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João Cabral de Melo Neto ou a última entrevista (?)
PublishNews, Suzana Vargas, 11/02/2022
Em sua coluna, Suzana Vargas relata a primeira e última vez que esteve frente a frente com o poeta, uma de suas grandes admirações

Talvez a última foto tirada no dia em que visitei a casa de João Cabral de Melo Neto
Talvez a última foto tirada no dia em que visitei a casa de João Cabral de Melo Neto
Chovia quando toquei a campainha no portal altíssimo do edifício onde João Cabral de Melo Neto morava com a poetisa Marly de Oliveira. Mal sabia eu que seria a primeira e última vez que estaria frente a frente com o poeta. E que (talvez) aquela fosse sua última entrevista. Nunca teria imaginado ir até sua casa, não fosse pela solicitação do amigo jornalista e poeta português Joaquim Antônio Emídio para contatá-lo a fim de nos receber num breve depoimento. Falei com Marly, com quem eu já havia conversado algumas vezes por telefone, e ela abriu a agenda do poeta às 16 horas de uma quarta-feira para nós dois.

Talvez não precisasse dizer que João era uma das minhas grandes admirações (e temores da poeta mais para lírica que tento ser). Ninguém que desejasse se aventurar na poesia ou mesmo trabalhar em revistas e projetos literários, como eu fazia, poderia ignorar sua enorme importância como ícone de uma geração que transformou o poético, dando-lhe carnadura, materialidade, cortando suas asas para as fazer nascer de outra forma. Esse era João para mim: lapidação da palavra, discussão da tradição lírica em que sempre estive mergulhada. Ele me ajudava a respirar de outro modo nos meus arroubos poéticos. Era sua leitora admirada e ele meu poeta-enigma: o avesso das bondades literárias que faziam muitas vezes a poesia brasileira trepidar.

Tinha-o visto / ouvido / lido em inúmeras entrevistas nos jornais e televisões, havia decorado muitos e muitos poemas seus (tenho uma memória literária obsessiva), mas nunca havia estado com ele pessoalmente. Sabia que tinha estatura baixa, sabia da extrema magreza, da calvície, do nariz proeminente e das poucas palavras, mas nunca imaginei que o encontraria tão frágil.

Nos sentamos numa sala confortável, clara, mas não tanto por causa da chuva, com o pé direito alto, aconchegada pelo tom ocre dos sofás e das almofadas.

Joaquim preparava sua potente máquina de jornalista/repórter experimentado e um pequeno gravador quando João entrou, andando muito devagar, muitíssimo mais magro do que eu imaginara e de uma brancura ímpar. Veio envolto num poncho, creio, mexicano, que abandonou para sentar-se no sofá.

Eu estava ainda sem saber bem o que dizer, deixava as perguntas para o Joaquim. Queria ser mera espectadora, coisa difícil de fazer na frente de um dos nossos maiores poetas vivos, mas fiz as apresentações de praxe, nelas incluída minha admiração de décadas que resultava agora naquela quase mudez.

Ele foi gentil e monossilábico, mas conversou conosco mais do que imaginei que faria no espaço de uma hora. Sua voz denunciava a extrema fragilidade em que se encontrava. Ao vê-lo assim, debilitado, meu companheiro de empreitada largou a máquina, guardou o gravador e fez um aceno com a cabeça a me dizer que "não – não poderia gravar". Talvez nem tirar fotos. Seria um esforço inaudito para o poeta e uma quase crueldade da nossa parte. Mas tirou seu bloco de anotações da bolsa.

Conversamos sobre assuntos já bastante explorados pelos jornais brasileiros: literatura, leitura, sua vida nas embaixadas, a Espanha, relações com Portugal onde morou, mais precisamente na cidade do Porto. Falamos sobre sua obsessão pela forma, pelo rigor estético, claro, mas tudo isso são nuvens na minha memória, pois a emoção de estar ali não me deixava quase prestar atenção aos dados objetivos. Mais adiante posto a matéria escrita pelo Joaquim e publicada no O Mirante, seu jornal em Santarém.

A tudo ele respondia com gentileza reservada, mais monossilábico, talvez, que de costume e com muito cansaço na voz.

Inicialmente, no momento em que o vi adentrar na sala de visitas, ele me parecera menor ainda. Sempre que volto a essa lembrança me vem a imagem terna de um passarinho com frio. Não parecia em nenhuma hipótese um homem cuja obra havia ganhado fama nacional e internacional, com prêmios da magnitude de um Newstadt Intenational Prize (1992), o Reina Sofía (1994), Prêmio Camões (1990) e outros. Sem contar a vaga número 37 da Academia Brasileira de Letras.

Ao vê-lo daquele modo, já acomodado no sofá com pulôver vermelho, tratei de me aprumar, sossegar o coração para ouvi-lo. Ouvir os intermitentes “compreende?” que utilizava em sua fala como se fossem vírgulas, como se o mundo tivesse dificuldade para entendê-lo em sua vida de reclusão, quase inacreditável para um diplomata.

Instado a responder às perguntas a ele dirigidas, discorreu sobre seus últimos tempos. E foi com tristeza que percebi a imensa amargura e melancolia que rondava aquelas palavras, fruto da profunda depressão que o abatera nos últimos anos de vida. Que vivera na diplomacia para sustentar a família, que não frequentara universidades e tivera uma infância marcada pelos engenhos de cana nordestinos, já sabíamos.

Pessoalmente, eu já fizera contato com sua depressão uns dois anos antes, quando ele aceitou participar de uma Roda de Leitura no Centro Cultural do Banco do Brasil e não compareceu, deixando um auditório lotado à sua espera. Naquela noite eu – que voltara para casa meio derrotada por sua ausência - tive quase um choque quando o atendi ao telefone. Quase não acreditei. Ele havia ligado para minha casa para se desculpar comigo e mal conseguia pronunciar as palavras um pouco trôpegas: “Eu sou um fracasso incorrigível, minha filha, me perdoe” me disse ao final. Lembro de não atinar com o que dizer, mas a ideia de que um dos maiores poetas brasileiros havia ligado para dizer aquilo ficou martelando na minha cabeça durante dias. Eu só conseguia linká-lo (para usar nosso neologismo) às palavras sucesso, glória e uma vida glamorosa entre embaixadas e tais.

Capa do artigo escrito pelo jornalista Joaquim Antônio Emídio e que pode ser baixado no fim deste artigo
Capa do artigo escrito pelo jornalista Joaquim Antônio Emídio e que pode ser baixado no fim deste artigo
Voltando à tarde de outubro na Praia do Flamengo, ouvi-o atentamente queixar-se da proverbial dor de cabeça, da cegueira que avançava, da falta de amigos, da concorrência à sua casa apenas de postulantes à ABL ou seja: do interesse indisfarçável e utilitário por sua pessoa. Tudo muito triste. Ele mostrava naquela tarde sua face mais escura em que pese sua poesia referir-se por demais à claridade, à luz, às cores que invejava de Miró, seu amigo e artista favorito.

Mas – vocês perguntarão por óbvio – onde estarão meus aprendizados tão alardeados nessa coluna? E eu responderia que na vida a gente aprende também pelo avesso, pela foto em negativo, pelos contornos. Fiz então uma das poucas perguntas da tarde quando o assunto rumou para doença e morte. Citei seu amigo Murilo Mendes, de cujo verso cristão me lembro sempre nessas ocasiões “Nascer é muito comprido”. Ao ouvir isso ele confessou que estava com medo de morrer. Surpresa, argumentei com uma pergunta simples apenas na aparência:

__ Mas, João, você não acredita em Deus. De onde virá esse medo então? Se você não acredita em vida após a morte, esse medo não faz nenhum sentido, argumentei. Ele parou, me olhou com vaga atenção e disse: “Você tem razão, Suzana, eu não devia ter medo”.

Até hoje não entendi sua resposta, se era uma afirmação do medo e (talvez) da possibilidade de um Deus ou se era apenas uma constatação a que se chega pela obviedade do exposto. Coisa que eu separaria para bobagem, evocando aqui a expressão recorrente de Manoel de Barros.

Ao ouvi-lo naquela tarde chuvosa, fiquei pensando (a partir da minha fé cristã) que a perspectiva da morte, nos põe a todos de joelhos. Trata-se de uma ideia que teimamos em esquecer diariamente, justamente porque é a única coisa real que possuímos. E essa realidade bate à nossa porta do palácio ao casebre. Por isso a ideia de Deus ou sua pseudoausência. Lembrei das palavras de fantástico pensador que é Terry Eagleton em seu ensaio A morte de Deus na cultura, onde escreve sobre as contradições e dificuldades à existência de Deus na era moderna. Diz ele: “o ateísmo de modo algum é tão fácil quanto parece. Ao rejeitar Deus o assassinamos ou adotamos uma forma envergonhada de pseudoreligião.” João estaria nesse momento da vida chegando a alguma conclusão? Era o que eu pensava com algum ceticismo no fundo de minhas próprias dúvidas.

A conversa continuou não por muito tempo. Joaquim não quis perder um registro e fez algumas fotos para ilustrar sua crônica que publicaria um mês depois. Por minha vez, para ilustrar essa memória escolhi uma das fotos que tenho e guardei durante todos esses anos. Posso afirmar quase com certeza que são suas fotos derradeiras. No artigo que escreveu à época, Joaquim descreve grande parte do que foi falado e do que ocorreu durante essa visita com sua objetividade de repórter, mas comigo reverberaram as palavras do poeta sobre a morte e o medo. Lembrei, entre tantos, do longo poema Velório de um comendador (publicado em Serial), incrivelmente construído em redondilhas, onde João descreve o velório de um comendador de uma perspectiva absolutamente isenta e ao mesmo tempo imersa no ser vivente e objetivo daquele que foi sem ter sido. Um poema quase vingança que se espraia num cenário comercial, onde as flores - como de fato acontece – murcham e a vida vira água. E a água é somente a metáfora que sempre perseguiu Cabral em muitos e tantos poemas do rio ao mar, do mangue aos canaviais.

Chovia ainda quando deixamos a casa do poeta, muito admirados por sua debilidade e ao mesmo tempo disposição para falar. Em mim era como se o quadro que viera pintando ao longo de muitas leituras estivesse concluído. Essa sensação me perseguiu até que no sábado (três dias depois de nossa visita) eu estava em Búzios e soube de sua morte pelo rádio.

Falecera nos braços de sua mulher, segundo a qual ele pedira para rezar um pai nosso antes de expirar.

Clicando aqui é possível baixar e conferir o artigo que o jornalista Joaquim Antônio Emídio publicou em seu jornal e na revista Quaderna de Portugal sobre essa visita a João Cabral.

E, abaixo, segue o poema Velório de um comendador, escrito por João Cabral e que escolhi para ilustrar este artigo.


Nesse espaço, Suzana Vargas vai apresentar histórias que ela escreveu para lembrar ou lições que aprendeu convivendo com grandes escritores da literatura brasileira. Carlos Drummond de Andrade, Mário Quintana, José J. Veiga, João Antônio, Victor Giudice, Moacyr Scliar e Jorge Amado são alguns dos nomes que atravessaram a vida da escritora, professora, curadora e produtora cultural. A coluna - intitulada Escrever para Lembrar: o que os grandes escritores me ensinaram - integra as comemorações dos 20 anos do PublishNews, celebrados em 2021. Para conhecer mais da trajetória da titular da coluna, assista à participação da fundadora do Instituto Estação das Letras no PublishNews Entrevista de julho de 2020.

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