Três perguntas do PN para João Bernardo Caldeira
PublishNews, Monica Ramalho, 17/10/2025
Inspirada em Krenak, peça 'Ideias para adiar o fim do mundo' fará seis apresentações em teatro carioca em segunda temporada

Inspirado na obra do escritor e pensador Ailton Krenak, o monólogo Ideias para adiar o fim do mundo reestreia nesta sexta-feira, 17 de outubro, no Teatro Sérgio Porto (Rua Visconde de Silva, ao lado do número 292, Humaitá – Rio de Janeiro / RJ). Estrelada pelo ator Yumo Apurinã, a peça investiga as raízes da colonização que perdura no Brasil há 525 anos, desde o chamado “descobrimento” — ou, como o próprio roteiro enfatiza, “invasão”, palavra mais legítima para contar essa história de extermínio, etnocídio, expropriação de terras, devastação ambiental e tragédia climática motivados por ganância e poder.

O PublishNews conversou com o idealizador e diretor do espetáculo, o jornalista João Bernardo Caldeira, que assina o texto e o cenário da montagem. Filho do premiado cineasta Oswaldo Caldeira, João conta que reuniu uma equipe formada, em sua maioria, por pessoas de origem indígena para a realização do trabalho e que o processo criativo foi realizado coletivamente por meses até o espetáculo encontrar o tom. A segunda temporada será curta — só até o dia 26 de outubro —, tempo suficiente para que mais pessoas assistam à montagem, que entra em cartaz pouco menos de um ano após a estreia no Teatro Futuros, também no Rio de Janeiro.

“Na terra que passaria a chamar de Brasil, o aparato colonial operou uma eficiente máquina de destruição simbólica a material: os povos que aqui viviam foram classificados como primitivos, selvagens, pecaminosos, improdutivos e sob esse discurso de poder ergueu-se o Estado brasileiro e sua missão civilizatória de evangelizar, colonizar, exterminar e converter esses povos em ‘cidadãos nacionais’. Há sangue em nossa história e essa ferida segue aberta”, afirma João Bernardo. Leia a conversa na íntegra:

PUBLISHNEWS - ⁠Inspirado nas ideias de Ailton Krenak, o espetáculo propõe um deslocamento profundo: mais do que representar o pensamento indígena, busca vivê-lo em cena. Como foi transformar essas reflexões em ação teatral — especialmente num processo que parte da própria experiência de Yumo Apurinã?

JOÃO BERNARDO CALDEIRA - Uma das mais ricas potências do teatro - ao menos o teatro em que acredito e tento praticar - é a sua capacidade de presentificar e inventar imaginários. Se entendermos as ideias de pensamento e reflexão como lugares de criação, é possível compreender que o exercício de pensar não existe fora de uma prática de invenção. Para viver o pensamento e a trajetória de Ailton Krenak e investigar as raízes do povo Apurinã - do qual o ator faz parte, nascido na Aldeia Mawanaty, na Amazônia - assumimos a imaginação como processo necessário para levar a trajetória de vida dessas pessoas aos palcos, como também conectar e constelar suas existências com a de outros povos. No início do processo, perguntei ao próprio Krenak como me aprofundar nos detalhes do seu povo. Com sua reconhecida sabedoria, Ailton me lembrou que essa não era a temática central de sua obra e que eu deveria seguir a minha intuição e me conectar com a sua obra. Eu e Yumo partimos então o nosso processo de ensaios, de oito meses de criação, dessa indagação: do que tratam não apenas as obras deste grande filósofo da floresta, as ideias publicadas em seus livros, mas suas ações, palestras, seus gestos estéticos e políticos? Com o tempo, as bases da pesquisa cênica se tornaram mais nítidas: propor ao público uma experiência que pudesse evocar, manifestar, envolver, confluir, espiritar - em torno das questões dispostas cenicamente. Trabalhamos a ideia central que perpassa o livro Ideias para adiar o fim do mundo (Companhia das Letras, 2020) - a interrogação se 'somos mesmo uma humanidade?’ - como dispositivo de investigação do lugar concreto do sonho (tão importante em diversas cosmopercepções de povos originários), não como metáfora ou mitologia, mas como espaço efetivo de conexão com a terra, com os seres vivíveis e invisíveis e de confronto com a hierarquia moderna que separa e ordena corpos, imaginários e espécies. Numa etapa seguinte, Yumo passa a anotar seus sonhos, perguntar a outras pessoas sobre seus sonhos e assim são construídas, gradativamente, suas paisagens internas e externas que alimentaram suas ações psicofísicas em cena.

Cartaz da nova temporada no Rio
Cartaz da nova temporada no Rio

PN - ⁠O espetáculo questiona as “ficções” que sustentam a ideia de humanidade e de Brasil. E como você traduziu essa provocação para o texto e para a cena? E de que forma você busca equilibrar, no ensaio e no palco, a escuta e o pensamento com a urgência do gesto artístico?

JBC - Já é amplamente documentado pela historiografia que a formação dos Estados-Nação ocorreu sob processos de uniformização de unidades culturais artificiais nos quais idiomas, etnias e territórios foram subjugados. Na terra que passaria a chamar de Brasil, o aparato colonial operou uma eficiente máquina de destruição simbólica a material: os povos que aqui viviam foram classificados como primitivos, selvagens, pecaminosos, improdutivos e sob esse discurso de poder ergueu-se o Estado brasileiro e sua missão civilizatória de evangelizar, colonizar, exterminar e converter esses povos em "cidadãos nacionais". Há sangue em nossa história e essa ferida segue aberta. Esse tipo de delírio ufanista inflou figuras como Marechal Cândido Rondon, frequentemente celebrado como "defensor dos indígenas". Seu horizonte era a integração assimilacionista, um aniquilamento cultural distinto do extermínio físico, mas igualmente predatório. Procuramos expor essas “ficções” e máscaras civilizatórias que ainda hoje orientam olhares preconceituosos e racistas. Entendo que o "lugar de fala" da arte pode ser compreendido como esse espaço estratégico e estético-político capaz de fissurar as hegemonias sociais e políticas constituídas. Desse modo, a arte reafirma seu posicionamento próprio e autônomo diante da vida e, ao mesmo tempo, configura-se como um espaço transversal, ética e politicamente imbricado no próprio tecido social do qual também faz parte.

PN - ⁠Você transita entre a crítica, a pesquisa e a direção teatral. Que atravessamentos desse percurso teórico e jornalístico se manifestam em Ideias para adiar o fim do mundo? Na sua visão, o teatro contemporâneo brasileiro tem conseguido trair as suas próprias ancestralidades coloniais?

JBC - Entendo que, desde cerca de uma década, corpos e saberes historicamente minorizados vêm ocupando a cena e colocado em xeque as balizas dos sistemas hegêmonicos que sustentam o cisheteropratiarcado e o capitalismo contemporâneo e que produzem violências estruturais como machismo, sexismo, racismo, expropriação cultural e a destruição do planeta. Na tese de doutorado recém-concluída em artes cênicas na ECA-USP (intitulada "Derrocada do sujeito universal e reflorestamento de existências: teatros de falas"), proponho nomear essa cena dissidente como "teatros de falas". Não se trata de simples ampliação temática, mas de uma reorganização simbólica dos modos de autoria, de recepção e produção estética, uma virada decolonial no teatro brasileiro do século XXI. Ideias para adiar o fim do mundo, assim como a idealização do espetáculo Para meu amigo branco, dirigido por Rodrigo França e inspirado no livro de Manoel Soares, são profundamente influenciados pelos trabalhos surgidos nessa inflexão histórica. Dialogo também com autoras e autores como Geni Núñez, Djamila Ribeiro, Paul Preciado e Achille Mbembe, não apenas para pensar esta cena como denúncia e visibilização de práticas sistêmicas de violência, mas também como espaço de reinvenção de imaginários nos quais a diferença não seja socialmente assimilada e hierarquizada, mas partilhada em sua singularidade.

[17/10/2025 10:43:01]