Parece que foi ontem. E foi mesmo, considerando que escrevo dia 14 de outubro. Mas me refiro à primeira edição da aventura literária em Paraty. A cada ano, é impossível não trazer de volta as inúmeras lembranças dessas mais de duas décadas. São muitas histórias contadas, ouvidas e protagonizadas sobre aquele chão de pé-de-moleque.
Participei de sete mesas da programação, falando de assuntos os mais variados, sempre com um bom público e, felizmente, bons parceiros de mesa, entre novos conhecidos e camaradas de longa data. Emendei mesas, quase estando em duas ao mesmo tempo – ou, como se dizia, “acendendo um cigarro no outro”. Essas discussões também me fizeram refletir bastante sobre diversos aspectos da vida literária brasileira hoje.
Logo na primeira mesa, antes da abertura oficial, participei da ótima programação da Casa PublishNews, tratando dos desafios de eventos literários. Senti que a casa estar cheia logo de cara parecia um presságio favorável para toda a Flip. E foi mesmo.
Pode parecer estranho afirmar isso, mas é minha conclusão de muitos anos, inclusive como disse na coluna passada: os eventos literários, sozinhos, não estimulam o consumo regular de livros. Daí termos grandes feiras lotadas convivendo com números tão mixurucas de vendas e resultados sofríveis de avaliações do desempenho de leitura. Em leitura não adianta só o churrasco dos eventos: precisamos, sobretudo, do feijão com arroz cotidiano.
O que me leva a outra mesa de que participei, sobre o Plano Nacional do Livro e da Leitura, que vai chegar chegando no decênio 2025-2034. Promovida pelo MinC na Casa de Cultura, considero uma das mais importantes deste ano porque, junto com o batalhador secretário Fabiano Piúba, foram apresentadas as propostas bem ousadas para a área, contemplando diferentes frentes de trabalho: atenção às salas de leitura das escolas, bibliotecas comunitárias, programa de agentes de leitura, as manifestações literárias das oralidades e outras. Acompanho o PNLL desde sua criação em 2006, e fiz questão de lembrar que considero o eixo da mediação o mais sensível e que merece muita atenção. Agentes de leitura são tão necessários quanto agentes de saúde.
É preciso estimular a leitura a escrita, especialmente na descoberta de novos autores, para quem os primeiros passos são mais difíceis. Papeei em algumas mesas sobre os prêmios literários. Talvez seja o assunto sobre o qual mais tenho sido convidado para debates nos últimos tempos, provavelmente pelo caso do (agora moralmente finado) Prêmio Sesc, bomba que explodiu entre a última Flip e esta.
Aliás, pela primeira vez em décadas a instituição não convidou os vencedores anteriores para passagem de cetro aos novos, continuando o triste boicote a Airton Souza e Bethânia Pires Amaro, cujos respectivos livros Outono de carne estranha e O ninho, últimos publicados pela Record antes de ela encerrar a parceria de vinte anos, estão conquistando cada vez mais leitores e outros prêmios. Talvez tenha sido o receio de que lessem algo que pudesse incomodar a família tradicional brasileira. Felizmente, a editora levou os dois autores, que fizeram ótimas mesas. Estive em uma com o Airton na Casa Record, na qual o público se espantou quando o editor Rodrigo Lacerda relatou uma fala da reunião com a diretora do Sesc: para ela, Airton e eu deveríamos ter saído presos da Flip passada por conta daquela leitura da página inicial do romance premiado. Que tempos, hein?
Tempos de luta, de seguir em frente e abrir caminhos. E o Prêmio Caminhos. Nas ruas, fui parado três vezes por candidatos ansiosos pelo resultado, que sairá em alguns dias. Vamos levar a pessoa vencedora para a Fliporto mês que vem, e a obra será ser lançada pela Dublinense em 2025 num evento literário muito especial (sem spoilers!), e vêm mais novidades por aí.
Por falar em novidade, um momento muito especial foi ver a Tatiana Nascimento, vencedora do Prêmio Pallas de Literatura, do qual também sou curador, na casa Poéticas Negras. Durante o papo, a autora cuidava de sua filha Yrê, de apenas 3 anos. Fiquei muito comovido e admirado com a cena, impossível de ser protagonizada por um escritor do sexo masculino. As escritoras precisam ter sempre muito espaço, em virtude de suas condições de trabalho serem sempre mais complexas. Afinal, se elas leem mais, compram mais livros e são maioria nos eventos, deveriam ter o espaço proporcional.
Apesar de uma chuvinha em cima (o trocadilho mais executado no evento), os preços de pousada e restaurantes inflacionados, além do local pouco adequado para as pequenas editoras no outro lado do rio, parece que circulou um forte sentimento de felicidade em Paraty nesses dias. A programação principal teve uma curadoria, se não cirúrgica, muito acertada ao protagonizar a literatura brasileira com ótimo recorte. Fiquei particularmente feliz e representado ao ver autores que acompanhei surgindo, como Bruna Mitrano e José Falero, merecidamente sentados na mesa principal. E um acerto a ida do Felipe Neto, que tem feito mais pela popularização da literatura do que toda a elite literária umbilical e besta junta. Sobretudo para brigar contra a censura, tema do qual tratei em mesas e que, pelo andar da carruagem, não deve sair do radar tão cedo.
Se saí da Flip de 2023 sofrendo um grande constrangimento moral por apenas acreditar no que é correto, encerrei a deste ano naquele estado cansado e cheio de energia. Fui até DJ na Estante Virtual junto com Eliana Alves Cruz, Estevão Ribeiro e Elisa Lucinda, fazendo a galera sacudir o esqueleto. Paraty virou baile!
Nesses dias, houve uma sensação de estarmos em outro tempo e lugar, como aquela suspensão da descrença do Coleridge. Pensando nas desigualdades brasileiras, andar numa cidade que respira literatura nos parece uma ficção, na qual diferentes pulsões poéticas surgem a cada esquina e nos atravessam, pelo menos por alguns dias. Voltei de Paraty cheio de afeto, esperança e força para tocar os barquinhos da vida. E não estou sozinho nessa luta.
Henrique Rodrigues é diretor do Instituto Caminhos da Palavra, voltado para a promoção do livro, leitura e escrita. Com mais de duas décadas de experiência na área, é coordenador geral do Prêmio Caminhos de Literatura e curador do Prêmio Pallas de Literatura. Nascido no subúrbio do Rio de Janeiro, formou-se em Letras pela Uerj, cursou especialização em Jornalismo Cultural pela Uerj, mestrado e doutorado em Letras pela PUC-Rio. Já foi atendente de lanchonete, balconista de videolocadora, professor, superintendente pedagógico da Secretaria de Estado de Educação do RJ, coordenador pedagógico do programa Oi Kabum! e gestor de projetos literários no Sesc Nacional. Publicou 24 livros, entre poesia, infantil, conto, crônica, juvenil e romance, tendo sido finalista do Prêmio Jabuti duas vezes. É patrono de duas salas de leitura das escolas públicas onde estudou. www.caminhosdapalavra.com.br
** Os textos trazidos nessa coluna não refletem, necessariamente, a opinião do PublishNews.
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