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Ônibus biblioteca: 80 anos de uma experiência sempre renovada
PublishNews, 17/06/2015
Lindoso traz números de acessos ao programa paulistano Ônibus Biblioteca, além de contar a sua experiência em uma incursão do ônibus a um bairro da periferia da cidade

Mário de Andrade, cuja morte há 70 anos está sendo lembrada, criou o projeto do Ônibus Biblioteca em 1935, quando diretor do então Departamento de Cultura do Município de São Paulo, embrião da atual Secretaria Municipal de Cultura. A preocupação de Mário com o acesso da população à cultura é ainda mais antiga, com o estímulo da criação da biblioteca municipal que hoje leva seu nome, ainda na década de 1920, e da Discoteca Municipal, que hoje homenageia Oneida Alvarenga, musicóloga que trabalhou com o autor de Pauliceia desvairada.

O ônibus biblioteca partia de uma premissa simples: "Em vez de esperar em casa pelo seu público, vai em busca do seu público onde ele estiver". A frase é uma declaração de princípio de uma política cultural voltada para abertura ao público, de proporcionar a todos os cidadãos a oportunidade de ter acesso à leitura, o que muitas vezes lhe é negado por condições econômicas, e também pela situação de intimidação social que as pessoas muitas vezes sentem diante dos grandes prédios de bibliotecas e museus, e também das livrarias.

Como toda iniciativa de política pública, passou por muitos vaivéns. Interrompida em 1942 pela restrição ao combustível na II Guerra Mundial, volta e desaparece mais algumas vezes nesses 80 anos. Mas, enquadrada dentro do sistema de extensão das bibliotecas, nunca desaparece e renasce de suas cinzas cada vez mais forte.

Ano passado, os doze ônibus biblioteca, que cumprem 72 roteiros mensais, tiveram mais de 600 mil acessos, entre consultas e empréstimos, e matricularam mais de 21 mil novos usuários no sistema municipal de bibliotecas públicas, que agora podem acessar qualquer uma das unidades do sistema. Este ano, até abril, os dados compilados mostram já quase 200 mil acessos, entre consultas e empréstimos, com quase 90 mil frequentadores.

Os dados foram compilados pelo bibliotecário João Batista de Assis Neto, coordenador do serviço de extensão do SMBP, que inclui o Ônibus Biblioteca e que funciona junto à biblioteca Affonso Taunay, na Mooca (Rua Taquari, 549).

Informações que recolhi quando acompanhei a Maria José Silveira em sua participação em um dos roteiros, o que foi no último dia 9 até o Jardim Ângela. Uma hora e meia de viagem da Mooca até o Parque Nova Santo Amaro V, conjunto habitacional da prefeitura, no Jardim Ângela, no ônibus conduzido pelo Sr. Manoel José Rodrigues, pernambucano de Araripina que mora hoje em Barueri e toma cinco ônibus de casa até a garagem da Viação Urubupungá, na qual trabalha há 15 anos.

Além do motorista, estava no ônibus André Moura, coordenador da atividade, psicólogo formado pela Universidade Federal do Pará.

No Jardim Ângela encontramos a equipe dos atendentes do ônibus, três jovens que vão direto para o local: Raildo Pinheiro, formado em Letras pela Universidade Estadual da Bahia (campus de Conceição do Coité), Shirley dos Santos, graduada em Serviço Social pela Uninove, e única paulista e paulistana do grupo, e Vânia Silva, formada em História pela Universidade Estadual da Bahia (Campus de Vitória da Conquista). Maria José Silveira é goiana e eu sou amazonense. Um corte significativo da população da nossa megalópole. Acredito.

Montada a estrutura que vem no ônibus (proteção solar, mesas e cadeiras, suporte para jornais e revistas do dia/semana e avisos), saio para reconhecer a área. Estamos na frente de uma escola estadual de onde vem um barulho, evidentemente de alguma atividade no auditório. O conjunto Nova Santo Amaro V, com vários blocos, um belo campo de futebol profissional, área de lazer, está limpo e é bem cuidado pelos moradores. Mas, fora dali, o lixo se acumula. O recolhimento e a varrição, se passam, devem passar muito raramente. É o primeiro e mais visível sinal da diferença de tratamento do espaço urbano por parte da municipalidade.

Converso com um senhor que está sentado na arquibancada. É um pai que foi levar o filho para uma aula de reforço – particular, e o espera. O filho, diz ele, é bom nas coisas difíceis, gosta de matemática, mas é “fraco” em português e história, e é nessas matérias que recebe o reforço. Ele diz que o menino conhece o ônibus biblioteca e vai passar por ali depois da aula.

Começam a chegar os leitores. A equipe diz que o maior número de pessoas chega na hora do almoço, na saída das escolas. De fato, é o que acontece. Mas, antes disso, vão pingando. Jovens, na maioria. Algumas mães. Devolvem o que levaram na semana anterior e sobem na área do ônibus em que estão os livros, para escolher mais alguma coisa.

Subo no ônibus para ver como se comportam os leitores. Passam os olhos pelos livros, vários deles acabam se detendo nas seções de ilustrados: revistas, mangás. Converso com uma dupla de mocinhas e pergunto o que gostam de ler. “Histórias”. Acabo indicando a elas um livro do Scliar, que elas levam junto com números de revistas.

Não há nenhum exemplar de livros da Maria José no ônibus.

Os garotos, entretanto, se aproximar para conversar com “a autora”. São perguntas semelhantes às feitas nas escolas e nos encontros com alunos em bibliotecas: “como escreve”, de “onde aparecem as histórias”, etc. E, curioso, muitos pedem autógrafos em pedaços de papel.

Em uma Bienal de São Paulo, anos atrás, quando ainda tínhamos a Marco Zero, os meninos chegavam perguntando pelos autores que eventualmente estivessem ali para “pedir um autógrafo”. Era o que as professoras pediam que fizessem. Enfim, parece que a prática continua...

Quase duas da tarde, depois de algumas dezenas de pessoas passarem por ali, é hora de voltar. Dessa vez, voltamos nos ônibus do serviço público: uma van até o Terminal da M’Boi Mirim, um ônibus até o Metrô Santa Rosa e de lá até nossa estação. Quase duas horas e meia.

Enquanto estávamos por ali, notamos muitas vans escolares com crianças do bairro. São esses sinais contraditórios que aparecem: os pais pagando o transporte escolar. Na van que tomamos, um garoto com a camiseta da uma escola particular: “Little Sapiens”. Comércio intenso na M’Boi Mirim, com lojas de cadeias conhecidas e lojas locais. Muita gente.

Evidentemente o programa de ônibus biblioteca pode ser aperfeiçoado. Um acompanhamento dentro do ônibus para ajudar e orientar na escolha dos livros parece ser uma necessidade óbvia. O pessoal está capacitado para fazer isso, e se receber uma formação mais específica sobre os acervos, isso iria melhorar a diversidade das escolhas.

Outra falha evidente é não ter livros dos autores nos ônibus. A Maria José tem vários títulos nas bibliotecas do SMBP, e como ela certamente os outros autores que estavam programados para o mês, inclusive o Milton Hatoum. Uma providência básica é levar os livros dos autores para os ônibus que os receberão.

Os números do programa, entretanto, falam por si, como vimos. E, nas bibliotecas, todos os meses é distribuída uma edição de uma agenda com as atividades programadas para cada uma delas. A agenda impressiona pela quantidade e pela qualidade da programação, que vai da indefectível contação de história a palestras e encontros com autores, sessões de cinema, saraus, música, cursos e oficinas, exposições.

Foi, assim, uma experiência muito interessante e enriquecedora. Evidencia o esforço que se faz para tornar acessíveis os mais variados tipos de atividades e produtos culturais nesse locus por excelência de convívio que são as Bibliotecas Públicas e suas atividades de extensão: ônibus biblioteca, ponto de leitura, bosque da leitura, lá “pelas quebradas”, como diz o poeta Sérvio Vaz, o animador da Cooperifa – que, aliás, está ali por perto.

É preciso ter mais desses programas, e que as atividades sejam sempre aperfeiçoadas para cumprir cada vez melhor com seus propósitos.

Felipe Lindoso é jornalista, tradutor, editor e consultor de políticas públicas para o livro e leitura. Foi sócio da Editora Marco Zero, diretor da Câmara Brasileira do Livro e consultor do CERLALC – Centro Regional para o Livro na América Latina e Caribe, órgão da UNESCO. Publicou, em 2004, O Brasil pode ser um país de leitores? Política para a cultura, política para o livro, pela Summus Editorial. Mantêm o blog www.oxisdoproblema.com.br. Em sua coluna, Lindoso traz reflexões sobre as peculiaridades e dificuldades da vida editorial nesse nosso país de dimensões continentais, sem bibliotecas e com uma rede de livrarias muito precária. Sob uma visão sociológica, ele analisa, entre outras coisas, as razões que impedem belos e substanciosos livros de chegarem às mãos dos leitores brasileiros na quantidade e preço que merecem.

** Os textos trazidos nessa coluna não refletem, necessariamente, a opinião do PublishNews.

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