Novembro foi um mês movimentado para o mercado editorial brasileiro. Tivemos a Conferência Internacional de Acessibilidade, organizada pela Fundação Dorina Nowill para Cegos, Prêmio São Paulo de Literatura, Prêmio Jabuti e a volta da Pesquisa Retratos da Leitura. Tanta discussão sobre livro e leitura e tanta celebração são dignos de nota, mas não necessariamente uma nota positiva.
Após cinco anos, tivemos no final de 2024 uma nova edição da Pesquisa Retratos da Leitura. Excelente notícia para os entusiastas do livro que a pesquisa apresente novos dados, mas o seu resultado é o completo oposto: tivemos nos últimos quatro anos uma redução de mais de 6 milhões de leitores no país, e pela primeira vez o número de não-leitores é maior do que o de leitores no Brasil.
Desde sua última edição, em 2019, discutiu-se muito sobre democracia. Nestes últimos anos tivemos eleições turbulentas, crises políticas, tentativas de golpes, censura a livros premiados e, até pouco tempo, redução nos investimentos em cultura e educação. Então é claro que não surpreende a nós, amantes de livros e da leitura e escrita, que a consequência de tudo isso seja um país menos leitor, mas hoje somos minoria. Pela primeira vez, somos minoria. Já fomos minoria em muitos aspectos, com certeza, mas não enquanto leitores – pelo menos não segundo a pesquisa.
Na semana anterior ao resultado da pesquisa, aconteceu a Conferência Internacional de Acessibilidade e preciso pontuar como tudo o que foi apresentado e discutido na conferência está diretamente ligado ao resultado atual da Pesquisa Retratos da Leitura. Não existe e nunca existirá um país leitor se não trabalharmos extensivamente para tornar o livro um produto acessível. E acessibilidade não deve ser entendida apenas do ponto de vista físico, mas sim como acesso a informação. Só assim teremos cidadãos capazes de tomar decisões conscientes.
A conferência contou com representantes do Brasil, Argentina, Colômbia, México, Uruguai, Itália, além de representantes de organizações internacionais importantes como a Fundação das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) e Organização Mundial da Propriedade Intelectual (WIPO), além da própria Fundação Dorina e do Fundo Nacional de Desenvolvimento e Educação (FNDE). Acho muito importante mencionar que além de escutarmos e aprendermos com as experiências internacionais, aprendemos também com pessoas cegas, como Pablo Lecuona, argentino fundador da TifloNexos e pioneiro da produção de livros acessíveis em espanhol na América Latina; Andréia Queiroz, consultora em acessibilidade digital; e Regina Oliveira, coordenadora de revisão da Fundação Dorina.
Descrição da imagem: A imagem mostra um grupo de 11 pessoas em um ambiente interno, posando para uma foto em frente a uma tela de apresentação. Todas estão sorrindo e seguram sacolas pretas como brindes. À direita, há um banner da Fundação Dorina Nowill para Cegos, com um desenho de um rosto amarelo sorridente usando óculos escuros e as palavras "Bem-vindo! Welcome. Bienvenido." O ambiente parece ser uma sala de conferências, com um projetor no teto e carpete com padrões geométricos no chão. O grupo inclui pessoas com diferentes estilos e idades, e pelo menos duas seguram bengalas para deficientes visuais. A foto transmite um tom de celebração e inclusão.
Acessibilidade pode ser definida como a possibilidade e condição de alcance, percepção e entendimento para a utilização, em igualdade de oportunidades, com segurança e autonomia, do meio físico, do transporte, da informação e da comunicação, inclusive dos sistemas e tecnologias de informação e comunicação, bem como de outros serviços e instalações. (Fonte: Conselho Nacional do Ministério Público).
Como, então, tornamos o livro acessível? Como garantimos o acesso de todos ao livro?
Com bibliotecas públicas – esta seria minha primeira resposta, e eu acredito que a de muitos também. Também temos que pensar em políticas públicas, como a PNLE, PNAB, o próprio PNLD etc. A biblioteca pública, seja ela no âmbito escolar ou fora dela, a nível municipal ou estadual, garante o acesso gratuito ao livro, tirando, em certa medida, a barreira econômica que se coloca entre muitas pessoas e o livro.
Mas a existência de uma biblioteca pública não garante que todos terão condição de se locomover até lá, seja por questões físicas ou financeiras. Também não garante acervo satisfatório (seja por não ter condições de adquirir todos os livros demandados, ou por cópias insuficientes, por exemplo). E, principalmente, não garante que haverá livros em braille ou formato digital acessível para pessoas cegas, com baixa visão ou mobilidade reduzida. Não garante, sequer, que o prédio será acessível, que terá entrada para cadeirantes, elevadores ou rampas, piso tátil, dentre outras ferramentas que tornem o acesso até o livro de fato acessível. A existência de bibliotecas públicas, por si só, não quer dizer nada se não existirem políticas públicas que a suportem para além de sua presença física. Para além das políticas públicas – que já existem! – pouco vai mudar se nós, como profissionais neste mercado, não participarmos ativamente das políticas e das mudanças.
Só para enriquecer a discussão com dados, vale mencionar que, apesar de ser o quinto maior país do mundo em extensão territorial e o sétimo em população, 30% da população brasileira está concentrada em 48 cidades com mais de 500 mil habitantes, onde há mais bibliotecas e livrarias do que nas demais cidades. Ou seja, o acesso aos livros no restante do país ainda é um desafio. Atualmente, são 4.639 bibliotecas públicas para 5.570 municípios segundo dados do Sistema Nacional de Bibliotecas Públicas (SNBP), o que mostra que muitas cidades ainda não têm esse recurso cultural.
Como, então, participamos das mudanças? Como podemos ser agentes proativos para tornar o livro acessível?
Não sugiro, de forma alguma, entrarmos na discussão de preço do livro. Se para uma parte dos leitores brasileiros o livro é caro, ele se torna inacessível, independente se o preço do livro está justificado ou não. As bibliotecas existem como forma de contornar isso, mas vai muito além. Ainda assim, é preciso considerar que, segundo os dados da Pesquisa Retratos da Leitura, apenas 14% dos entrevistados leem livros em bibliotecas em geral.
Segundo o IBGE existem 6,5 milhões de pessoas com alguma deficiência visual no Brasil. Nas cidade onde há livrarias, estas não têm à disposição livros em braille em geral, e nem todas as bibliotecas dispõem de um acervo acessível – as que dispõem, têm um catálogo limitado por conta da dificuldade de produção. Mesmo com o Tratado de Marrakesh e o trabalho de organizações sem fins lucrativos como o da Fundação Dorina, não garantimos o mesmo acesso para todos. Há mais barreiras para uns do que para outros.
Cabe a nós pensar o livro como produto acessível desde a sua concepção. Do autor à gráfica, do editor à livraria. Do contrato de direito autoral até os seus formatos finais. Já temos um enorme catálogo publicado para cuidar, repensar e transformar, então é crucial que comecemos a agir agora; que os artistas já criem suas histórias, suas ilustrações, capas, gráficos e tabelas com descrições de imagem; que a editora exija isso em contrato; que, neste contrato, haja previsão para venda e disponibilização em bibliotecas, incluindo as digitais; que, obviamente, esteja previsto o formato digital, incluindo o audiolivro; que o formato digital já seja considerado no momento da diagramação do livro impresso; que todos os formatos sejam publicados simultaneamente, garantindo assim a equidade na experiência do leitor. Esse movimento precisa ser um pacto coletivo, como bem disse Karine Pansa, nossa presidente na IPA.
Na Conferência Internacional de Acessibilidade, Nadja Cezar, secretária-executiva do Plano Nacional do Livro e Leitura, colocou em palavras o que quero dizer: "a gente tem uma tendência de digitalizar o que é analógico, e ainda em 2024 não nos propomos a pensar diferente para algo que deve e pode nascer digital". Ainda que ela estivesse falando sobre o processo do PNLD digital, essa fala diz muito sobre o nosso mercado.
Ainda escuto discussões sobre um formato ser mais importante que o outro, sobre possível substituição, sobre pirataria, sobre “não ser a mesma coisa”... Vamos todos aceitar que não é para ser a mesma coisa. Não é sobre isso, e sim sobre democratizar os meios de leitura, sobre dar acesso ao livro na forma que for viável e mais conveniente para o leitor que pretendemos alcançar. Livrarias e livreiros têm um papel importante, mas fora de grandes capitais a realidade é bem diferente. Nem toda cidade tem livraria, e muitas contam com lojas pequenas sem bibliodiversidade.
O Brasil tem dimensões continentais, o frete para Roraima não é o mesmo que para São Paulo. Não temos, nem de longe, a quantidade de bibliotecas públicas que gostaríamos de ter. Hoje o tempo gasto no celular e nas telas em geral é maior do que fora delas. Não vamos mudar o mundo impondo nossas regras, mas podemos entender e nos adaptar. Sempre soo brega quando falo sobre isso, mas não adianta pensarmos em grandes projetos se não estamos sequer fazendo o básico, que é um livro acessível.
E, me atrevendo a mexer num vespeiro, sugiro que se você for dar grandes descontos na venda do seu livro ou até deixar o livro gratuito por um período, como ocorre com o formato digital, que o faça para bibliotecas, para programas de incentivo à leitura, e não somente para grandes varejistas que seguem sendo uma barreira ao livro. A formação de novos leitores e a manutenção dos leitores já existentes é importante para o nosso mercado, claro, mas é muito, muito mais importante para nossa democracia.
Se você chegou até aqui e quiser se debruçar um pouco mais sobre o assunto, ou conhecer projetos e iniciativas de acessibilidade, deixo alguns recursos abaixo:
- O que é o Tratado de Marrakesh
- Consórcio de Livros Acessíveis (ABC Consortium): notícias globais, cursos e treinamentos, e uma biblioteca digital acessível, a Global Book Service (diretamente ligada ao Tratado de Marraqueche)
- É possível fazer quadrinhos acessíveis (links em inglês): duas análises técnicas (1 e 2), um exemplo real da Invisible Publishing e uma lista extensa de matérias, exemplos e pesquisas sobre quadrinhos acessíveis
- Editora Mostarda, que além de contar com livros em braille coloridos, que servem para crianças cegas ou videntes, também conta com um projeto de distribuição de livros de forma gratuita para iniciativas que geram impacto social.
- Pingue Pongue Educação, que tem feito publicações inclusivas e com recursos especiais de acessibilidade
- BibliOn: biblioteca digital gratuita do estado de São Paulo (aberta para todo o país)
- BiblioSP: biblioteca digital gratuita do município de São Paulo (restrita ao município)
*Isadora Cal é formada em Letras pela Universidade Federal da Bahia, com um mestrado em Publishing pela Oxford Brookes University e um MBA em Business Intelligence e Analytics pela FIAP. Hoje atua como Head de Novos Canais na Bookwire Brasil, onde trabalha há quase 10 anos. Antes disso, trabalhou na Editora da UFBA e também passou pela na área de marketing digital enquanto fazia seu mestrado no Reino Unido. Militante pela acessibilidade, pelas bibliotecas públicas e pelo direito à leitura.