirmar que eu voltei me sentindo outra pessoa – no melhor sentido possível.
Confesso que cheguei insegura, sem saber direito onde estava pisando naquele solo inédito. Enquanto surda oralizada, apesar de ser capaz de ler textos acadêmicos e as reuniões com clientes estrangeiros em inglês já terem virado rotina profissional, nunca tive a experiência de viajar sozinha internacionalmente – e isso implica me virar numa língua que não era a minha, sem poder me esconder atrás de alguém para conversar no meu lugar com os outros, como eu fazia em viagens anteriores. Então foi uma sensação incrível e libertadora perceber que, conforme os dias iam passando, fui me tornando mais autoconfiante e parei de usar de escudo o crachá que eu tinha impresso pra essa viagem, que eu carregava no pescoço com os dizeres "I AM DEAF (hard of hearing)", que significa “sou surda (tenho perda auditiva)” (“hard of hearing” é uma terminologia em inglês que se refere à indivíduos com perda auditiva parcial, de moderada a severa), solicitando a paciência e colaboração das pessoas).
Se nos primeiros dias eu me apoiava em ferramentas de transcrição de áudio para acompanhar palestras do evento, no último dia eu sequer sentia a necessidade de pegar no celular e ouvia as palestras somente com o auxílio da leitura labial mesmo, olhando diretamente para os palestrantes.
As fronteiras que se estreitavam não se resumiam somente às barreiras da linguagem que fui superando, mas também se refletiam na forma de me conectar com as pessoas. Entender o outro e se fazer compreendido é apenas o primeiro passo para construir laços, e a a Feira consistia basicamente em construir esses relacionamentos, em aproximar-me de figuras com contextos completamente distintos dos meus e ainda assim ser capaz de tecer similaridades entre nossas vivências.
Logo no primeiro dia de evento, fui impactada pela fala de Patricia Evangelista, sobre seu livro Some people need killing: A aemoir of murder in my country, uma não ficção sobre o governo de Rodrigo Duterte, nas Filipinas, e seu sangrento legado disfarçado de "guerra às drogas". Tive a oportunidade de ler seus primeiros capítulos no voo de ida a Frankfurt porque fiquei interessada em sua palestra quando a vi na programação do evento. A autora, que ao vivo apresenta uma presença tão firme e desconcertante quanto as palavras que escreveu em seu livro, traz a reflexão de que toda guerra é guiada por narrativas, e expõe o que acontece quando não contestamos as histórias que nos são contadas. Em tempos tão estranhos onde impera a disputa narrativa, é impossível não tecer paralelos entre a realidade de um país tão distante e a nossa.
Enquanto uma pessoa cronicamente online que sou, não pude deixar de lembrar das brincadeiras que lia no falecido Twitter (agora X), comparando o comportamento social de brasileiros e filipinos, e fazendo com que internautas de ambas nacionalidades se proclamassem "primos", por partilharem a habilidade de rir sobre sua própria desgraça. Inclusive, tive que fazer essa piada dos "filiprimos" para uma outra mulher filipina com quem pude conversar após a palestra de Patricia e ela riu bastante, mencionando que os chinelos Havaianas fazem bastante sucesso em seu país. Formidável.
O dia basicamente consistiu em pular de palestra para palestra, desde a Kids Conference até a fala da autora filipina, e ficar de tempos em tempos consultando o mapa impresso do evento. Tive que passar várias vezes nos balcões de informação para conseguir me localizar – o espaço parecia um labirinto de tão imenso. Além disso, pude conhecer algumas das organizadoras do evento e também as vencedoras do prêmio Young Talents de outros países, como Lianne Enkhuizen (Holanda), fundadora da livraria The Base Bookspace, com curadoria focada em literatura feita por autores negros; e Helen Daughtrey (Alemanha), fundadora do clube do livro e podcast Mädels, die lesen (Meninas que leem).
No fim do primeiro dia, já com pés cansados por percorrer tantos pavilhões e halls distintos, partilhei um mapo tofu com Lianne num restaurante chinês nas proximidades de nossos hóteis. Na volta, passamos por uma das ruas consideradas as mais perigosas de Frankfurt, segundo o Reddit, chamada Moselstraße. Sinceramente, como moradora da capital de São Paulo e ávida frequentadora do bairro Bom Retiro – que é simplesmente vizinho da cracolândia –, achei tudo relativamente tranquilo. E pensar que me preocupei com os alertas de europeus dizendo que era uma região assustadora… Rindo do perigo, saquei o meu celular e fiz uma foto de um dos móteis (ou prostíbulo? nunca saberemos), porque achei incrível a junção das luzes neon com as decorações de coração em sua fachada. Morar em São Paulo e ser fã de Wong Kar-wai faz com que eu seja capaz de admirar esses pequenos detalhes dos cenários urbanos.
*Ing Lee é coreano-brasileira e surda oralizada, natural de Belo Horizonte(MG) e reside atualmente em São Paulo(SP). É bacharel de Artes Visuais pela UFMG, atua como quadrinista e ilustradora freelancer desde 2018. Já trabalhou para clientes como Penguin UK, Wim Wenders Foundation, KCC, Bioré, Companhia das Letras, Sesc-SP, LUSH, Japanese Breakfast, Piauí e Revista Pesquisa Fapesp. Este ano, foi a vencedora do Prêmio Jovens Talentos da Indústria do Livro do PublishNews em parceria com a Feira do Livro de Frankfurt, sendo a primeira capista do mercado editorial a ganhar o prêmio. Foi artista convidada do FIQ 2022 e da Bienal de Quadrinhos de Curitiba em 2020; em 2022, foi júri no Prêmio João-de-barro na categoria "Livro Ilustrado". É representada internacionalmente pela agência de ilustração IllustrationX e também pela agência literária Três Pontos. Ministra cursos, palestras e workshops para instituições como Sesc SP e Instituto Tomie Ohtake. Entre seus trabalhos de HQs, destacam-se as webtiras sobre a imigração coreana no Brasil para o Sesc Av. Paulista, e o projeto de webcomic "João Pé-de-feijão". Paralelamente, integrou o programa Amigos da Embaixada da Coreia em 2022, como promotora da cultura coreana no Brasil; fez parte do Mitchossó (coletivo da diáspora coreana da Casa do Povo), Lótus Feminismo Asiático e foi co-fundadora do Selo Pólvora (coletivo artístico feminista asiático-brasileiro).
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