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O Julgamento de Paris – a vida parece um filme
PublishNews, 28/02/2013
O Julgamento de Paris

Em 1976, um acontecimento influenciou uma das artes mais valorizadas do mundo, deslocando o eixo histórico e geográfico da tradição associada a um produto cujo início da produção remonta a cerca de 2 mil anos antes do aparecimento do primeiro livro: o vinho.

O dito evento ocorreu há 36 anos e afetou profundamente paradigmas que haviam se estabelecido ao longo de 9 mil anos. Se diante de tantas informações de que dispomos ainda agimos de forma equivocada, esse é um tema que merece constante reflexão. Sempre há um interesse pessoal, humano, por trás de toda a informação que é veiculada e, quando a verdade põe em risco o status de algo bem consolidado, mais difícil se torna a barreira a ser vencida.

Para abordar o tema, decidi utilizar um filme que discorre exatamente sobre uma quebra de paradigma. Em O julgamento de Paris, um sommelier francês fica sabendo que estão produzindo vinho de boa qualidade na Califórnia. Ele viaja até lá e volta para a França com dezenas de garrafas. Então, em Paris, em maio de 1976, ele realiza um teste cego com a participação de críticos e enólogos muito respeitados na França, para degustar renomados vinhos franceses e alguns vinhos californianos. O resultado assombrou a comunidade internacional, fazendo cair uma tradição cristalizada há décadas, senão séculos: o primeiro lugar foi para um vinho californiano. O vinho francês não era mais o melhor vinho do mundo.

Estrelado por Alan Rickman no papel do sommelier e Bill Pulman no do fazendeiro californiano, o filme tem um roteiro bem engendrado, que retrata em detalhes as dificuldades de uma região vinícola que tentava se firmar há anos sem sucesso. Uma árdua busca por reconhecimento, enfrentando as críticas pelo simples fato dos vinhos não pertencerem a uma escola tradicional ou não serem levados em conta pela elite europeia.

Este foi um momento divisor de águas na descentralização da produção internacional de vinhos – um dogma de valor e superioridade que não fazia mais sentido. Quebrou barreiras, viabilizou a produção em outras regiões do mundo e demonstrou que aquilo que era tratado como rara preciosidade, o vinho francês, não era artigo único. Além disso, revelou que povos sem tradição em vinícolas eram capazes de produzir vinhos melhores e que os consagrados vinhos franceses não iriam mais gozar de um privilégio imerecido. No fundo, a questão da superioridade do vinho francês era como um burgo estúpido, que defendia dinastias e tentava se manter no poder tratando todos os outros como cópias baratas.

Recomendo o filme (ao final coloco um link para quem tiver curiosidade de ver detalhes do julgamento). Divertido e interessante, é uma excelente introdução à história do vinho, e possui elementos que podem nos fazer refletir sobre o momento atual da literatura.

Nas últimas semanas li duas matérias que abordaram a questão da literatura trazendo cada uma dados incontestes, quais sejam:

1) Gêneros literários mais refinados, como a poesia, promovem a atividade cerebral (como se o ato de ler não tivesse nenhuma relação com o prazer do leitor, que escolhe um gênero, e não outro), e

2) Um escritor latino-americano, vencedor do prêmio Nobel, descendo a ripa na literatura de entretenimento, chamando de bárbaro o mundo no qual ela emerge.

Lembro de um filme, “A história de nós dois”, com Michelle Pfeiffer e Bruce Willis, casal maduro na casa dos 40 anos que vive uma crise matrimonial, até que um deles consegue se colocar na posição do outro e ver o problema sob novo ponto de vista.

A imagem dessa revelação é um assombro. O tema pode parecer comezinho, mas o filme apresenta essa história com muita beleza. Raramente conseguimos fazer isso em nossas vidas... Todo mundo tem um olhar crítico sobre o outro e seus gostos, e isso não é diferente na literatura.

Quando Vargas Llosa critica a literatura sem refinamento e afirma que graças à alta literatura nos tornamos mais civilizados, menos animalescos, acredito que ele esteja se limitando a um único ponto de vista. E me pergunto: será que seu incômodo não reside no fato de que o tipo de literatura que faz começa a perder espaço nas gôndolas? Será que este pensamento, que não é apenas dele, não se atenta para o fato de que há muito mais gente com acesso à literatura hoje que 20 anos atrás? Qual é o efeito social de uma maior presença da literatura comercial? Eu penso primeiramente em democratização da leitura, acesso à cultura por uma grande parte da população que sempre esteve apartada deste processo.

Voltemos ao passado. Cem anos atrás, havia duas minorias que estavam alijadas do processo eleitoral: mulheres e negros. Hoje, basta um candidato atender aos anseios de apenas um desses grupos de eleitores para ganhar uma eleição. Podemos dizer que estamos representados de forma pior? Que o nível dos políticos caiu? Que esta escolha mais popular denegriu a classe política e tornou o processo eletivo ruim? Ruim para quem?

Para muitas pessoas, a inclusão nos projetos de quem deseja se eleger foi excelente. Se comparássemos a popularização da literatura comercial que Vargas Llosa critica ao acesso ao voto, poderíamos pensar que ele prefere que as decisões de uma nação voltem para as mãos das elites. Duvido que ele pense assim. O que me leva a outra questão. Declarações desse tipo são feitas sem muita reflexão sobre o olhar do outro, daquele que não podia votar ou ler, e este é o mais importante neste novo momento, se nossa proposta é inclusão.

Quando grande parte da população começa a ter acesso à cultura, é matemático que a cultura se alinhe com a média da população, e é o que estamos assistindo em todo o mundo nas listas de livros mais vendidos, onde desapareceram os livros mais literários. Mas, criticar isso não me parece uma ideia humanista, pois seria desejar a volta ao nível de elitismo cultural do passado.

Meu propósito aqui foi de retomar a discussão a respeito dessa mania de valorizar aquilo que é valorizado por uma certa minoria influente e desprezar o restante das pessoas, atitude que sempre esteve presente na cena literária nacional e que foi responsável por inúmeros atrasos, tanto na produção quanto no consumo de literatura. Trata-se de uma tentativa de barrar a mudança, embora acredite que ela está fadada ao insucesso. Não funcionou para a música, nem para o vinho, e tampouco vai funcionar para a literatura. Parece-me a forma mais estúpida e desesperada de, a pretexto de valorizar a cultura, defender o espaço daqueles que estavam confortáveis com a situação.

Mais impressionante ainda é que muitos tratam desse acesso popular como se fosse o fim do mundo. Como se a cultura de massa fosse exterminar as demais culturas clássicas. Isso não vai acontecer. Tal atitude me lembra os discursos de alguns lideres cristãos, que fomentam na cabeça dos seguidores a ideia de que, se a população permitir o casamento entre pessoas do mesmo sexo, a raça humana será exterminada, ou seja, num passe de mágica, todos os seres humanos abandonariam a heterossexualidade.

Da mesma forma que a música popular não acabou com a música clássica, a literatura de entretenimento não acabou e não vai acabar com a produção de obras de alto valor literário em nenhuma parte do mundo. O que está mudando é o horizonte do grande escritor de alta literatura, que atualmente está ciente, terá de batalhar mais para ser lido, terá que disputar espaço em feiras e eventos literários com escritores de fantasy, romances comerciais e livros de autoajuda.

É claro que há também uma perda de status e uma divisão de prestígio. A ideia de que devemos proteger e conservar alguma coisa parece ser útil em relação aos recursos naturais, mas não acerca de opiniões que interferem nos hábitos culturais e escolhas de um grupo.

Quanto antes se entender isso poderemos reagir, não com críticas de gosto, mas recuperando o atraso cultural que, por muito tempo, bloqueou o acesso das pessoas a artes mais antigas e refinadas. Em vez de reclamar de uma onda, que se comece a produzir opções ou meios para dar acesso ao que é tratado como obra de melhor qualidade. Ainda que ame literatura e artes, não consegui uma prova de que a literatura (ou a melhor instrução) tivesse o poder de tornar as pessoas melhores que outras de uma forma geral. Se a literatura faz algum bem é para quem procura isto nela, e que outros podem buscar esse bem na ciência, na religião, no ateísmo, na filosofia ou numa atividade qualquer.

Link do site Jornal do vinho sobre o Julgamento de Paris: http://jornaldovinho.com.br/alguns-detalhes-do-julgamento-de-paris/

Se quiser comentar, entre no meu blog. www.faroeditorial.wordpress.com

Pedro Almeida é jornalista profissional e professor de literatura, com curso de extensão em Marketing pela Universidade de Berkeley. Autor de diversos livros, dentre eles alguns ligados aos animais, uma de suas paixões. Atua no mercado editorial há 26 anos. Foi publisher em editoras como Ediouro, Novo Conceito, LeYa e Saraiva. E como editor associado para Arx; Caramelo e Planeta. É professor de MBA Publishing desde 2014 e foi presidente do Conselho Curador do Prêmio Jabuti entre os anos 2019 e 2020. Em 2013 iniciou uma nova etapa de sua carreira, lançando a própria editora: Faro Editorial.

Sua coluna traz exemplos recolhidos do cinema, de séries de TV que ajudam a entender como funciona o mercado editorial na prática. Como é o trabalho de um ghost writer? O que está em jogo na hora de contratar um original? Como transformar um autor em um best-seller? Muitas dessas questões tão corriqueiras para um editor são o pano de fundo de alguns filmes que já passaram pelas nossas vidas. Quem quer trabalhar no mercado editorial encontrará nesses filmes algumas lições importantes. Quem já trabalha terá com quem “dividir o isolamento”, um dos estigmas dos editores de livros. Pedro Almeida coleciona alguns exemplos e vai comentá-los uma vez por mês.

** Os textos trazidos nessa coluna não refletem, necessariamente, a opinião do PublishNews

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