Um terço humana, um terço mulher, um terço editora!
PublishNews, Mariana Bastos*, 06/11/2023
Durante a Primavera dos Livros, a mesa 'Mulheres de todos os tempos' debateu novas edições feitas por mulheres de autoras como: Alice Sheldon, Ruth Guimarães e Teresa de La Parra

Mariana, Carla, Lizandra e Raquel
Mariana, Carla, Lizandra e Raquel

“Sou metade mulher, metade humana”. A frase de Alice Sheldon, repetida por Raquel Menezes (Oficina da Raquel) durante a mesa “Mulheres de todos os tempos” abriu a conversa na Primavera dos Livros, no final de outubro, no Rio, sobre as “dores e delícias” de ser mulher no mercado editorial e poder editar livros feitos por outras mulheres.

A questão sobre ser mulher no mercado editorial me persegue desde os primeiros convites para qualquer conversa sobre a minha profissão. Algumas vezes me questionei: se a conversa é sobre a minha profissão, porque estamos falando do meu gênero biológico e identidade? Essa pergunta também é feita para profissionais homens? Dialogar a literatura feminina (e dar nome à ela) de forma separada contribui ou não para manter a divisão e consequente subalternidade da literatura e dos livros (escritos e publicados) por mulheres?

Junto com colegas de profissão, Raquel Menezes (Oficina Raquel), Lizandra Magon (Jandaíra) e Carla Cardoso (Imã Editorial), falamos abertamente nos jardins do Museu da República sobre essas questões, sobre literatura, editar, traduzir, comunicar livros, sobretudo de mulheres.

Em abril deste ano, assumi o marketing da Primavera Editorial, que tem o seu trabalho focado na literatura feita por mulheres em um dos seus selos. Uma das obras publicadas recentemente foi Marinheira no mundo, de Ruth Guimarães, que, junto com as obras de Alice Sheldon e Teresa de La Parra, publicadas pela Imã Editorial e Oficina Raquel, foram o fio condutor do nosso bate-papo.

Marinheira no mundo traz crônicas de Ruth Guimarães, uma escritora – negra, pobre, caipira (como ela mesmo se apresenta) – que deixou uma obra riquíssima para a literatura brasileira e que não alcança o destaque merecido como autores homens por sair do círculo intelectual a qual pertencia para assumir a função de mãe de nove filhos e ser professora.

Já Mulheres que os homens não vêem traz a escrita de Alice Sheldon – que por uma década publicou sob o pseudônimo masculino James Tiptree Jr. – e Memórias de Mama Blanca parte da coleção Mulheres de todos os tempos que traz (de forma inédita para o Brasil) o livro da venezuelana Teresa de La Parra, uma feminista moderada (como se apresenta). A narrativa de La Parra debate raça, gênero e religião na década de 20.

Falamos de mulheres “do passado”, porém, a história delas não está tão distante assim de nossos tempos. É justamente aí que a questão se modifica: quantas autoras negras estão deixando de serem projetadas enquanto escritoras para assumir outras funções sociais como mulher – como Ruth fez? Quantas mulheres escrevem ficção científica? Quantas latinas-americanas ainda precisamos conhecer?

É nesta hora que reconheço o privilégio de trabalhar como livreira (meu título favorito, depois de mãe) e as questões que me atingiam lá no início da carreira se modificam, ampliam, ganham novas respostas. Continuarei aceitando todos os convites para falar de literatura, sobre livros e sobre ser mulher, não por obrigação, mas por ser algo intrinsecamente conectado.

Carla Cardoso encerrou a mesa adaptando a frase da sua autora Alice Sheldon – parte da coleção Meias Azuis (antiga expressão pejorativa para desdenhar de mulheres escritoras, que ousassem expressar suas ideias e contar suas histórias em um ambiente dominado pelos homens). A frase ficou: “somos um terço humana, um terço mulher, um terço editora”, e soou como um fechamento sobre as questões que me acompanham desde os 17 anos de idade neste mercado.

Se preciso falar sobre ser uma profissional do livro, preciso também assumir que isso envolve ser a mulher que sou – humana, mulher e profissional do livro. É urgente, desafiador e necessário, mas ser mulher é isso. E se fazer livros, além do nosso ofício e sustento, é privilégio e paixão, ser mulher também é.

Viva Ruth, Alice, Teresa e todas as mulheres que fazem livros!

Mulheres de todos os tempos – livros que conduziram o bate-papo:

'Memórias de Mama Blanca' (Oficina Raquel): Memórias de Mama Blanca, publicado em 1929, seria o segundo e último romance de Teresa de la Parra, no qual ela refletia seu caráter distintamente venezuelano e, como em Ifigenia (Diário de uma jovem que escrevia porque se irritava), o conteúdo autobiográfico incorporado na trama ficcional é evidente. Memórias de Mama Blanca se baseia em aspectos biográficos de sua infância e nela descreve a fazenda da família "El Tazón", localizada entre os rios Turmerito e Piedra Azul (nome que a fazenda leva no romance).

'Mulheres que os homens não vêem' (Imã Editorial): Em três novelas reverenciadas pelos fãs da ficção científica, Alice Bradley Sheldon ― a escritora por trás do renomado e misterioso “James Tiptree Jr.” ― inova com abordagem feminista no gênero, em tramas ousadas e instigantes. Neste livro, uma garota transforma-se num anúncio publicitário vivo; mulheres preferem invasores alienígenas a continuar no mundo dos homens e uma epidemia religiosa provoca femicídios em massa.

'Marinheira no mundo' (Primavera Editorial): A pluralidade da produção de Ruth Guimarães faz da sua obra um grande território com campos a serem explorados – muitos deles inéditos. A trajetória de “Ruth cronista” é uma delas. Convidada por Emir Macedo Nogueira, então editor-chefe da Folha de S. Paulo, Ruth escreveu, alternando entre nomes como Cecília Meireles e Carlos Heitor Cony, crônicas semanais para o jornal. Entretanto, segundo Joaquim Botelho, jornalista e filho da escritora, o ofício de cronista é anterior: “Em 1948 já eram registradas crônicas de Ruth Guimarães nos jornais da cidade de Cachoeira Paulista”, afirma. Lançado em outubro, a obra "Marinheira no Mundo" traz 103 textos que resgatam tipos populares, usos e costumes, flagrantes do cotidiano de recortes plurais do Brasil. Algumas das crônicas são tecidas em uma trama poética, como a que dá o título à obra.


* Mariana Bastos: Jornalista-livreira com mais de 15 anos de experiência no mercado editorial, passando por departamentos editoriais, comerciais e de marketing de editoras como Canção Nova, Santuário e Ideias e Letras. Em 2018, fundou a Livraria do Vale, livraria independente no Vale do Paraíba. Atualmente, é Head de Marketing da Primavera Editorial.

[06/11/2023 08:00:00]