Mas o que teria isso a ver com Lygia Fagundes Telles? Tem a ver com minha formação e com o primeiro encontro ao vivo e a cores com ela, num momento em que vivia encarcerada pelo mestrado em Teoria Literária e quase totalmente entregue às importantes descobertas que ela me oferecia, organizando melhor meu pensamento, aguçando minha percepção dos textos lidos, colaborando enfim para me tornar uma leitora mais crítica, mais perspicaz.
Ainda surpresa com o convite aceito, me preparei muito para o encontro. Na verdade, muito além do necessário, lendo ou relendo alguns de seus livros, lendo também sobre sua obra e, claro, trabalhando com os alunos. De modo que foi uma Suzana cheia de citações e análises estruturais que recebeu aquela mulher belíssima, alta, elegantérrima, com penetrantes olhos verdes, vestindo um tailleur bem cortado e um inusitado colar de pérolas. Voz anasalada, fumando muito, era a simpatia e a beleza em pessoa. Tinha alguma pressa e precisei garantir que o encontro duraria apenas uma hora. Para cronometrar esse tempo, pois havia outros afazeres no Rio, ela tirou o relógio do pulso e colocou-o em cima da mesa no auditório onde conversaria com os estudantes. Faculdade em polvorosa para receber a grande dama da literatura brasileira, como a chamavam.
Apresentei brevemente a autora e pedi-lhe que falasse sobre o livro como um todo, destacando um ou outro conto que lhe interessasse mais. E que lesse o final de Venha ver o pôr do sol, um dos contos que haviam mais impressionado a turma. Ela fez o que pedi e leu belamente o final do relato quando o ex-noivo da personagem principal a deixa trancafiada num dos mausoléus do cemitério abandonado onde haviam marcado o encontro.
Quando terminou, eu, por insegurança ou sei lá porque cargas d’água, fiz-lhe uma pergunta que – a pretexto de demonstrar leitura ou erudição, praticamente já continha a resposta. Queria saber sobre o tipo de narrador escolhido, os porquês das escolhas de personagens, da travessia do cemitério e seus detalhes. Usei termos sofisticados como narrador intradiegético quase assombrando a convidada pela complexidade do assunto. No fundo, acho que aproveitava, como só acontece quando estamos plenos de informação, para fazer eu mesma, vaidosamente, um discurso exibicionista de meus conhecimentos. Ao que Lygia ouviu calada, talvez surpresa, mas sinceramente interessada. Quando terminei a lenga lenga de narradores e citações ela me disse calmamente: “Não sei se entendi sua pergunta, Suzana, quase não li os autores citados por você... Mas gostaria muito de saber a sua opinião. O que você pessoalmente achou do texto, do tema, do modo como contei, dos espaços e reflexões". E me desarmou na frente de todos os alunos, com gentileza, com precisão.
Outras indagações interessantes se seguiram, de uma plateia com pouca leitura e informação, mas com uma curiosidade genuína e a honestidade intelectual dos leitores desarmados. Da minha parte, permaneci calada (ou quase) por minha vez desarmada na minha arrogância de especialista, percebendo, talvez, finalmente, que uma leitura não é feita apenas da erudição de quem lê, mas da sensibilidade com que nos debruçamos de modo pessoal sobre o texto: ponto de partida e de chegada de nossa percepção.
Não vou precisar dizer o quanto aquele primeiro encontro com Lygia mudou minha forma, não somente de ler ou trabalhar textos, mas meu próprio modo de estar no universo literário. Mais livre de muletas e amarras, mais segura do caminho que escolhera. Eu estava em meus inícios, é certo. Mas foi fundamental aquele gentil confronto e seus desafios. A partir dele pude não somente ler mais livremente como deixar minha sensibilidade de leitora apurar o ouvido e o olhar. Eis o que Lygia me ensinou. Muito cedo, por sorte. A tempo de transformar minhas ambições de ser professora ou crítica literária no sentido estrito do termo e me transformar numa leitora comum, começando a trabalhar por uma leitura mais livre.
Estivemos juntas outras vezes, em viagens, em lançamentos de livros outros, mas quando penso em sua presença na minha vida profissional, lembro dessa manhã. Tento, de alguma forma, transmitir algumas convicções semelhantes aos mediadores de leitura que muitas vezes oriento. Sem abdicar da teoria (cuja percepção é essencial na estruturação das análises) ou das informações necessárias (históricas, filosóficas, linguísticas), consigo enxergar que todo esse arsenal de conteúdos precisa localizar-se apenas como categoria auxiliar à minha leitura pessoal.
Uma das poucas vezes em que me vi a sós com Lygia pude indagar-lhe sobre as curiosidades que muitas vezes me assolavam como, por exemplo, como era a leitora por trás da escritora. "Nada demais", respondeu, "o segredo é você saber, talvez estudando, talvez organizando as ideias. O resto é conversa e falsa teoria. E o que restar da teoria deve fazer o texto criar vida e não morrer sufocado pelas citações", me disse como quem conta um segredo a céu aberto.
Uma única vez pude estar com ela sem interrupções. Foi no restaurante de seu hotel preferido no Rio, o Trocadero. Estávamos milagrosamente sozinhas no imenso local por cujas vidraças à noite podia-se ver a praia de Copacabana. Pude contar-lhe a grande contribuição que deu ao meu trabalho dentro e fora das salas de aula. Rememorei meu constrangimento aquela manhã no auditório da faculdade. Ela sorriu satisfeita pelo testemunho, disse que não lembrava de absolutamente nada, claro. Mas me confessou que uma das coisas mais entediantes ao longo de sua “carreira” como escritora (ria ao dizer isso) era, de fato, os professores de literatura ou pesquisadores que chegavam com seus discursos prontos, com suas conclusões, com suas certezas e citações. Eis.
Mas talvez o que mais expresse sua importância – afora sua obra – de astúcia e densidade ímpares, capaz de nos passar a impressão de que suas histórias não eram inventadas, mas a pura expressão da realidade, era o fato de se assumir como uma trabalhadora da palavra. A escrita como destino e profissão ou como ela mesma referia: “tento desembrulhar a mim mesma, desembrulhando as personagens, de modo que são e não são faces de mim mesma. Ou de todos.”
Lygia se foi nesse início de ano. Com mais de 100 anos de idade e com quase todos os reconhecimentos literários a que se pode aspirar (Prêmio Camões, indicação ao Nobel, alguns Jabutis). Nem precisamos dizer que sua obra permanece, mesmo que a seu ver, sempre escapasse como um peixe vivo. Conservava consigo alguns adágios de mestres como Cioran que recitava sempre que possível: “Não confundir pessimismo com a lucidez, porta que se abre e nos oferece mesmo na desilusão uma saída: a saída da ilusão”.
Viveu lúcida como sua produção, cujo mergulho é nossa herança. Inaugurou, sem saber, para mim, uma outra forma de perceber e me entregar à literatura e à tarefa de formar leitores, sendo, eu mesma a medida de chegada e de partida dos textos e autores a serem explorados. Cada autor tendo seus caminhos e dando seus testemunhos conforme nos fala Lygia em um trecho de A disciplina do amor, espécie de diário a esmo que foi publicado em 1996:
12 de dezembro
Nada fácil testemunhar este mundo com tudo o que tem de bom. De ruim. Um mundo grande, que vai além da chácara do vigário. Diante si mesmo, diante do papel o escritor se sente grande porque sua tarefa é digna. Pode ser corrompido, mas só raramente corrompe.
Obrigada, Lygia
Nesse espaço, Suzana Vargas vai apresentar histórias que ela escreveu para lembrar ou lições que aprendeu convivendo com grandes escritores da literatura brasileira. Carlos Drummond de Andrade, Mário Quintana, José J. Veiga, João Antônio, Victor Giudice, Moacyr Scliar e Jorge Amado são alguns dos nomes que atravessaram a vida da escritora, professora, curadora e produtora cultural. A coluna - intitulada Escrever para Lembrar: o que os grandes escritores me ensinaram - integra as comemorações dos 20 anos do PublishNews, celebrados em 2021. Para conhecer mais da trajetória da titular da coluna, assista à participação da fundadora do Instituto Estação das Letras no PublishNews Entrevista de julho de 2020.
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