Livros sobre cultura afro-brasileira e sexualidade são alvo de tentativas de censura no Brasil e no mundo
PublishNews, Beatriz Sardinha, 14/08/2025
Especialistas consultados pelo PublishNews falam sobre como novas formas de censura atingem editores, escritores e profissionais do setor dentro e fora do país

Tentativas de censura partem não apenas de membros dos governos, mas também de pais e escolas | © Freepik
Tentativas de censura partem não apenas de membros dos governos, mas também de pais e escolas | © Freepik
Milhares de mundos, estrelas, e pessoas — subitamente removidos das prateleiras e das bibliotecas, por uma decisão, uma canetada.

Em junho de 2024, o livro O menino marrom (Melhoramentos), de Ziraldo, foi suspenso de escolas em Conselheiro Lafaiete, Minas Gerais, após pressão dos pais, sob o argumento de que o conteúdo era agressivo. Na mesma época, a Secretaria Municipal de Educação de São José dos Campos ordenou que os exemplares do infantojuvenil Meninas sonhadoras, mulheres cientistas (Mostarda) – que narra a trajetória de mulheres relevantes para a história brasileira, como Lélia González, Dorina Nowill e Sueli Carneiro — fossem retirados de bibliotecas da cidade. Também no ano passado, O avesso da pele (Companhia das Letras), de Jeferson Tenório, foi impedido de circular em escolas de Mato Grosso do Sul, Goiás e Paraná. Antes, em 2020, até Machado de Assis se tornou alvo da sanha censória: um secretário de educação de Rondônia determinou a retirada de Memórias póstumas de Brás Cubas e outras 42 obras das escolas do estado por “conteúdo inapropriado”. Mais recentemente, a Festa Literária Pirata das Editoras Independentes (Flipei) precisou mudar seu planejamento de seis meses em 48 horas após a Fundação Theatro Municipal vetar a realização do evento no centro de São Paulo (SP).

Os argumentos variam caso a caso, mas se mantêm próximos: conteúdos considerados “agressivos” ou “inadequados” para crianças, “apologia ao aborto”, “expressões impróprias”.

Ainda não há um levantamento quantitativo de títulos censurados no Brasil, mas nos Estados Unidos o cenário traz números: 4.218 estão presentes no Index of School Book Bans (Índice de proibições de livros escolares) do último ano letivo (agosto de 2023 a junho de 2024), segundo dados da organização sem fins lucrativos PEN America, voltada para a proteção da liberdade de expressão na literatura. Dobro do total registrado no ano anterior, o montante é resultado de mais de 10 mil ações judiciais relacionadas a retiradas de títulos de bibliotecas e escolas.

Em outras partes do mundo também pipocam relatos: na Hungria e na Rússia, obras com temáticas LGBTQIAP+ foram retiradas de livrarias, e multas, aplicadas a empresas. De acordo com a ONG internacional Organization for World Peace, na China a censura é pró-ativa: certas palavras e referências a acontecimentos políticos são proibidas, e, com a promulgação de uma nova Lei de Segurança Nacional em 2020, a tendência chegou a Hong Kong. Livros turcos foram retirados de circulação entre 2022 e 2023 sob a alegação de serem “subversivos”.

A escritora e ensaísta carioca Sabrina Baêta vive nos EUA há quase 20 anos. Gestora Sênior do programa Freedom to Read, da PEN América, ela acredita que a falta de acesso a livros nas bibliotecas pode acarretar no aumento da desigualdade social, na medida em que priva os leitores de conhecimento sobre o mundo e sobre eles próprios, reduzindo as chances de ascensão nos campos da educação e do trabalho. “Além da questão do livre acesso à informação, livros retirados das prateleiras são ferramentas que estudantes podem usar para aprender sobre si mesmos e sobre suas identidades.”

No livro Resistência: leitores, autores, livreiros, editores e censura a livros no Brasil de 2019 a 2022, disponível no portal de livros abertos da Universidade de São Paulo, a professora Sandra Reimão, livre-docente na Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH), da USP, atesta que são perceptíveis os alvos dos ataques no Brasil: a cultura afro-brasileira, a sexualidade e o que ela chama de bruxaria, ou seja, livros infantis com seres mágicos e obras com temas relacionados ao sobrenatural.

O bibliotecário e doutor em Ciência da Informação pela Escola de Comunicação e Artes (ECA) da USP, Willian Righini de Souza, pesquisa a censura a livros com temática de gênero no Brasil. Segundo ele, ao menos desde os anos 1930 obras com temáticas feminista, afro e LGBTQIAP+ sofrem tentativas de censura. Com a popularização da internet nos anos 2000, porém, a reação por parte de grupos contrários à pauta progressista se intensificou. O número de pesquisas no Google pelo termo “ideologia de gênero” teve seus picos históricos nos últimos 12 meses, legislações para limitar a circulação e o acesso a livros sobre esses assuntos surgiram em diferentes cidades, que também promoveram exclusão ou proibição de algumas expressões de documentos públicos (como “gênero” ou “orientação sexual”) — além da constatação cada vez mais comum de uma pressão pública, exercida nos discursos, que podem gerar autocensura em bibliotecários e educadores.

Outros dados apurados pela PEN América apontam na mesma direção: nos EUA, 44% dos livros banidos na categoria de “história e biografias” tinham pessoas ou personagens não brancas como enfoque, e 25% deles tinham protagonistas LGBTQIAP+.

Desde a promulgação da Constituição de 1988, não existe mais censura oficial no Brasil. Mas os especialistas reconhecem um crescimento nos esforços de censurar e limitar a circulação de livros nos últimos anos. “São os pequenos poderes”, sintetiza Sandra Reimão, finalista do Prêmio Jabuti em 2012 com o livro Repressão e resistência: censura a livros na Ditadura Militar (Edusp). A professora avalia que figuras investidas de poder público, por assim dizer, como secretários municipais e estaduais, diretores de escolas e coordenadores de bibliotecas, tentam se afirmar no campo político conservador por meio de decisões dessa natureza. “O gestor não vai falar que está praticando censura, vai falar que está protegendo o adolescente. É interessante notar que eles promovem essa tentativa de retirar o livro de forma bem retumbante, afirmando: ‘Na minha biblioteca, não’. ”

Sandra Reimão destaca o ano de 2015 como o marco inicial dessa onda mais recente — que atingiu, entre outros, o romance O avesso da pele. Jeferson Tenório chegou a receber ameaças de morte. Em entrevista ao PublishNews em uma padaria em São Paulo, o escritor relaciona a questão à forma como setores conservadores lidam, segundo ele, com o desejo, tentando difundir uma higienização e o controle de corpos. “Uma pessoa que vai atrás do seu próprio desejo é uma pessoa difícil de controlar, e que deixa de ser um corpo dócil.”

Jeferson Tenório | © Beatriz Sardinha / PublishNews
Jeferson Tenório | © Beatriz Sardinha / PublishNews

Censura para além do livro em si

As perdas envolvidas nessas tentativas de ataque vão além do plano material. Para Tenório, essas ações são um desserviço a uma questão ainda maior: “Em um país que não é considerado um país leitor, medidas como essas afastam a possibilidade de formar mais leitores”. O vencedor do Prêmio Jabuti em 2021 considera “cruel” exigir uma cultura leitora no Brasil, dado o falho processo histórico da educação formal no país.

Entre o pedido da conta e a chegada do garçom, pensando na sua própria trajetória, o escritor termina a entrevista dizendo que seria uma pessoa menor se algum autor fosse retirado de seu convívio, no decorrer de sua formação literária. “Cada leitura nos potencializa e nos leva a mais um passo para chegarmos a um lugar de autenticidade existencial.”

Desde 1988, não existe mais censura oficial no Brasil. Mas os especialistas reconhecem crescimento nos esforços de limitar a circulação de livros nos últimos anos

*Uma versão desta matéria foi veiculada na primeira edição da Revista PublishNews (impressa), lançada em junho de 2025, com tiragem de 10 mil exemplares e distribuição gratuita, tanto física quanto digitalmente. Quer contribuir financeiramente com o canal? Clique aqui.

[14/08/2025 10:00:00]