O recente caso do artista Beeple ilustra essa hipótese. No dia 11 de março passado, uma obra imaterial foi vendida pela Casa de Leilões Christie’s por US$ 69 milhões. Uma obra de arte criada através da “colagem” de milhares de imagens virtuais, tudo em arquivo JPG (abreviatura de Joint Photographics Experts Group, criador desse tipo de arquivo), que só existe em meio virtual.
Como é possível isso? A evolução do mundo imaterial é evidente, acelerada pela pandemia que nos força a viver numa Ágora virtual.
Se não nos damos conta dessa mudança, basta lembrar que as ações das companhias das quais somos sócios não são representadas por cautelas em papel, são registros imateriais, custodiadas em bancos virtuais; as transferências de dinheiro on-line não se concretizam em remessa de cédulas de um banco para outro, apenas registros eletrônicos; declaramos imposto de renda por meio virtual, sem carimbo na declaração de papel; ouvimos música, geralmente, no Spotify, cada vez mais raros CD e LP (fita cassete é arqueológica); cada vez mais lemos livros no e-book, ou ouvimos os textos em audiobooks, sem o suporte físico de papel. O que circula são impulsos eletrônicos, códigos, senhas, que representam, por exemplo, dinheiro, notas musicais, documentos, papel-moeda, cores.
O mesmo ocorre com obras literárias (arquivos em formato word), geralmente materializadas em livros de papel, mas que podem se converter em arquivos (e-pub) de imagens móveis (variação de tipos, tamanhos, cores, fontes e intensidade do brilho da tela), ou de áudio. E esses arquivos de conteúdo imutável são objeto de licenças de uso, para que os leitores possam usufruir das obras em seus aparelhos de leitura visual ou audição.
Blockchain e DEFI
Em 2008, surgiu uma tecnologia que permite registrar o curso dessas informações com grande segurança e precisão, de modo que se possa individualizar e atribuir a propriedade de determinado bem imaterial, transferi-la e acompanhar o seu trajeto em termos de vinculação a pessoas. Esse é o sistema blockchain.
Começaram a ser utilizadas nesses sistemas moedas virtuais, baseadas em DeFi, abreviatura de “descentralized finance”. Não são criadas por governos, nem por instituições, atendem a regras de mercado e vão se disseminando mundialmente, como a Ethereum e Bitcoin, dentre outras.
Podem ser utilizadas como moedas para operações financeiras, como empréstimos, bem como para a aquisição de bens físicos. “O presidente-executivo da montadora de carros elétricos Tesla, Elon Musk, anunciou nesta quarta-feira (24) que as pessoas poderão comprar os veículos usando bitcoins, a principal criptomoeda do mercado.” (O Globo, 24.03.2021).
Fungibilidade
Quem empresta 100 dólares a alguém espera receber os mesmos 100 dólares, mas não necessariamente a mesma cédula representativa da quantia que foi emprestada; podem ser outras cédulas ou uma remessa eletrônica.
No mundo físico, se empresto para alguém 1 kg de café, não espero receber de volta a mesmíssima embalagem que entreguei, com igual peso e conteúdo, pois será consumido. Serei restituído com produto igual no peso, mas equivalente nas características e dimensões. São exemplos de bens fungíveis, isto é, que podem ser substituídos por outro de igual qualidade, sem perda da substância.
Já se empresto um livro sobre os Rolling Stones, autografado para mim por Mick Jagger, o destinatário fica obrigado a devolver aquele mesmíssimo livro. Não há outro igual. Aquele bem emprestado deve ser o mesmo a ser restituído, no prazo e nas mesmas condições. Esse livro autografado tem características singulares, não pode ser substituído; é infungível.
A característica básica dos bens imateriais é a sua reprodutibilidade, geralmente sem perda de qualidade. Um livro eletrônico best–seller é vendido aos milhares, sempre com o mesmo conteúdo, obedecendo o direito moral do autor de preservar a integridade da obra. Uma foto da Mona Lisa, tirada em altíssima resolução, circula pela internet aos milhões. Confiram-se por exemplo, as reproduções do riquíssimo Google Arts and Culture.
Em tempos de pendrive e arquivo word, fica muito difícil identificar o arquivo original da obra literária, salvo se for, em caso recentíssimo, o manuscrito da composição musical Piano na Mangueira, de Tom Jobim e Chico Buarque, alienado em leilão no último dia 6. Sobre os direitos da venda desse manuscrito sugiro consultar a coluna aqui do PublishNews de 01.04 2015, intitulada Bye, Miss American Pie.
Vamos supor, no entanto, que em um, apenas um, dos milhares de exemplares do livro, fosse possível acrescentar um código invisível, secreto, declarando ser aquele conjunto de símbolos digitais agrupados, aquele arquivo digital, o e-book original, o arquivo mater daquele livro.
Esse arquivo manuscrito, se transposto para o mundo virtual, pode adquirir uma identidade, uma singularidade digital, uma distinção em relação aos demais; seria “O” original do livro, equivalendo a um exemplar único digital. Pode ser aplicável a uma edição princeps, por exemplo.
NFT
Então voltamos a cadeia de identificação de bens imateriais, da blockchain, e chegamos ao NFT – Non Fungible Token. O que é o NFT? Basicamente um certificado digital, impossível de ser copiado ou falsificado, que atesta a existência de determinado bem digital, tornando-o não fungível. Seria um carimbo imaterial na obra, uma assinatura digital, porém plenamente visível, identificável, rastreável e com força atributiva de propriedade.
Assim, um arquivo pdf contendo uma obra de Machado de Assis, que tenha um certificado NFT atestando ser aquele exemplar, “codificado” e expresso em determinado arquivo e-pub, o original, a referência para o mercado, ele será único. Muito embora possam existir arquivos iguais no mundo inteiro, aquele será “O” arquivo que expressa, por exemplo, uma edição especial, limitada, nominal, de determinada obra, por ter um código, uma “marca d´água virtual” vinculada unicamente a ela no blockchain. Seria a matriz, o original digital.
Uma obra de artes plásticas se baseia, economicamente, na escassez, pois normalmente há um original físico, que pode ter reproduções, de valor inferior. Já uma obra literária pode ser reproduzida infinitamente pois o que circula é o seu conteúdo, que não se desgasta, nem é falsificado. No mundo digital normalmente não há original, nem perda de qualidade na reprodução das obras, pois imagem e texto podem ser reproduzidos infinitamente, sem alteração de fora, nem desgaste do arquivo.
Mas quando se cria um “original digital”, ressurge o fenômeno da escassez. Podem até existir vários exemplares idênticos, mas aquele, identificado por um código específico, por uma assinatura digital, será único, assim como um exemplar numerado de tiragem limitada. Sobre exemplar numerado também recomendo a leitura de Faça Igual.
Então a tecnologia conseguiu que o mundo imaterial reproduzisse quase por completo – às vezes aprimorasse - o mundo real. Relembrando. e-Books, arquivos digitais musicais, JPEGS, MPEGS, hologramas, avatares, projetam o mundo real na dimensão do imaterial.
No mundo das artes plásticas é possível essa reprodução. Desde Nam June Paik, artistas também se utilizam das ferramentas digitais para criar seus produtos. Sites, hologramas, sons eletrônicos, conversão de sons em imagens num Blender.
Os e-books normalmente reproduzem o texto de obra literária, que aparece na tela de aparelhos para leitura, na língua programada, sujeito o conteúdo a variações de iluminação, fonte etc.
No âmbito material um escritor cria seu livro. Mas a tecnologia permite que o realismo fantástico, ou sons, ou imagens, sejam agregados em edição especial, limitadíssima, eventualmente com trechos lidos pelo artista, em suporte imaterial e vinculado cada exemplar a um NFT. Assim é possível coexistirem livros simples de papel, e-books, e obras imateriais deliberadamente raras, identificadas por um NFT.
Essas obras imateriais - esses exemplares – podem ser vinculadas a um NFT, que lhes dá caráter de singularidade, individualidade, enfim exclusividade. Além do mais o registro de propriedade e autenticidade dessas obras, bens móveis imateriais, fica atestado na blockchain, impedindo falsificação e “furto”.
Proteção das obras imateriais pelo direito
A lei brasileira de direito autoral considera os direitos autorais bens móveis (art. 3º) e protege as obras imateriais, no seu art. 7º:
Art. 7º São obras intelectuais protegidas as criações do espírito, expressas por qualquer meio ou fixadas em qualquer suporte, TANGÍVEL OU INTANGÍVEL, conhecido ou que se invente no futuro, tais como:
O mesmo corre com as leis correspondentes na Itália[1] França[2], e Portugal[3], que também protegem obras imateriais, como por exemplo os e-books.
Fica demonstrado que existe proteção legal para as obras imateriais no Direito Brasileiro, mas sempre sujeitas ao princípio de autorização por parte de seu autor ou titular (art. 29[4]).
Transferência dos bens
Para a transferência de bens imóveis a lei brasileira exige um registro. Já para os bens móveis não há esse requisito; o bem móvel corpóreo (escultura, pintura, livro) se transmite pela tradição, pela entrega, não sendo essencial um registro. Pode-se criar um registro para arquivos de texto e de obras de arte imateriais, que tem enorme utilidade. Veja-se o caso do registro de direitos autorais na CBL.
Além da identificação da autoria da obra, do seu conteúdo original e da sua autenticidade, o registro permite outras utilidades, como, por exemplo, dar a obra em garantia de empréstimo de obrigação, e até registrar participação do autor na sua revenda, caso convencionado.
O mundo imaterial se amplia irreversivelmente. Nos negócios, nos hábitos cotidianos de leitura e reprodução musical, e agora no mundo das artes, as habilidades humanas são absorvidas e transpostas para essa nova dimensão, que coexiste com o mundo palpável.
De um modo geral, foi exposto o trajeto dessa tecnologia e as utilidades do NFT em relação as obras literárias e de arte. Uma nova dimensão se apresenta, com inúmeras oportunidades e novidades, que desafiam o direito, as obras intelectuais e toda a sociedade.
[1] Legge sul diritto d’autore (l. 22.4.1941 n. 633) ITALIA
TITOLO I Disposizioni sul diritto d’autore Capo I Opere protette
1. Sono protette ai sensi di questa legge le opere dell’ingegno di carattere creativo che appartengono alla letteratura, alla musica, alle arti figurative, all’architettura, al teatro ed alla cinematografia, qualunque ne sia il modo o la forma di espressione.
[2] Code de la propriété intellectuelle
Article L112-1 - Création Loi 92-597 1992-07-01 annexe JORF 3 juillet 1992
Les dispositions du présent code protègent les droits des auteurs sur toutes les oeuvres de l'esprit, quels qu'en soient le genre, la forme d'expression, le mérite ou la destination.
[3]Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos DL n.º 63/85 - PORTUGAL
Artigo 1º
1 - Consideram-se obras as criações intelectuais do domínio literário, científico e artístico, por qualquer modo exteriorizadas, que, como tais, são protegidas nos termos deste Código, incluindo-se nessa protecção os direitos dos respectivos autores.
[4] Art. 29. Depende de autorização prévia e expressa do autor a utilização da obra, por quaisquer modalidades, tais como:
Gustavo Martins de Almeida é carioca, advogado e professor. Tem mestrado em Direito pela UGF. Atua na área cível e de direito autoral. É também advogado do Sindicato Nacional dos Editores de Livros (SNEL) e conselheiro do MAM-RIO. Em sua coluna, Gustavo Martins de Almeida aborda os reflexos jurídicos das novas formas e hábitos de transmissão de informações e de conhecimento. De forma coloquial, pretende esclarecer o mercado editorial acerca dos direitos que o afetam e expor a repercussão decorrente das sucessivas e relevantes inovações tecnológicas e de comportamento. Seu e-mail é gmapublish@gmail.com.
** Os textos trazidos nessa coluna não refletem, necessariamente, a opinião do PublishNews.
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