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Lya Luft: lições em caleidoscópio
PublishNews, Suzana Vargas, 29/09/2022
Em sua coluna, Suzana Vargas fala das visitas que fez à autora e tradutora Lya Luft e da amizade que cultivou com ela

Lya Luft | © MateusZF
Lya Luft | © MateusZF
Estava nervosa quando me dirigi pela primeira vez à Chácara das Pedras, bairro porto-alegrense onde morava Lya Luft ,a quem fora apresentada num jantar do primeiro Encontro Internacional das Mulheres nas Artes em São Paulo, em 1982. Naquela noite, ela estava sentada numa dessas longas mesas de convivas, acompanhada por personalidades como Chico Buarque e Adélia Prado. Havíamos tido pouquíssimo contato naquele dia. Na verdade, apenas o suficiente para que eu conseguisse seu endereço a fim de lhe enviar meu primeiro livro de poemas e seu telefone, pois em breve iria de férias a Porto Alegre e ela me convidara para visitá-la em sua casa.

De modo que meu nervosismo diante de sua bela casa de dois andares, com tijolinhos, cuidadosamente ajardinada, se justificava. Não sabia bem que raios viera fazer ali, pois meu livro já havia sido enviado por correio e eu, a bem da verdade, não levava muita fé naqueles poemas reunidos que tive a sorte de ver publicados. Acho que fui movida pela mais genuína admiração de quem havia lido As Parceiras e seus primeiros romances: A Asa esquerda do anjo e Reunião de família. Também lera alguns poemas esparsos. Porque Lya era também poeta, coisa que aparece apenas levemente em sua biografia, mas que seus romances e suas crônicas deixam escapar a cada página que lemos. Por ocasião do Festival, Lya ainda era apenas a ficcionista-revelação da década e não a consagrada autora de O Rio do Meio e os tantos best-sellers que viriam a seguir.

Ela estava na sala e se despedia de Caio Fernando Abreu no exato momento em que eu chegava. Me apresentou àquele homem/rapaz magérrimo, altíssimo e muito branco que eu conhecia dos Morangos Mofados, seu primeiro sucesso, Prêmio de Melhor Ficção/82 (eu adotara o livro com os alunos na faculdade onde trabalhava). Aquele fora meu primeiro contato breve com Caio, que até teria continuidade mais adiante.

A casa de Lya era grande, mas não enorme (pelo menos que me lembre), e ela me fez sentar num sofá em frente a uma cadeira de balanço onde se acomodou com a intimidade da dona da casa. Como descrevê-la nesse dia? Lya era muito alta (na altura, lembrava minha mãe), grande, cabelos muito louros e curtos, um rosto largo e olhos de um azul metálico, mas que quando se dirigiam a nós se tornavam afetuosos. Me ofereceu um café. Ainda sem graça ou sem saber como entabular uma conversação, fui dizendo que estava em férias, ainda recém-separada e viera a Porto Alegre passar o Natal de 1983 na casa da minha mãe. Viera com duas filhas, ainda bem pequenas.

Conversamos sobre coisas triviais e ela me contou que tinha três filhos (uma levava meu nome), que havia se formado em Pedagogia e em Letras e naquele momento trabalhava no Departamento de Linguística da Faculdade de Porto Alegre. Vista assim, acomodada em sua cadeira de balanço, na sua simplicidade, ela passaria tranquilamente por uma dona de casa alemã, dessas que vivem apenas para a família. E era quase insuspeitável que estivesse falando com a tradutora de Hermann Hesse, Virgínia Woolf, Rilke ou Thomas Mann ou, mesmo, Bertold Brecht, entre tantos. Nem que estivesse casada há tanto tempo com Celso Pedro Luft, sobre cujas gramáticas eu me debruçara tantas noites. Tudo nela era robustez e solidez, foi minha impressão. Impressão que aos poucos se desfez, quando ela começou a contar sua rotina de trabalho.

Havia um casal, mas na verdade eram dois profissionais com espaços distintos de trabalho, ela me disse. Fazia questão disso e se orgulhava de manter essa delicadeza que é respeitar os silêncios e as diferenças (isso ela falou com muita tranquilidade). “Não suporto a ideia de um fiscal na minha vida, Suzana”, com o que eu me identifiquei na hora. Disse mais, para meu espanto: que só assim conseguia estar inteira e preservar um espaço de liberdade dentro e fora de si. Muito mais tarde, ela escreveria sobre o assunto num livro pouquíssimo referido, mas precioso: Histórias do Tempo (Mandarim). Essa declaração me impressionou muito porque, guardadas as proporções, eu também vivia dramas semelhantes, mas muito iguais a toda mulher que desejasse, à época, abrir caminhos menos tangíveis às mulheres comuns.

Ainda não atinava estar diante de uma feminista na sua mais pura acepção. Naqueles tempos, o feminismo estava ainda envergonhado e cerimonioso. E eu preferia, talvez por juventude, pensar nessa escritora como a boa mulher que serve café e amassa pães para a família. Mal sabia que seu pão tinha um sabor muito característico e seria sovado com as mãos da liberdade. Naquela tarde minha visita foi breve. Não desejava ser inconveniente. Falei-lhe da minha admiração por seus romances que lera num momento decisivo e teriam me atirado numa espécie de crise existencial. É que eles já carregavam aquilo que ela desenvolveria mais tarde em suas crônicas: os dramas típicos de família, a intimidade sombria dos personagens, o sofrimento das criaturas humanas, o amor e a morte levados ao limite do desespero e à fatalidade.

Eu já possuía alguma competência técnica para dizer-lhe da densidade poética do livro, da simplicidade da linguagem e da pungência das situações narradas. Por fim, falei-lhe dos jogos de poder, do sexo e desfechos enigmáticos. Queria muito saber de onde saíam as tantas ousadias, contadas de maneira pessoal e universal. Ela não comentou muito sobre isso. Estava muito interessada em mim, na minha vida, em como eu havia ido parar no Rio de Janeiro aos 18 anos, na minha separação relativamente recente. Seu interesse criou entre nós naquele dia, uma intimidade inusitada. Na despedida, me presenteou com um livro antigo, onde reunira crônicas que escrevera para o Correio do Povo, em seus inícios, Matéria do Cotidiano, de 1978. "É um livro antigo, Suzana, naquele tempo eu era mais terna, meus fatos e personagens eram menos desesperados", disse sorrindo.

Voltei mais uma vez à sua casa, no verão de 1984, numa visita rápida e agradável. Lembro-me que sempre ficava inquieta antes dos encontros. É que havia neles algo de confessionário, de documental. Nesta segunda ida, levei-lhe um exemplar de Sem Recreio, meu segundo livro de poemas marcadamente feministas que ela folheou com vagar na minha frente para minha completa perturbação. E me disse logo a seguir que “formamos as crianças para tanta coisa, menos para a poesia, para a liberdade da poesia, para a gravidade e a leveza da poesia”. Lembrei do Octávio Paz, que andava lendo naquela altura “as plumas leves são pedras pesadas”. Além de seu novo romance, Lya publicara naquele ano o livro de poemas Mulher no Palco, do qual transcrevo um texto ao final dessa memória. Como sempre o café, as conversas sobre a casa, as crianças, minha vida. Era curioso como se preservava de falar de si e preferia saber mais do outro.

Em janeiro de 1985, em mais uma das minhas idas a Porto Alegre, liguei-lhe para combinarmos nosso encontro. Ela me atendeu e me disse que naquela vez não poderíamos nos ver. Estava de mudança para o Rio de Janeiro. Estranhei um pouco sua voz afobada. Como se estivesse saindo, justamente no momento da ligação. “Anota aí meu telefone, não deixa de me procurar, Suzana. Vou precisar de gente amiga por perto”. E mais não falou.

Voltei ao Rio e retomei minha rotina de aulas, de casa, filhas, livros etc. Soube pelos jornais a razão de sua mudança, para mim, repentina. Apaixonara-se perdidamente e viera morar com Hélio Pellegrino no Rio. Li a notícia com estupefação. Não conseguia imaginar aquela mulher, aquela fortaleza, saindo de sua casa na colina, como gostava de ser referir à sua morada, vindo para o Rio, atrás de uma paixão. Naquele momento entendi suas palavras “vou precisar de gente amiga”. Procurei o telefone que me havia dado e não encontrei nas minhas anotações. Busquei em catálogos telefônicos o número da casa do Hélio (a quem não conhecia pessoalmente, apenas por suas crônicas e livros), mas não encontrei.

O tempo foi passando e de alguma forma esqueci, não de Lya, mas do fato de ela morar na mesma cidade que eu, tão acostumada já estava de visitá-la em Porto Alegre. Sabia dela, como sempre, pelos jornais (lançou Exílio logo a seguir), mas alguma coisa me impedia de procurá-la, talvez medo de ser confundida com uma curiosa que quisesse se imiscuir nessa nova vida particular que inaugurara e que era tão comentada na época. Imaginei que não havia sido fácil para ela enfrentar uma separação sendo quem era para juntar-se a Hélio Pellegrino, enfrentando todo tipo de especulação. Mas não a procurei. Guardara das nossas conversas, mais do que palavras, atitudes. No breve período, ela me havia inspirado, não literariamente, mas existencialmente. De modo simples, defendendo a capacidade de existir de modo autônomo e plenamente. “Gosto de jardins, gosto de casa, de família, mas gosto mais de mim”, chegara a falar no segundo encontro.

Só me dei conta de que havia passado três anos de sua vinda ao Rio quando num março chuvoso, vi anunciada a morte súbita de Hélio pelos jornais. Além das aulas, eu era redatora na Embrafilme á época. Pensei em abraçá-la, estar com ela que – soube depois – havia mergulhado numa profunda depressão da qual, felizmente, emergiu escrevendo os belos e comoventes poemas de O Lado Fatal, que já nasceu best-seller. Tempos depois fui informada que voltara à Chácara das Pedras e se reunira ao ex-marido gravemente doente. Conversamos por telefone e ainda jantamos juntas no Plaza Ipanema, hotel que assistiu ao seu romance com Hélio e onde costumava se hospedar quando veio ao Rio para uma Roda de Leitura. Nesse dia, apresentou-me a seu novo marido, com alegria. Mas depois da perda de seu filho, em 2016, tornou-se mais reclusa.

Acompanhei de longe sua carreira de ficcionista que tomara rumos inesperados a partir do lançamento de O Rio do Meio e Perdas & Ganhos. Foi ficando cada vez mais difícil acessá-la para compromissos tais eram as solicitações. Quando faleceu nesse dezembro de 2021, já morava num apartamento e dedicava-se à pintura. No fundo, acho que cruzei com ela para aprender a me reinventar enquanto mulher, a descobrir minha força. “Tudo está dentro de mim” dissera numa daquelas tardes. E foi o que aprendi lendo sua ficção inicial, não exatamente nas crônicas. Acho até que seus romances deveriam ganhar mais relevo porque mostram sua fabulosa capacidade narrativa. E somente a que escrevera aquelas obras de ficção poderia produzir os livros subsequentes que serviriam a tantas e tantas mulheres. Pela coragem da rebeldia, da independência, coragem de refazer seu caminho, enfrentando suas próprias contradições quantas vezes necessitou. Viver talvez seja isso e muito mais.


Nesse espaço, Suzana Vargas vai apresentar histórias que ela escreveu para lembrar ou lições que aprendeu convivendo com grandes escritores da literatura brasileira. Carlos Drummond de Andrade, Mário Quintana, José J. Veiga, João Antônio, Victor Giudice, Moacyr Scliar e Jorge Amado são alguns dos nomes que atravessaram a vida da escritora, professora, curadora e produtora cultural. A coluna - intitulada Escrever para Lembrar: o que os grandes escritores me ensinaram - integra as comemorações dos 20 anos do PublishNews, celebrados em 2021. Para conhecer mais da trajetória da titular da coluna, assista à participação da fundadora do Instituto Estação das Letras no PublishNews Entrevista de julho de 2020.

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