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Luís e as semanas
PublishNews, Luciana Pinsky, 14/01/2019
Em nova crônica, Luciana Pinsky conta a história de uma mulher que vivia atrasada até que esbarrou num ciclista em pleno trânsito de SP

Não vi Luís. Não vi nada, na verdade. Estava atrasada, nasci atrasada (verdade, minha mãe conta que estava com 44 semanas, que por pouco não chego no Carnaval) e assim me mantive. O Luís passou atrás de mim. Eu com aquele carro grande, sempre odiei carro grande, gosto só do que posso controlar. E não o vi. Tive de dar uma ré. Uma ré que não era para dar, mas passou o ponto de fazer a virada, o outro carro me atrapalhou porque meteu o nariz na minha virada, Luís aproveitou para passar do meu lado, justo quando eu decidi pela ré. Não vi carro, não vi nada. Carro não tinha mesmo, mas Luís estava lá. E bati nele. Senti. Parei. Caos completo. Ele reclamou, disse que eu estava errada. E quando concordei ele ficou sem ação (me pareceu que ninguém havia, antes, concordado com ele).

Perguntei a Luís se ele se machucara. Ele disse que não. Pedi para sairmos do meio do trânsito, para pararmos na rua acima e conversarmos. Eu estacionei. Ele não apareceu. Será que foi embora, bravo? Quis ver também o que acontecera com o carro. Um pequeno arranhão. Nada, se comparado aos anos de vida que provavelmente eu perdera por estar sempre atrasada e não conseguir parar para pensar, parar para respirar, parar para conversar com tantos Luíses por aí.

Luís reclamou novamente, mas de um jeito delicado. Ele viu que eu me confessara culpada (será que devo me confessar culpada mais vezes, só para minar resistências?). Perguntei, novamente, se ele estava bem, se não se ferira. Fora um choque bem de leve, eu estava muito devagar, ele também. Quão rápido podemos estar indo para trás? Ele disse que tremia por causa do nervoso. Contou que não passara nem dois meses de um choque forte, dias de molho, prejuízo. E que o motorista nem parou.

Luís tremia, mas estava inteiro. Eu não tremia, mas estava bem aos pedaços pensando que poderia ter massacrado o moço que se atrevera com bicicleta no trânsito paulistano. Uma bicicleta que faz entregas, ele me contou. Disse que costumava trabalhar de moto, para uma empresa, mas já tinha tido acidentes demais assim (aquele anterior havia sido de moto) e que resgatou uma antiga bicicleta na casa da mãe, colocou bagageiro e passou a ser dono do próprio negócio. Sentia-se mais calmo, já tinha emagrecido oito quilos, sentiu a barriga achatar e percebeu que as mulheres começaram a dar mais bola a ele. Sim, tudo isso ele me contou enquanto parava de tremer. E eu que começara esta história atrasada, já estava atrasadíssima. Mas mais interessada em saber de Luís.

Até que ele também se percebeu atrasado. A entrega. Lá naquele bairro mesmo. A tremedeira passou, estou ótimo, me disse. Não vou deixar de pedalar. Isso tem de dar certo. O "isso" no caso seria sua empresa de entregas de bicicleta? A bicicleta? São Paulo? O trânsito compartilhado com carros, motos ônibus e bicicletas? Não deu tempo de perguntar. Luís me deu um sorriso, pegou a bicicleta e chispou. Eu larguei o carro e fui a pé. Nunca mais me atrasei. Nunca deixei de enxergar Luíses e Luísas.

E minha mãe disse que exagerou. Na verdade nasci de 41 semanas.

(nov 2018)

© Marcos IssaLuciana Pinsky é editora da Contexto, escritora e jornalista. Publicou o romance Sujeito oculto e demais graças do amor (Record) e mantém seu blog de crônicas. Há dois anos publica uma coluna sobre livros infantis no site Boraí.

** Os textos trazidos nessa coluna não refletem, necessariamente, a opinião do PublishNews.

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