
Em junho de 2024, o livro O menino marrom (Melhoramentos), de Ziraldo, foi suspenso de escolas em Conselheiro Lafaiete, Minas Gerais, após pressão dos pais, sob o argumento de que o conteúdo era agressivo. Na mesma época, a Secretaria Municipal de Educação de São José dos Campos ordenou que os exemplares do infantojuvenil Meninas sonhadoras, mulheres cientistas (Mostarda) – que narra a trajetória de mulheres relevantes para a história brasileira, como Lélia González, Dorina Nowill e Sueli Carneiro — fossem retirados de bibliotecas da cidade. Também no ano passado, O avesso da pele (Companhia das Letras), de Jeferson Tenório, foi impedido de circular em escolas de Mato Grosso do Sul, Goiás e Paraná. Antes, em 2020, até Machado de Assis se tornou alvo da sanha censória: um secretário de educação de Rondônia determinou a retirada de Memórias póstumas de Brás Cubas e outras 42 obras das escolas do estado por “conteúdo inapropriado”. Mais recentemente, a Festa Literária Pirata das Editoras Independentes (Flipei) precisou mudar seu planejamento de seis meses em 48 horas após a Fundação Theatro Municipal vetar a realização do evento no centro de São Paulo (SP).
Os argumentos variam caso a caso, mas se mantêm próximos: conteúdos considerados “agressivos” ou “inadequados” para crianças, “apologia ao aborto”, “expressões impróprias”.
Ainda não há um levantamento quantitativo de títulos censurados no Brasil, mas nos Estados Unidos o cenário traz números: 4.218 estão presentes no Index of School Book Bans (Índice de proibições de livros escolares) do último ano letivo (agosto de 2023 a junho de 2024), segundo dados da organização sem fins lucrativos PEN America, voltada para a proteção da liberdade de expressão na literatura. Dobro do total registrado no ano anterior, o montante é resultado de mais de 10 mil ações judiciais relacionadas a retiradas de títulos de bibliotecas e escolas.
Em outras partes do mundo também pipocam relatos: na Hungria e na Rússia, obras com temáticas LGBTQIAP+ foram retiradas de livrarias, e multas, aplicadas a empresas. De acordo com a ONG internacional Organization for World Peace, na China a censura é pró-ativa: certas palavras e referências a acontecimentos políticos são proibidas, e, com a promulgação de uma nova Lei de Segurança Nacional em 2020, a tendência chegou a Hong Kong. Livros turcos foram retirados de circulação entre 2022 e 2023 sob a alegação de serem “subversivos”.
A escritora e ensaísta carioca Sabrina Baêta vive nos EUA há quase 20 anos. Gestora Sênior do programa Freedom to Read, da PEN América, ela acredita que a falta de acesso a livros nas bibliotecas pode acarretar no aumento da desigualdade social, na medida em que priva os leitores de conhecimento sobre o mundo e sobre eles próprios, reduzindo as chances de ascensão nos campos da educação e do trabalho. “Além da questão do livre acesso à informação, livros retirados das prateleiras são ferramentas que estudantes podem usar para aprender sobre si mesmos e sobre suas identidades.”
No livro Resistência: leitores, autores, livreiros, editores e censura a livros no Brasil de 2019 a 2022, disponível no portal de livros abertos da Universidade de São Paulo, a professora Sandra Reimão, livre-docente na Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH), da USP, atesta que são perceptíveis os alvos dos ataques no Brasil: a cultura afro-brasileira, a sexualidade e o que ela chama de bruxaria, ou seja, livros infantis com seres mágicos e obras com temas relacionados ao sobrenatural.
O bibliotecário e doutor em Ciência da Informação pela Escola de Comunicação e Artes (ECA) da USP, Willian Righini de Souza, pesquisa a censura a livros com temática de gênero no Brasil. Segundo ele, ao menos desde os anos 1930 obras com temáticas feminista, afro e LGBTQIAP+ sofrem tentativas de censura. Com a popularização da internet nos anos 2000, porém, a reação por parte de grupos contrários à pauta progressista se intensificou. O número de pesquisas no Google pelo termo “ideologia de gênero” teve seus picos históricos nos últimos 12 meses, legislações para limitar a circulação e o acesso a livros sobre esses assuntos surgiram em diferentes cidades, que também promoveram exclusão ou proibição de algumas expressões de documentos públicos (como “gênero” ou “orientação sexual”) — além da constatação cada vez mais comum de uma pressão pública, exercida nos discursos, que podem gerar autocensura em bibliotecários e educadores.
Outros dados apurados pela PEN América apontam na mesma direção: nos EUA, 44% dos livros banidos na categoria de “história e biografias” tinham pessoas ou personagens não brancas como enfoque, e 25% deles tinham protagonistas LGBTQIAP+.
Desde a promulgação da Constituição de 1988, não existe mais censura oficial no Brasil. Mas os especialistas reconhecem um crescimento nos esforços de censurar e limitar a circulação de livros nos últimos anos. “São os pequenos poderes”, sintetiza Sandra Reimão, finalista do Prêmio Jabuti em 2012 com o livro Repressão e resistência: censura a livros na Ditadura Militar (Edusp). A professora avalia que figuras investidas de poder público, por assim dizer, como secretários municipais e estaduais, diretores de escolas e coordenadores de bibliotecas, tentam se afirmar no campo político conservador por meio de decisões dessa natureza. “O gestor não vai falar que está praticando censura, vai falar que está protegendo o adolescente. É interessante notar que eles promovem essa tentativa de retirar o livro de forma bem retumbante, afirmando: ‘Na minha biblioteca, não’. ”
Sandra Reimão destaca o ano de 2015 como o marco inicial dessa onda mais recente — que atingiu, entre outros, o romance O avesso da pele. Jeferson Tenório chegou a receber ameaças de morte. Em entrevista ao PublishNews em uma padaria em São Paulo, o escritor relaciona a questão à forma como setores conservadores lidam, segundo ele, com o desejo, tentando difundir uma higienização e o controle de corpos. “Uma pessoa que vai atrás do seu próprio desejo é uma pessoa difícil de controlar, e que deixa de ser um corpo dócil.”

Censura para além do livro em si
As perdas envolvidas nessas tentativas de ataque vão além do plano material. Para Tenório, essas ações são um desserviço a uma questão ainda maior: “Em um país que não é considerado um país leitor, medidas como essas afastam a possibilidade de formar mais leitores”. O vencedor do Prêmio Jabuti em 2021 considera “cruel” exigir uma cultura leitora no Brasil, dado o falho processo histórico da educação formal no país.
Entre o pedido da conta e a chegada do garçom, pensando na sua própria trajetória, o escritor termina a entrevista dizendo que seria uma pessoa menor se algum autor fosse retirado de seu convívio, no decorrer de sua formação literária. “Cada leitura nos potencializa e nos leva a mais um passo para chegarmos a um lugar de autenticidade existencial.”
Desde 1988, não existe mais censura oficial no Brasil. Mas os especialistas reconhecem crescimento nos esforços de limitar a circulação de livros nos últimos anos

*Uma versão desta matéria foi veiculada na primeira edição da Revista PublishNews (impressa), lançada em junho de 2025, com tiragem de 10 mil exemplares e distribuição gratuita, tanto física quanto digitalmente. Quer contribuir financeiramente com o canal? Clique aqui.