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A Flip do acepipe
PublishNews, Henrique Rodrigues, 08/07/2019
Em sua coluna, Henrique Rodrigues defende que a Festa Literária de Paraty seja mais que uma ilha de ideias

Para quem trabalha no ramo, a Flip é mais ou menos como o Natal. É aquela época do ano em que todos fazem um tipo de balanço, miram nas possibilidades para o futuro e, dentro do que o orçamento permite, oferecem o melhor de si, na esperança de que a desgraceira restante dê uma trégua. Tudo bem que alguns saem no vermelho, mas não podiam ficar de fora da celebração.

Corrijo: é Natal para alguns do setor. Para outros, a época de bonança mesmo são as bienais do livro, pois é ali onde estão os leitores em quantidade, em busca massiva pelas celebridades dos livros – ou que, de alguma forma, tenham alguma ligação com esses objetos. Mas isso são outros 500 (mil).

Assim como no Natal, há o acúmulo de gente no mesmo espaço – a população da cidade dobra no período, e fazer uma refeição pode ser encarado com o um tipo de gincana. E também aparecem os parentes chatos que, se passam o ano inteiro exercendo sua chatice a distância, especialmente nas redes sociais, aparecem para dar um oi. Há que se ter paciência, a primeira virtude do período de festas.

E, tal qual no fim do ano, bebe-se bem.

Ainda que o evento goze de certa popularidade, a Flip parece não atrair mais tanta atenção das pessoas de fora do setor cultural, o que é natural para uma festa que já foi assimilada no calendário da cidade. Lembro-me bem que, nas primeiras edições, apareciam várias pessoas para abrilhantar ou ser abrilhantadas, tirando uma casquinha dos grandes nomes da literatura mundial, valendo-se do fato de a grande mídia brasileira estar presente em Paraty. Como esquecer a breve aparição do apresentador Gugu Liberato, que recebeu incontinenti a alcunha de Gugu Literato pelos camaradas escribas?

Neste ano, uma figura bastante esperada para a Flip é o jornalista Glenn Greenwald, do site The Intercept Brasil, canal responsável pela divulgação de diálogos comprometedores de Sergio Moro com os procuradores da Operação Lava-Jato. Será um desbunde ouvir o Glenn, mas fico imaginando como seria se aparecesse por lá o Osmar Terra, ministro da Cidadania, já que a Flip sempre lança mão da Lei de Incentivo à Cultura (até há pouco Lei Rouanet). Ou o próprio ministro da Educação, Abraham Weintraub. Ou não pode?

Outro dia, esse nosso ministro, em mais um tropeço da língua, trocou “asseclas” por “acepipes”. Isso porque, semanas antes, afirmou ser leitor de Kafta – talvez seja certo autor árabe que dá um barato. Os equívocos são um prato cheio (opa) para piadas, mas de fato parecem típicos de quem finge andar para frente mas vai para trás, num moonwalk que não deu certo. E por que não ir ao mais relevante acontecimento literário brasileiro, a fim de embeber-se de uma pinga e do que há de melhor na produção brasileira e internacional, ver um slam acontecendo e conhecer um pouco da cultura caiçara?

Sim, parecem situações absurdas e improváveis, dado o típico público da Flip. mas gostaria de imaginá-las justamente porque, de outro lado, também seria importante que pautas progressistas – entre elas a própria valorização da diversidade cultural, que é evidente nesses dias em Paraty mas ausente no dia a dia da população. No que se refere ao nosso mundo dos livros, não existe hoje, no país, nenhum grande programa de incentivo à leitura em atuação. Há muitos projetos de pequeno porte, iniciativas isoladas que até atingem a casa dos milhares, mas nada em escala que consiga atender a demanda daquela “base” a que se referiu o Mano Brown ano passado.

Gostaria, no fundo, é de ver o Glenn falando em Seropédica, cantão fluminense onde cresci e que, hoje, segue a cartilha de milicianos e das bancadas evangélicas, aparecendo na mídia apenas em notícias sobre corrupção e violência. Repetindo um passado que julgávamos enterrado, artistas têm sido censurados, livros têm sido proibidos, professores achacados em sala de aula, as múltiplas formas de violência têm sido estimuladas, de armas reais a simbólicas. Se isso parece ruim, pior mesmo é ver tantas pessoas considerando normal, e é nelas que precisamos chegar, comunicando fora da redoma (bolha é metáfora ruim, pois estoura fácil). O desafio é fazer, da ilha, uma península – e, quem sabe, continente.

Por isso é que a celebração literária da Flip me parece meio natalina. Estaremos por lá, batalhando mais uma vez, e renovando os votos de que tenhamos, no restante do ano, a mesma liberdade de expressão, e a consequente valorização de livros, de poesia e de ideias. Porque além desses quatro dias de suspensão da descrença, precisaremos muito da refeição completa, senão ficaremos só no acepipe – ou seja, mero tira-gosto.

Henrique Rodrigues nasceu no subúrbio do Rio de Janeiro, em 1975. É curador de programações literárias e consultor para projetos e programas de formação de leitores. Formou-se em Letras pela Uerj, cursou especialização em Jornalismo Cultural pela Uerj, mestrado e doutorado em Letras pela PUC-Rio. Já foi atendente de lanchonete, balconista de videolocadora, professor, superintendente pedagógico da Secretaria de Estado de Educação do RJ, coordenador pedagógico do programa Oi Kabum! e gestor de projetos literários no Sesc Nacional. É idealizador do Prêmio Caminhos de Literatura e curador do Prêmio Pallas de Literatura. Publicou 24 livros, entre poesia, infantis, juvenis e romances. www.henriquerodrigues.net

** Os textos trazidos nessa coluna não refletem, necessariamente, a opinião do PublishNews.

Tags: Flip 2019
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