Diário de Sharjah. Dia 3: finalmente as primeira as reuniões
PublishNews, Leonardo Garzaro*, 03/11/2021
Os que imaginam a vida editorial como encontros no ar-condicionado, visitas a livrarias e bate-papos com autores consagrados, ficariam decepcionados. Mexendo nas malas, parecíamos vendedores de sapatos.

Faltavam cinco minutos para a primeira reunião e eu olhava fixamente para uma caixa retangular, branca, grande com votos de “aproveite seu lanche” posta em cima de cada uma das mesas. O que faria com aquele trambolho? Se colocasse no chão, poderia parecer ofensivo — deixar no chão o lanche gentilmente oferecido pela organização. Se abrisse, quando a outra editora chegasse, eu poderia parecer um Pantagruel, devorando um lanchinho um minuto antes de começar.

Decidi abrir de uma vez. A curiosidade era maior. Dentro havia um suco de laranja, dois docinhos confeitados, uns sanduíches e uma enorme maçã verde. Legal! Mais uma vez, a atenção com os detalhes. Montei a caixa de volta e deixei em cima da mesa para servir de apoio para o computador. Se não conseguisse almoçar, os snacks dariam conta do recado.

Chequei a hora no celular e vi que era 12h40, a hora exata do primeiro encontro. O que aconteceria agora? Quando ergui os olhos novamente, a editora londrina Ayse Ozden estava me encarando. Felizmente, ela foi pontualíssima: se uma editora britânica se atrasasse, eu não saberia mais nada deste mundo. Cumprimentamos gentilmente, comecei falando sobre a editora Rua do Sabão, o tipo de livros que publicamos, o que tínhamos no catálogo. Ela apresentou a própria editora, livros focados em sustentabilidade, livros para fazer do mundo um lugar melhor, livros para crianças e jovens. Achei bem legal. É claro que todos precisamos pagar as contas, mas a maioria das pessoas que conheço no mercado editorial entrou nessa, antes de mais nada, pelo amor aos livros. Adorei encontrar alguém, da terra do fish and chips, com a mesma pegada.

Usando um catálogo bonito, bom papel, cores vivas, Ayse passou a apresentar os livros. Quando um em especial me chamou a atenção, um juvenil sobre aves ameaçadas por uma construtora, ela movimentou duas enormes malas pretas, lançou exemplares para lá e para cá e o livro aterrissou em minhas mãos, um exemplar de The vertical jungle, da Edna Green, impresso numa boa gráfica. Gostei do livro. Fui ver os children books, pois queremos reforçar o catálogo de infantis da Rua do Sabão, e lá foi a editora revirar as malas, muitas vezes se ajoelhando no chão, movimentando amostras para lá e para cá. Os que imaginam a vida editorial como reuniões no ar-condicionado, visitas a livrarias e bate-papos com autores consagrados, ficariam decepcionados. Mexendo nas malas, Ayse e eu parecíamos vendedores de sapatos no varejo, desses que descem com oito caixas do estoque e se põem a enfiar os calçados nos pés dos fregueses.

Foi minha vez de mostrar o catálogo, nossos cinco livros nacionais. Comecei pelo primeiro, focado em tecnologia, algoritmos, que acredito que irá vender bem no Brasil, e ela descartou de pronto. A velha lição que sempre esquecemos: não podemos deduzir a opinião dos outros. Mostrei em seguida nossos livros infantis, um juvenil, e literatura contemporânea. Ayse se mostrou interessada em dois. Fiquei animado! Trocamos cartões — ou melhor, ela me entregou um elegante cartão, eu me desculpei por ter esquecido os meus no Brasil — e encerramos. Sinto que comecei bem!

A segunda reunião foi com uma autora dos Emirados Árabes, que autopublicou seu primeiro livro. Uma moça simpática, usando roupas tradicionais pretas, cuja obra é um relato pessoal sobre a pandemia. O ano de 2021 será marcado por obras assim em todo o mundo. Um dia, alguém precisará estudá-las. Ela me explicou que os Emirados têm um ótimo subsídio para a publicação da literatura nacional. Contou que estava escrevendo um segundo livro, falou sobre como seria empolgante publicar no Brasil. Dei toda a atenção, claro, porque bem sei como é difícil ser um autor em busca de uma editora. Autores merecem sempre todo o respeito. Disse que não era algo que de pronto me interessava, mas pedi que ela me enviasse os primeiros capítulos traduzidos para o inglês. Vamos ver.

Troquei umas palavras com a Elizabeth Alvarado, da mexicana Arlequín. Com Reetanshu Singhal, da indiana Wise Eagle Books. Com Rahul Singhal, da Xact Book. Com Khalid Al-Ail, da Bawabat Al Kitab. Um funcionário da organização passou avisando que o almoço logo iria acabar, para irmos todos de uma vez. Empolgado, segui apertando mãos, passando álcool em gel, pegando cartões, passando álcool em gel, pegando amostras de livros, passando álcool em gel. As reuniões estavam todas agendadas, tudo organizado. Porém, conforme alguns editores simplesmente faltam, outros vão almoçar, outras reuniões terminam mais cedo, tudo se torna uma adorável bagunça. Os editores começam a andar de mesa em mesa, perguntam se o outro está comprando ou vendendo — ou ambos —, e se põem a oferecer livros. Nessa hora, nos tornamos todos vendedores de sapatos!

No último aviso de fim do almoço, corri para fora. Um hálito quente — enfim, o calor do deserto! — me pegou no caminho entre a tenda e o pavilhão de almoço (sim, um pavilhão! Seiscentas pessoas para almoçarem juntas). Quiseram me acomodar entre uns editores desconhecidos, mas os gentilíssimos editores brasileiros haviam guardado um lugar para mim. Alguém perguntou “você então é o Leonardo da Rua do Sabão?”. Céus, serão as dívidas?! Não, era só gentileza. Os credores ficaram no Brasil.


* Leonardo Garzaro é jornalista, escritor e editor da Rua do Sabão. À parte isso, tem em si todos os sonhos do mundo.

[03/11/2021 08:00:00]