Três Perguntas do PN para Eliane Robert Moraes, organizadora do livro 'O corpo desvelado'
PublishNews, Guilherme Sobota, 03/02/2023
Professora de literatura brasileira da USP lança antologia do conto erótico brasileiro com aula aberta no Recife

Eliane Robert Moraes | © Renato Parada
Eliane Robert Moraes | © Renato Parada
O Corpo Desvelado - Contos Eróticos Brasileiros (1922-2022) (Cepe Editora), organizado pela professora de literatura brasileira da USP Eliane Robert Moraes, reúne 71 contos de 63 autores brasileiros e dá mais um passo no verdadeiro panorama da literatura erótica brasileira empreendido pela pesquisadora nos últimos anos. Depois de Antologia da Poesia Erótica Brasileira (Ateliê Editorial, 2015) e O corpo descoberto: Contos eróticos brasileiros (1852-1922) (Cepe, 2018), entre diversas outras produções sobre autores específicos, o novo livro avança no tempo, reúne o melhor da produção erótica brasileira dos últimos 100 anos e oferece um painel sem par sobre o próprio desenvolvimento da literatura brasileira no período.

O livro tem lançamento especial nesta sexta-feira (3), em Recife, com uma aula aberta ao público conduzida por Eliane, sobre a história dos contos eróticos nacionais. Será no Museu do Estado de Pernambuco – Mepe (Av. Rui Barbosa, 960, Graças – Recife / PE), das 17h às 20h.

Sobre o processo editorial do livro e sobre a literatura erótica brasileira, Eliane Robert Moraes respondeu às três perguntas do PN.

PublishNews – Como se deu o processo editorial deste livro, entre a seleção dos contos e a publicação do volume? Houve por exemplo algum caso em que um autor ou espólio não autorizou ou não quis participar por algum motivo?

Eliane Robert Moraes – Do meu lado, foi um pouco selvagem. O erotismo literário no Brasil é uma floresta muito pouco explorada. Muito rica, mas pouquíssimo explorada. Então a gente vai entrando e é uma aventura. Essa pesquisa é uma aventura. Eu organizei outras antologias, como a de poesia, mas pela Cepe, com O corpo descoberto, muitas coisas foram caindo em minha mão. Amigos mandam textos, até os escritores. Tenho minha pequena arca em que vou colocando tudo que recebo. Então, antes de tudo, fui ler aquilo que eu já tinha. Depois, verifiquei vacâncias, de períodos, por exemplo. Fiz uma pesquisa em bibliotecas, e o que é um lado muito simpático da pesquisa, em coleções particulares, de gente que coleciona livros eróticos. Não só no Brasil, mas também em Portugal. Levantei um material muito extenso. Em O corpo desvelado, século 20 e 21, o mais difícil foi mesmo selecionar os contos. Selecionei pelo que eu adorava, buscando grande qualidade literária, esse é um critério soberano. Mas o mais difícil para mim foi fazer a seleção. No século 19 não aconteceu isso, porque tinha pouca coisa. Lá, a pesquisa foi mais difícil.

No caso da editora, houve todo um processo de direitos autorais. Quase tudo tem copyright, não estão em domínio público. Tivemos um ou outro autor que acabou não abraçando a coisa. Mas de forma geral, tanto autores como herdeiros acolheram muito o projeto.

PN – Você vem organizando antologias interessantíssimas sobre a literatura erótica brasileira há alguns anos. Me parece que no início do século 20, antologias/coletâneas de autores contemporâneos (e não necessariamente de um gênero literário) causavam discussões bastante acaloradas no cenário literário brasileiro. Como antologista, quais suas impressões sobre isso? Há reclamações de leitores nesse sentido, que chegam a você, por exemplo? De maneira mais geral, qual o papel da antologia?

Eliane – Fiquei pensando que com uma antologia erótica, acaba ocorrendo o contrário. Em antologias mais genéricas, autores reclamam de não estar. Com erótica, as pessoas pensam: será que quero estar nessa antologia? Tem um viés moral. Não sofri muito isso, mas com as minhas antologias, por vezes, havia autores e autoras que estranhavam um pouco. Sobretudo, aqueles que não escrevem literatura erótica, mas escreveram um ou dois eróticos. Por exemplo, o Otto Lara Resende, você não relaciona ele com o erotismo. Lygia Fagundes Telles. Ela escreveu muito pouca coisa erótica. Mas tem um conto genial, “Tigrela”, e outros. Também tem um genial do Otto. O Modesto Carone, grande tradutor de Kafka, novelista genial, tem dois contos (eróticos) exemplares. São nomes diferentes de Hilda Hilst, Sérgio Sant’Anna, que são autores que já sabemos que tem o pé forte no erótico. Há particularidades.

Acabei de me dedicando a essas antologias porque eu queria estudar esse campo e não tinha nada organizado nesse sentido no Brasil. Desde o início do século 20, o Mário de Andrade já denunciava a falta de uma “pornografia organizada” no país, nas palavras dele. Ele diz assim: “bota dois brasileiros juntos, estão falando porcaria” (risos). Senti que ele estava falando comigo. Então, vamos lá, vamos trabalhar. A particularidade da antologia erótica é interessante. Aqui, é uma primeira organização. Ainda tem muita coisa que fica de fora, mas é uma antologia específica, tem uma singularidade.

PN – A partir da leitura desses textos, é possível medir como a literatura brasileira foi mais ou menos pudica em determinados períodos? Por exemplo, seria possível apontar paralelos entre um contexto político moralista e uma literatura erótica pujante, ou vice-versa?

Eliane – Foi a literatura que foi pudica ou foi a sociedade? Isso é um ponto nevrálgico da erótica literária. Muitas vezes, numa sociedade que tende à censura, muito repressiva, o que acontece é que os escritores vão buscar formas de falar o erotismo sem se valer das palavras obscenas. Vão fazer alusões… isso é muito interessante, porque é por excelência o trabalho literário. Dizer de outro jeito. O erotismo tem as suas palavras técnicas, um vocabulário indecente… mas sempre se pode dizer de outro jeito. Há textos incríveis na literatura que dizem de outro jeito. Um clássico como o Lolita do Nabokov, não tem uma palavra obscena. O Machado de Assis é incrível. Tem contos muitos cheios de erotismo com aquele vocabulário muito resguardado. Missa do galo, Uns braços. Sempre é possível dizer de outro modo. Também é possível dizer do modo obsceno… então é muito complexo. Não é porque um autor se resguardou que ele será menos erótico, por vezes será muito. A literatura sempre consegue dar conta para dizer o que quer dizer. Às vezes, a palavra erótica é metáfora de outra coisa.

Chamo atenção para uma parte final do livro que é a Linha do tempo. Percebemos nesse século, entre 1922 e 2022, a quantidade da produção erótica. Obviamente, a partir de 1970 e 1980, o número de textos eróticos cresce muito. Mas não devemos dizer que não foram feitos antes. O moralismo às vezes não deixou que esses textos fossem publicados. Hoje em dia não temos mais esse corte… o que não implica que não tenhamos políticas moralistas horrorosas, como no governo anterior. Mas o próprio mercado não está em sintonia com essas políticas. Temos maior liberdade de expressão do erotismo. Não importa se uma débil como essa Damares fala essas conversas para boi dormir. A sociedade já se livrou disso. Marquês de Sade foi proibido durante tanto tempo, hoje é publicado no mundo inteiro em traduções e com todas as honras. Isso vale também para a nossa Hilda Hilst, que pode ter escandalizado alguém nos anos 1990, mas o livros foram publicados e continuam sendo.

[03/02/2023 10:40:00]