Ler sempre foi minha atividade de eleição. Não somente porque vivia numa cidade pequena e sem televisão ou cinema, mas porque cedo descobri na leitura e na escrita de poemas uma forma de companhia. Mais tarde, já no Rio de janeiro, com 18/20 anos e cursando Letras, tive a sorte de encontrar um professor que descobriu a pólvora para mim. Ao me ver às voltas com as aulas de língua portuguesa que comecei a dar (bem antes de terminar a faculdade) ele me disse as palavras mágicas: “Suzana, a missão de um professor de língua portuguesa ou literatura é despertar o prazer de ler. Se você conseguir isso nas suas aulas, sua missão estará cumprida”. Os efeitos daquelas palavras pronunciadas pelo meu Mestre Luiz Filipe Ribeiro descortinaram para mim o meu futuro como profissional das letras (como autora e como professora). A partir daí me dediquei a esse quase esporte que seria tentar trazer meu alunos para as vantagens e/ou benefícios da leitura, justamente tratando-a com requintes de lazer.
Mas por que toda essa introdução num texto que tem como objetivo falar de Ziraldo? Eu diria que tem a ver com essa espécie de destino que acabei traçando para mim, onde perseverei tentando introduzir o máximo de pessoas no universo do livro. Levei a recomendação do Mestre a todos os níveis escolares em que trabalhei (do fundamental à universidade) mas sempre me sentia deslocada. Explico: enquanto muitos colegas tratavam de seguir a cartilha de língua portuguesa ensinando às pobres crianças a diferença entre adjunto e complemento nominal, eu tratava de colocá-las para ler, utilizando diversas estratégias que depois foram parar numa tese de mestrado virando livro (Leitura: uma aprendizagem de prazer). E Ziraldo tem sua presença acentuada exatamente no momento em que resolvi me dedicar a essa tarefa e a defendê-la, escrevendo sobre o assunto.
Suas palavras, ditas de modo informal e não preconizadas com retórica pedagógica, encontraram minhas convicções enquanto professora de literatura (embora nos anos 80 pouco ainda se falasse em leitura como uma mola mestra dessa atividade) e também enquanto escritora ainda iniciante. Ziraldo nomeava tudo o que eu vinha realizando dentro e fora da sala de aula, convicta de que meu papel enquanto professora de literatura ou língua portuguesa seria sempre o de “despertar o prazer de ler”, levar as pessoas a se interessarem pelos livros, pela leitura para além dos bancos escolares, para além das fastidiosas provas e decorebas. Muito além, na verdade, da história literária (estilos de época e suas características /títulos de livros, nomes de autores) ensinada no ensino médio (infelizmente até hoje existente). Ziraldo ia além. Pregava que nas primeiras séries do Fundamental as crianças se dedicassem apenas a ler, a escrever e a brincar ou fazer contas.
Desse modo ele passou a ocupar, na minha percepção, o lugar também de um educador que por estar descompromissado com a pedagogia reinante ou gramatiqueira, finalmente conseguia expressar com simplicidade todas questões envolvidas na formação de leitores no Brasil. Isso eu pude perceber com muita clareza e foi assim que ele nasceu novamente para mim. Como autoridade no assunto. Essas ideias, em princípio “mirabolantes”, faziam todo sentido para uma professora que decidira desde cedo colocar em prática um método que ainda não encontrava eco na metodologia reinante. Quando publicou seu Uma professora muito maluquinha, livro que resenhei para o Caderno Ideias do Jornal do Brasil em 1995, pude perceber que motivações a professora encarnava para além de suas maluquices. Maluquices revolucionárias que – diga-se de passagem - ainda não foram digeridas mesmo no século XXI.
Numa dessas ocasiões, em Brasília, quando o levei para fazer uma versão jovem da Roda de Leitura, encontrei-o no corredor do hotel conversando com a camareira. Solicitava com seu jeitão engraçado shampoos e sabõezinhos. Eu perguntei se no seu quarto não havia. Não respondeu, mas afastou-se um pouco e me confessou seu segredo: havia sim mas costumava “roubar” o material para as netinhas. Rimos muito do roubo solicitado. Ao final da estada, juntei os meus sabõezinhos sem uso e presenteei aquele menino maluquinho que nunca mais esqueceu. Um menino com fama nacional e internacional, com uma ficha corrida de trabalhos prestados à arte brasileira. Da infância em Caratinga à conturbada vida de ativista político no Rio, sua entrega era a mesma: a subversão dos sabonetes. Tudo muito claro, na irreverência e na intenção.
Sempre muito falante, no futuro eu teria dificuldades de encontrar parceiros para uma mesa de debates com ele: “ele não me deixará falar”, alguns possíveis partners diziam. E era a mais absoluta verdade. Mas não havia sombra de descortesia na sua atitude. Até onde podia perceber nos nossos rápidos contatos, havia, sim, uma urgência em dizer, rapidez de raciocínio, exacerbação.
Mas o que mais na figura de Ziraldo me impressiona até hoje (sua grande contribuição na minha vida) para além da genialidade do traço e inteligência fulgurante foi a milagrosa percepção de que falar sobre literatura não necessariamente levaria ninguém a ler mais. Isso num momento em que a gramática (por inocência ou maldade dos professores) era percebida através de uma sequência de memorizações, tornado as aulas de língua portuguesa e literatura infernais para gregos e troianos. Como se essa percepção advinda de um artista de sua estatura me autorizasse a continuar e a desenvolver minhas convicções em projetos onde o livro e a leitura são o fulcro, a raiz, não importa a idade ou a classe social do grupo.
Muitos nesse livro-homenagem falarão de seus desenhos, suas pinturas e charges, suas crônicas, sua performance como apresentador de tv ou humorista, em tudo e por tudo genial. Quando me solicitaram esse depoimento sobre ele, aceitei quase de imediato, embora nunca tivesse estado na sua intimidade. Queria poder expressar minha gratidão e reconhecimento. Reconhecimento na área educacional que ainda acho que o país lhe deve.
Nesse espaço, Suzana Vargas vai apresentar histórias que ela escreveu para lembrar ou lições que aprendeu convivendo com grandes escritores da literatura brasileira. Carlos Drummond de Andrade, Mário Quintana, José J. Veiga, João Antônio, Victor Giudice, Moacyr Scliar e Jorge Amado são alguns dos nomes que atravessaram a vida da escritora, professora, curadora e produtora cultural. A coluna - intitulada Escrever para Lembrar: o que os grandes escritores me ensinaram - integra as comemorações dos 20 anos do PublishNews, celebrados em 2021. Para conhecer mais da trajetória da titular da coluna, assista à participação da fundadora do Instituto Estação das Letras no PublishNews Entrevista de julho de 2020.
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