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A literatura-cajuína
PublishNews, Henrique Rodrigues, 20/06/2023
Em sua coluna, Henrique Rodrigues reflete sobre como os eventos literários podem criar desdobramentos locais

Acabo de retornar de Teresina (PI), onde tive a oportunidade de compor a coordenação curatorial de mais uma edição do Farpa – Festival Arte da Palavra, realizado pelo Sesc. Cada evento literário é único e nos deixa marcas, mas esse teve algo a mais que está reverberando ainda. Em nós, que estamos do lado de dentro do balcão, nos artistas e, o mais importante, no público.

Vale esclarecer que o festival não acontece do nada. Ele é parte de um projeto maior, o Arte da Palavra – Rede Sesc de Leituras. Ao longo de todo o ano, 51 artistas (entre prosadores, poetas, contadores de histórias, cordelistas, slammers, rappers e oficineiros) circulam por 100 cidades do país, em formato de intercâmbio, realizando cerca de 500 atividades. Escolhemos uma cidade para sediar um festival com parte do grupo, sempre mesclando com a produção local. Uma metodologia que implementamos é garantir a permanência dos artistas em todo o evento, o que faz toda a diferença, pois eles se colocam como plateia e aprendem mais sobre as outras forma de fazer e pensar a literatura no Brasil hoje. O resultado é algo único.

E já fica a dica para os curadores que leem o PublishNews: vale a pena separar mais um dinheirinho na planilha para que os artistas não façam apenas uma apresentação-relâmpago, a fim de que tenham uma imersão na cidade e na cultura de onde é realizado o evento.

(Porque uma grande questão de um evento é que ele seja como o próprio nome diz: é vento. É preciso mais que isso, porque de efêmero já temos coisa demais hoje em dia).

Foi nessa onda que os debates se mesclaram, dialogaram entre si, derramando as temáticas umas sobre as outras. A baiana Luciany Aparecida, ao tratar de memória e ancestralidade, entendeu-se “fanfiqueira”, conceito aprendido na mesa anterior com a jovem autora de fanfics capixaba, Juane Vaillant. E como Marcelo Moutinho leu um belo conto sobre uma mulher trans e Kiusam de Oliveira nos explicava como lutar contra o racismo desde o berço: tudo sem cair nas armadilhas fáceis do panfletário. E como a ideia de territorialidade trazida pela autora indígena Aliã Wamiri Guajajara emocionou todos os presentes ao mesmo tempo em que o riso transgressor do pernambucano Adiel Luna trazia de volta as origens da nossa poesia popular. A autora mineira Jéssica Balbino nos ensinou a compreender o corpo como espaço de vida e desejo, enquanto a poeta cariri Nathalia Leal nos fez entender que ontem, hoje e amanhã são um único grande abraço do tempo.

O mestre Bráulio Tavares, enciclopédico que é, nos atualizava sobre como os videogames são para o século 21 o que o cinema foi para o 20: a grande nova forma de contar histórias. Na esteira, Jeferson Tenório revelou como havia aprendido com o filho que o romance O avesso da pele tem similaridades com Minecraft. Uma surpresa foi que Suzana Vargas, também colunista daqui, quis aprender mais sobre esse universo, a quem foi apresentada pelo editor gaúcho João Varella. Como bem disse o Guimarães Rosa, “mestre não é quem sempre ensina, mas quem de repente aprende”.

É provável que a maioria dos leitores aqui já associe o termo cajuína à famosa canção homônima de Caetano Veloso, feita para o pai de Torquato Neto. O grande poeta e jornalista, idealizador da Tropicália, tirara a própria vida aos 28 anos.

O verso alexandrino inicial “Existirmos a que será que se destina?” nos salta como questionamento metafísico diante desse misterioso abismo do real. A pergunta nos inquieta enquanto olhamos a população que foi ao centro cultural participar de debates. Sabemos que hoje, com tantas coisas para se fazer no mundo, sair de casa para dedicar umas horas a um evento já é digno de palmas. Um jovem aluno, chamado Erick (resguardando seu nome verdadeiro), fez perguntas que, de fundo, nos incitavam a pensar em como tantas questões poderiam ajudá-lo a se entender e compreender essa realidade tão multifacetada em que vivemos.

Por coincidência feliz, o Farpa foi realizado num centro cultural chamado de Sesc Cajuína. Resistente ao modelo industrial, a bebida precisa de dedicação e cuidado para ser feita: é preciso selecionar a fruta, tratar em diversas etapas, espremer, filtrar, ferver, até chegar ao estado que tem cor de néctar. Talvez seja como as diferentes literaturas e os diferentes leitores que se encontraram nesses dias de aprendizado e afeto: tudo com o devido cuidado e o tempo necessário para as coisas que, instigantes e doces, devem permanecer.

Henrique Rodrigues nasceu no subúrbio do Rio de Janeiro, em 1975. É curador de programações literárias e consultor para projetos e programas de formação de leitores. Formou-se em Letras pela Uerj, cursou especialização em Jornalismo Cultural pela Uerj, mestrado e doutorado em Letras pela PUC-Rio. Já foi atendente de lanchonete, balconista de videolocadora, professor, superintendente pedagógico da Secretaria de Estado de Educação do RJ, coordenador pedagógico do programa Oi Kabum! e gestor de projetos literários no Sesc Nacional. É autor de 24 livros, entre poesia, infantis, juvenis. www.henriquerodrigues.net

** Os textos trazidos nessa coluna não refletem, necessariamente, a opinião do PublishNews.

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