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A bordo das caravanas negras com Joel Rufino dos Santos
PublishNews, Suzana Vargas, 29/04/2022
Em novo artigo da série 'Escrever para lembrar: o que os grandes escritores me ensinaram', Suzana Vargas conta as lições aprendidas com o historiador e autor Joel Rufino

Joel Rufino | © Site do autor
Joel Rufino | © Site do autor
Foi entre 2012 e 2013 que ganhei um dos tantos aprendizados que tive com Joel Rufino dos Santos, esse mais que ilustre historiador, professor e escritor, referência em qualquer estudo de cultura afrobrasileira que tive a sorte de conhecer, muito antes de ter um contato mais direto com ele. Na verdade, eu já o conhecia de outros momentos, mas foi por essa época que experimentei as vantagens de ter um amigo sábio e um sábio por amigo.

Explico melhor. Entre 2012 e 1013 eu coordenava para o Ministério da Cultura um projeto nacional, as Caravanas de Escritores. Resumidamente, organizávamos caravanas de autores que enviávamos para pequenas e médias feiras de livros de todo Brasil, como forma de aquecer suas programações culturais. Vivíamos um belo momento com muitíssimas iniciativas para a divulgação do livro no país. Chegamos a contar mais de duas mil feiras acontecendo entre março e dezembro, um número formidável. Só para vocês terem noção, em um ano e meio de projeto chegamos a enviar para esses eventos quase 300 autores do Amapá ao Rio Grande do Sul. Um sucesso imenso.

Foi então que ocorreu uma troca de ministros na Cultura e – como sempre acontece dentro de ministérios – algumas alterações foram solicitadas pela ministra Marta Suplicy que acabara de assumir o cargo. Entre as alterações estava a de que fossem criadas também Caravanas de Autores Negros. E aqui entra meu amigo Joel Rufino.

Como curadora, o projeto me orgulhava particularmente porque achava aquela uma das ações mais democráticas de todas as que o MINC promovia na área do livro. Explico meu democratismo: a escolha dos autores era feita pelas próprias feiras beneficiadas, assim, não corríamos o risco de privilegiar ninguém e atendíamos às preferências da comunidade local. De início, fiquei surpresa com a solicitação ministerial, pois me parecia uma imposição inesperada e quase indesejável na minha cruzada democrática.

É claro que eu era desde sempre favorável às cotas raciais que àquela altura já estavam sendo pensadas em diversos setores da vida cidadã, para além da universidade, mas pensei que, em literatura, uma caravana de autores negros poderia dar a impressão ou ser considerada, discriminatória pelo avesso.

Foi com essas premissas na cabeça que resolvi consultar meu guru para assuntos especiais, o querido Joel. Queria ouvi-lo sobre o assunto, para dar aquele passo com uma convicção maior do que a de apenas obedecer a uma ordem ministerial. E teria de ser por telefone, não teríamos tempo para um encontro pessoal, mais reflexivo. Joel atendeu o telefone com sua proverbial calma, era dono de um falar pausado, pensado, falar de quem está em paz com seus pensamentos e com sua história. Tinha um acento fino e um pouco rouco no final das frases e uma comunicação cristalina.

Contei a ele meu drama: a solicitação da ministra, a Caravana de Escritores Negros não poderia ser vista equivocadamente como uma forma de racismo ao contrário? Eu ainda argumentava com as lições de estética e de estilística aprendidas nos livros e mestrados da vida. Se a cor do escritor era determinante, onde ficaria a alardeada qualidade das obras?

Ele me ouviu pacientemente e fez uma pergunta fatal: Suzana querida – falou – você consegue contar quantos escritores negros com visibilidade existem no Brasil de hoje? À essa pergunta matemática, calei. Havia naquele momento, ainda, muito poucos, talvez não chegassem a dez, percebi, para meu próprio escândalo. Foi o que balbuciei me dando conta do deserto à minha frente. Ele continuou: e você sabe por quê? Justamente pela falta de oportunidade de mostrar e desenvolver seus talentos. A maioria dos autores negros são invisibilizados porque as chances do mercado, também em literatura, são menores para eles. De quem se ocupam os meios de comunicação? A quem são dadas as melhores oportunidades de publicação e divulgação das obras?

Eu ouvia o que já sabia atentamente e pensava que – como as cotas – havia uma responsabilidade grande do Estado nesse setor. Lembrei da vida e da obra fantásticas daquele que me falava quase cirurgicamente pelo telefone. E quem era ele? Um escritor negro, com família de origem pernambucana, vindo de Cascadura. cujo primeiro emprego foi o de boy no Centro da cidade. Um botafoguense e mangueirense que - estudando e trabalhando - formou-se em História e Literatura e se transformou num dos maiores pensadores da cultura brasileira, nela incluídos os negros. Como ele mesmo dizia: "a luta é de todos os brasileiros e não somente dos negros". Tudo com inacreditáveis coerência e direção. Dos livros infantis (que conheci no final da década de 70, quando, ainda cursando letras, adotei em turmas de supletivo Uma estranha Aventura em Talalai) passando pelos livros de história, ensaios literários e romances.

Escutava sua voz e pensava que estava dialogando com um criador e um pensador que tomara para si a incumbência de dar voz, explicar para nós os sentidos da pobreza e da marginalidade num pais com quase 60% da população negra. Muitas páginas dessa quase crônica não bastariam para elencar suas contribuições à nossa cultura, como os Prêmios Jabuti e os diversos cargos públicos como o de Presidente da Fundação Cultural Palmares até o mais recente, a direção da Secretaria de Defesa e Promoção das Populações Negras do Rio de Janeiro.

Ouvindo suas explicações pelo sem-fio podia imaginá-lo assim, como era: baixinho, muito magro, com traços indígenas por trás da negritude enquanto me dizia coisas como: “Suzana, a verdade é que os negros lutam há 100 anos contra o racismo e que o Estado tem o dever de corrigir as injustiças, estabelecendo condições mais justas de concorrência. Se não dermos visibilidade (ainda que forçada) aos artistas e escritores negros, como tomaremos conhecimento de sua existência? Da sua estética que escapa aos mais importantes livros de crítica literária? As cotas como essas caravanas são o princípio democrático das oportunidades”.

A conversa se alongou por quase uma hora. Eu aproveitava aquele momento para reforçar os argumentos que me pareciam sólidos, inequívocos. Perguntei, pensando no meu papel enquanto curadora do projeto; "E os escritores brancos, não se sentirão preteridos?" Ao que ele respondeu: O branco que se sentir preterido será capaz de compreender a histórica preterição dos negros.

Ainda no rastro dessa pergunta indaguei: e a qualidade das obras, não poderia ser considerada um entrave às Caravanas? Joel respondeu depois de pensar alguns segundos que a qualidade importava menos que a percepção do negro enquanto produtor de cultura e construtor de uma estética própria, impensável pelo branco. Saí daquela conversa tonta de informações e livre dos preconceitos forjados na academia. Preconceitos e purezas artísticas. Se não começássemos a criar visibilidade para a produção afrodescendente, jamais a veríamos crescer em quantidade e qualidade, claro.

Aquele foi certamente o telefonema mais importante da minha vida de mulher parda/negra e produtora cultural. Com as Caravanas, tinha um Brasil inteiro a explorar. Embora conhecesse alguns escritores negros fora do eixo Rio/São Paulo, eles ainda eram bem pouco conhecidos, mas nada que ações como Caravanas Negras não pudessem revelar. Pensei em projetos que pudessem fazer aflorar e escoar essa produção escondida e que naquele momento já se mostravam profícuos, concretizando-se país afora. Lembrei que no final dos anos 90 promovi Rodas de Leitura sobre literatura negra comandadas pelo belíssimo e contundente poeta Éle Semog, junto a outras ações.

Mas a cadeia produtiva do livro é complexa. Opera na produção literária, na sua concretização formal (em livro, em produto, agora mais livre com o advento da internet). Não basta publicar, é preciso divulgar, distribuir, dar visibilidade.

Lamentavelmente, bem antes das Caravanas Negras virem à luz com toda a força das suas contradições e iniciarem os percursos por elas previstos, o projeto foi interrompido, como só acontece no serviço público brasileiro.

Hoje creio que se Joel estivesse vivo (faleceu de complicações cardíacas em 2015), talvez nossa conversa tomasse outros rumos pois os tempos mudaram. Para melhor e para pior. Melhor porque as cotas e tantos movimentos antirracistas estão furando o cerco dos preconceitos. Já podemos avistar muitos muitos poetas, narradores, cronistas, editores no horizonte à nossa frente. Pior, talvez, porque nos descobrimos abertos ao pior racismo do mundo: aquele que se mostra abertamente nas mídias sociais e é negado oficialmente para manter o negro numa posição subalterna.

Quanto a mim, aprendi naquele momento muito mais do que qualquer tratado histórico sobre o tema. E Joel escreveu largamente sobre o assunto, tanto na obra infantil quanto na obra escrita para adultos. Aliás, escreveu um livro pouquíssimo divulgado que todo professor de literatura deveria ler: Quem ama literatura não estuda literatura (Rocco). Os tantos outros, são indispensáveis.

Faz falta, muita. Sua alma, sua calma e a capacidade de amar, compreender e expressar com clareza nossas contradições. A compreensão de um grande brasileiro com quem tive a sorte de cruzar no meio do caminho. Ave, Joel!

Nesse espaço, Suzana Vargas vai apresentar histórias que ela escreveu para lembrar ou lições que aprendeu convivendo com grandes escritores da literatura brasileira. Carlos Drummond de Andrade, Mário Quintana, José J. Veiga, João Antônio, Victor Giudice, Moacyr Scliar e Jorge Amado são alguns dos nomes que atravessaram a vida da escritora, professora, curadora e produtora cultural. A coluna - intitulada Escrever para Lembrar: o que os grandes escritores me ensinaram - integra as comemorações dos 20 anos do PublishNews, celebrados em 2021. Para conhecer mais da trajetória da titular da coluna, assista à participação da fundadora do Instituto Estação das Letras no PublishNews Entrevista de julho de 2020.

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