
Um dos autores e roteiristas mais celebrados da China, Liu Zhenyun assumiu o papel de autor embaixador da Feira Internacional do Livro de Pequim com o objetivo de ajudar o evento a fortalecer suas conexões globais. Zhenyun venceu diversos prêmios, vendeu 15 milhões de cópias no mercado chinês e já foi traduzido para mais de 30 idiomas. É mais conhecido por seu premiado romance Someone to talk to (Alguém para conversar, em tradução literal) e pelo filme I am not Madame Bovary (Eu não sou Madame Bovary), dirigido por Xiaogang Feng e baseado no seu romance. Sua escrita se destaca pela sagacidade e a narrativa é descrita por diversos veículos internacionais como “magistral”.
Durante a Feira do Livro de Pequim, Zhenyun ofereceu um jantar para alguns convidados – que incluiu nomes como Jacks Thomas, diretora do BolognaBookPlus; o autor e ilustrador Neil Packer; Melissa Fleming, autora de Uma esperança mais forte que o mar (Rocco), e Doaa Al Zamel, a personagem central da obra; Mary E. Glenn, chefe de publicações da ONU; Lin Liying, presidente da CNPIEC, e o PublishNews – para falar sobre sua nova obra e a importância do seu trabalho como autor embaixador. Tendo crescido em uma pequena comunidade rural na China, Zhenyun tomou o cargo como missão e uma oportunidade de "exaltar o prazer da leitura" ao visitar essas pequenas aldeias pelo país e levar crianças e adolescentes para o evento.
Com tom descontraído e ao mesmo tempo reflexivo, Liu respondeu algumas perguntas do PublishNews sobre suas obras, sua escrita, inspirações e sua relação com o Brasil. Ele comenta ainda sobre o apelo universal de suas histórias, a intersecção entre literatura e cinema, sua relação com as redes sociais, seus leitores e tradutores ao redor do mundo.

Liu Zhenyun – Minhas obras ainda não foram traduzidas para o português, mas isso pode acontecer em breve — só está chegando um pouco mais tarde em comparação com outras línguas. Tudo tem sua ordem: algumas coisas chegam cedo, outras tarde; algumas se movem rápido, outras devagar. Para que uma obra literária chinesa seja traduzida para outro idioma, o momento precisa ser certo. Você pode encontrar um sinólogo que aprecie seu trabalho e esteja disposto a traduzi-lo; então, surge uma boa editora disposta a publicá-lo — só então as coisas podem se encaixar. Pode parecer um processo complexo, mas, na verdade, é bem simples. Neste momento, o sinólogo português Tiago Nabais está interessado no meu romance One day, three autumns (Um dia, três outonos). Já entramos em contato várias vezes. Então talvez em um futuro próximo, a obra seja publicada em Portugal e, em seguida, chegue ao Brasil. Também ouvi da minha equipe que eles estão em contato com a editora Companhia das Letras. Eles estão discutindo a possibilidade de traduzir e publicar meu trabalho também. Tudo isso é um começo promissor.
PN – Sua escrita é frequentemente descrita como uma "comédia de alto calibre". Como você vê o papel do humor em tempos tão turbulentos? Você costuma escrever sobre personagens comuns enfrentando situações absurdas. De onde vem seu impulso para explorar a vida cotidiana através de uma lente crítica e cômica?
LZ – Não me considero bem-humorado, nem me considero um escritor satírico. Já disse antes que sou a pessoa menos bem-humorada da minha aldeia. Existem muitos tipos de humor. Por exemplo, a linguagem de uma obra pode ser bem-humorada, mas a linguagem humorística tem pouco valor na literatura. Se você usar gracejos inteligentes, os leitores podem achar o autor astuto ou tentando ser esperto. O que é mais útil na literatura é o humor nos detalhes; mais útil do que isso é o humor no enredo; melhor ainda é o humor na própria história; e ainda melhor é o humor na estrutura da história ou na estrutura dos personagens. A forma mais elevada de humor é o absurdo por trás dessas estruturas. A linguagem dos meus romances é muito simples, sem frases obviamente humorísticas. O que me importa é a lógica subjacente, escondida por trás das histórias e dos relacionamentos.
Vou te dar um exemplo de I am not Madame Bovary, também conhecido como Eu não sou Pan Jinlian – a tradução literal do título do livro em chinês [Pan Jinlian é uma personagem fictícia chinesa da obra-prima chinesa do século XVI, Jin Ping Mei, traduzida em português como "A ameixa no vaso dourado" ou "O lótus dourado"].
Li Xuelian é uma mulher rural comum na China que passa 20 anos tentando corrigir uma frase: "Eu não sou Pan Jinlian" — que significa "Eu não sou uma mulher má". Mas 20 anos se passaram e ela nunca conseguiu corrigir isso. Em vez disso, sua tragédia se transformou em comédia. Quando ela perdeu a esperança na vida e decidiu deixar tudo para trás, foi a um pomar de pessegueiros para se enforcar. No momento em que se enforcava em uma árvore, alguém, de repente, a agarra pelas pernas: "Irmã, você não pode fazer isso comigo."
Li Xuelian diz: "Estou acabando com a minha vida — o que isso tem a ver com você?"
"Tem tudo a ver comigo. Sou eu quem arrenda este pomar. Se as pessoas ouvirem que alguém se enforcou aqui, quem virá colher frutas no outono?"
Li Xuelian: "Então, para onde eu devo ir para morrer?"
"Por que você quer morrer?"
"Se eu pudesse explicar, não precisaria morrer."
O fruticultor: "Se você realmente quer morrer, pode me fazer um favor antes de ir?"
"Estou prestes a morrer — como poderia ajudá-lo?"
Ele aponta para uma colina próxima: "Enforque-se ali — aquele pomar é administrado pelo Velho Cao. Ele é meu inimigo."
Ele acrescenta: "Como diz o ditado, não se enforque em apenas uma árvore — troque de árvore, não vai lhe custar muito tempo."
E Li Xuelian cai na gargalhada.
Em Remembering 1942 (De volta a 1942), na estrada fugindo da fome, o Velho Zhang está prestes a morrer de inanição. Antes de morrer, ele não culpa o mundo. Em vez disso, ele se lembra de seu bom amigo Velho Li, que morreu de fome três dias antes. O Velho Zhang diz: 'Vivi três dias a mais que o Velho Li. Valeu a pena.'
Quando as pessoas veem a verdade por trás desses relacionamentos, elas podem rir — e depois de rir, podem se sentir um pouco envergonhadas. O que quero dizer é: a tragédia tem a essência da comédia; a comédia tem a essência da tragédia. Dê um passo adiante na comédia e você terá uma tragédia. Dê um passo adiante na tragédia e você terá uma comédia.
PN – Você é ativo nas redes sociais. Acha importante que os autores usem essas plataformas para se conectar com seus públicos? Sua presença em plataformas como a Douyin demonstra uma conexão muito direta com seu público. Isso muda a maneira como você pensa sobre os temas ou o ritmo das suas histórias?

Não rejeito a comunicação com os leitores pelas redes sociais — se isso os ajudar a entender como eu sou no dia a dia. Não há nada a esconder sobre como é a vida de uma pessoa. Claro, também espero que eles se envolvam comigo por meio do meu trabalho. Porque vida e literatura são duas coisas diferentes. Eu já disse antes: onde a vida termina, a literatura começa. Onde a vida termina? No pensamento. Onde a literatura começa? No pensamento. Então, eu também disse: a base da literatura é a filosofia. As pessoas estão muito ocupadas com a vida, empurradas por ela, sem tempo para pensar. Mas a literatura nos dá espaço para pensar — por que esse personagem age dessa maneira? É preciso refletir com clareza. É por isso que lemos: porque nos livros encontramos as verdades que a vida deixa para trás.
PN – Você se descreve como roteirista, tendo alguns de seus livros sido adaptados para o cinema e a televisão. Como é o seu processo de escrita? Ao trabalhar em um romance, você já o visualiza como uma adaptação?
LZ – Adaptei apenas meus próprios romances, como Remembering 1942, I am not Madame Bovary, Someone to talk to, etc. Essas adaptações alcançaram sucesso artístico e comercial. Receberam inúmeras indicações e prêmios em festivais como o "Galo de Ouro da China" e o "Cem Flores", além do "Diretores da Guilda da China". Internacionalmente, também foram indicados ou premiados em festivais em Berlim, Roma, Toronto, Busan, Irã, Taipei e Hong Kong. Eu não sou Madame Bovary também ganhou os prêmios de Melhor Filme e Melhor Atriz no 64º Festival de Cinema de San Sebastián.

Algumas das minhas obras também foram adaptadas para peças de teatro, incluindo uma de um diretor chileno. Quando um romance é adaptado para outra forma de arte, a imaginação única dessa forma abre caminhos que o romance nunca alcançou. Isso ajuda a ampliar meu pensamento quando escrevo novos romances.
Roteiro é um ofício especializado. Bons escritores não são necessariamente bons roteiristas. Passei a entender isso profundamente. Roteiros e romances têm estruturas completamente diferentes — um roteiro precisa contar uma história completa em um número limitado de palavras, com enredo dramático, conflitos de relacionamento e reviravoltas. Admiro roteiristas profissionais. Em comparação, romancistas são mais livres. Ao escrever um romance, posso continuar sem restrições. Dito isso, a precisão dos diálogos cinematográficos me tornou mais conciso nos diálogos do meu próximo romance — sem palavras desperdiçadas.
PN – As plataformas de streaming agora têm um impacto direto nas vendas de livros — algo que também estamos vendo no Ocidente. Como você vê essa crescente interdependência entre narrativas literárias e audiovisuais?
LZ – Não realizei um estudo formal sobre as tendências gerais de leitura na China, mas as editoras dos meus livros me enviam relatórios trimestrais de tiragem, e meus livros têm vendido muito bem, com números ainda em ascensão. Minhas obras venderam mais de 15 milhões de cópias na China. Com base nisso, eu diria que os hábitos de leitura dos chineses ainda são fortes.
Quanto à relação entre livros e celulares, internet e streaming de mídia, não acho que sejam conflitantes. Na China, plataformas como Douyin e Xiaohongshu são muito populares. Meus vídeos no Douyin foram visualizados mais de 100 milhões de vezes, como disse antes. Muitos leitores descobrem meus livros por meio de vídeos curtos e depois os compram para ler. Portanto, não vejo livros e plataformas de vídeos curtos como mutuamente exclusivos – eles podem, na verdade, se complementar.
Quase todas as minhas obras literárias foram adaptadas para filmes, novelas ou peças teatrais. Quando lanço um novo livro, as pessoas costumam me procurar para garantir os direitos de adaptação com antecedência. Adaptações cinematográficas e literárias influenciam e reforçam uma à outra. Um filme dura cerca de duas horas, enquanto a leitura de um livro leva significativamente mais tempo. Uma exibição cinematográfica pode atingir centenas de espectadores simultaneamente, enquanto um livro é lido por uma pessoa de cada vez. Isso significa que as adaptações cinematográficas ajudam a promover livros mais rapidamente. Além disso, adaptações para outros formatos, como o teatro, incentivaram muitos espectadores a retornarem aos meus romances.
PN – Com seus livros traduzidos para mais de 30 idiomas, você sente que algo essencial da sua escrita se perde na tradução? Como você lida com esse processo?
LZ – Com meus livros traduzidos para tantos idiomas, me tornei amigo de muitos sinólogos que trabalham nessas línguas. Durante o processo de tradução, eles frequentemente me enviam e-mails com perguntas. Estou sempre feliz em conversar com eles — algumas perguntas são sobre a obra como um todo, outras sobre detalhes específicos. Sejam gerais ou detalhadas, essas perguntas refletem a formação cultural do tradutor. O mesmo detalhe no mesmo livro pode ser interpretado de forma diferente dependendo da cultura do tradutor. Discutir essas diferenças é valioso para mim — me dá insights para escrever meu próximo trabalho. Acolho as diferenças, porque elas levam à inspiração. A mesmice não oferece muito valor.
PN – O que um leitor brasileiro — que talvez ainda não conheça seu trabalho — pode esperar de suas histórias? Por onde você sugere que eles comecem?
LZ – Leitores de diferentes culturas frequentemente compartilham a mesma resposta: acham minha escrita engraçada. Mas, na verdade, não sou eu quem é engraçado – é o próprio mundo. Coisas que acontecem em todos os cantos do mundo, a todo momento, são cheias de humor. Acontece que, quando você examina esse humor mais de perto, ele frequentemente se transforma em uma espécie de tristeza. Eu já disse antes: a essência da comédia é a tragédia, e a essência da tragédia é a comédia. Um passo além da comédia se torna tragédia; e um passo além da tragédia se transforma em comédia. Para os leitores brasileiros que estão se perguntando por onde começar com o meu trabalho, a questão realmente depende de qual livro for traduzido para o português primeiro. Acredito que Remembering 1942; Someone to talk to; I am not Madame Bovary; One day, three autumns e o novo romance em que estou trabalhando atualmente, Piadas Salgadas — se forem traduzidos gradualmente — darão aos leitores brasileiros uma compreensão mais completa da minha escrita. Estou ansioso para conhecer leitores do Brasil.
PN – O quanto você sabe ou já ouviu falar sobre o Brasil e a literatura brasileira?
LZ – Muitas obras de escritores brasileiros já foram traduzidas para o chinês — como as de Machado de Assis, Paulo Coelho, Jorge Amado, Clarice Lispector e João Guimarães Rosa. Gosto muito de todas as suas obras. Li Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, e Dona Flor e Seus Dois Maridos, de Jorge Amado, várias vezes. Esses livros são repletos de sabedoria, humor e um senso de absurdo. Todos sabem que o Brasil é famoso pelo futebol, mas, na verdade, sua literatura também é verdadeiramente notável.
PN – Como foi sua experiência como “embaixador da leitura” na Feira Internacional do Livro de Pequim?

Em agosto de 2018, quando a Feira Internacional do Livro de Pequim abriu, combinei com eles de levar as crianças da Vila Chuxi a Pequim para que pudessem participar do evento. Foi a primeira vez que elas viajaram de avião. Levei-as para conhecer a feira e também para a Praça da Paz Celestial, a Cidade Proibida, o Templo do Céu, o Palácio de Verão e até mesmo para a Universidade de Pequim. Na Universidade de Pequim, dei para eles outra aula de chinês. Ir a Pequim, especialmente à Universidade, fez uma grande diferença para elas. Várias crianças disseram com firmeza que queriam estudar lá no futuro. Isso não foi apenas um sonho — foi uma resolução. Até hoje, essas crianças estão no ensino fundamental e ainda me escrevem regularmente, contando sobre seus estudos e suas vidas. O que recebo não são apenas cartas — é calor e alimento para a vida.
É claro que mais trabalho precisa ser feito pela China rural. Uma tarefa fundamental é construir uma conexão entre as aldeias e o mundo. Esta também é uma missão importante da Feira Internacional do Livro de Pequim. Embora minhas forças sejam limitadas, continuarei fazendo o que puder.
*A jornalista viajou a convite da Corporação Nacional de Importação e Exportação de Publicações da China (CNPIEC).