Três Perguntas do PN Para Silviano Santiago
PublishNews, Guilherme Sobota, 03/01/2023
Vencedor do Prêmio Camões em 2022, crítico e escritor fala em uma nova 'aurora' para o Brasil

O ano de 2022 marcou a carreira de Silviano Santiago – crítico, escritor, professor – como o ano em que ele recebeu o Prêmio Camões, considerado o mais importante da língua portuguesa no mundo. Passados alguns meses, agora Silviano reflete sobre as engrenagens que o levaram a tal reconhecimento. "Receber o aplauso coletivo, implícito em premiação, significa também que uma etapa da vida produtiva foi cumprida e que mais tortuosa e difícil se torna a etapa seguinte", diz ao PublishNews neste início de 2023.

O ano foi igualmente um período de mudança de rumo nos horizontes do Brasil. "Aos 86 anos, eu retomo uma célebre imagem de Machado de Assis para recebê-lo", explica o autor de Literatura nos trópicos. "Quero atar as duas pontas da vida, a da juventude e a da velhice. Ato o janeiro atual com a figura redentora da 'aurora', que foi anunciada, escrita e reescrita pelos poemas mais esperançosos da década de 1940".

Sobre o ofício crítico, ele explica que a crítica literária "espera ansiosamente os melhores livros a serem produzidos em 2023". Leia mais na entrevista a seguir:

PublishNews – O que significa para você receber o Prêmio Camões? Você se acostumou aos prêmios ao longo da sua trajetória, mas esse tem algum sabor diferente?

Silviano Santiago – Prêmios artísticos e literários traduzem o reconhecimento de um trabalho ou de um conjunto de trabalhos por um júri de especialistas. Acresce que muitos dos prêmios ganham tradição própria. Isso significa que o trabalho destacado é nela inserido por terceiros, sem que isso signifique que esteja a receber o bastão numa corrida de revezamento das sucessivas gerações. Em cada prêmio, a tradição é mais uma criação dos júris sucessivos e menos o efeito de certa continuidade crítica nas escolhas. Trabalhos avulsos e conjuntos de obra existem numa literatura – a nacional, brasileira, e a lusófona, no caso do prêmio Camões − que ganha peso sob o signo da novidade iluminista e se robustece, ao final do século 19 e no século 20, com o espírito de vanguarda, nem sempre do agrado imediato do grande público. Agrada-me saber que fui reconhecido nesses contextos diversos, onde predomina menos a tradição e mais a singularidade – ou a ousadia, se me permitem − criativa do escritor. Receber o aplauso coletivo, implícito em premiação, significa também que uma etapa da vida produtiva foi cumprida e que mais tortuosa e difícil se torna a etapa seguinte. O risco maior da premiação é o iminente silêncio, ou a mortalidade precoce do autor, e não a sua imortalidade.

PN – O que o Silviano Santiago crítico literário espera para 2023? Que tipo de livros você gostaria de ler de autores brasileiros contemporâneos?

SS – A crítica literária nunca espera livros futuros. Ela vem sempre a reboque da produção que lhe é oferecida pelas editoras hegemônicas ou nanicas. É uma atividade poderosa e de pouco valor, já que o seu objeto de análise chega circunscrito pelo que o crítico pode ter sob os olhos. A crítica literária não inventa livros alheios. Ela espera ansiosamente os melhores livros a serem produzidos em 2023. A não ser Agripino Grieco, uma figura quase caricata no setor, o crítico digno do nome tem menos prazer em falar mal e mais em falar bem. Pode falar mal de livro que, do seu ponto de vista crítico, desmerece o contexto cultural e artístico em que o autor deseja inseri-lo. A maior alegria do crítico é a de poder distinguir criteriosamente, num monte de obras organizadas pelo acaso das agendas das editoras, aquela ou aquelas que sobressaem pela alta qualidade no tratamento da língua e da retórica, pela temeridade da composição, pela criação de personagens substantivos etc. Permitam-me uma comparação final, a melhor crítica literária tem valor de acento diacrítico – destaca ou modula apropriadamente a leitura que deveria ser feita do livro em pauta. Em suma, espero poder aplicar o acento diacrítico a um número crescente de boas obras literárias.

PN – Falando de uma perspectiva mais geral, o que você projeta para o Brasil (do ponto de vista cultural e político) para os próximos anos?

SS – No Brasil, o novo governo é sempre proclamado no primeiro dia do ano. Trata-se de uma coincidência politicamente matreira. Todo novo governo chega aclamado pelos bons sentimentos natalinos que as cidadãs e os cidadãos transferem para o deus Jano, Janeiro. O das duas faces. Ele não vê o presente e avalia, ao mesmo tempo, o passado e o futuro. Na última proclamação em data, Jano foi traiçoeiro e enganou a maioria. O passado era mais esperançoso que o futuro. Ele está agora a avaliar 2023. Aos 86 anos, eu retomo uma célebre imagem de Machado de Assis para recebê-lo. Quero atar as duas pontas da vida, a da juventude e a da velhice. Ato o janeiro atual com a figura redentora da “aurora”, que foi anunciada, escrita e reescrita pelos poemas mais esperançosos da década de 1940. Copio os versos finais do poema A noite dissolve os homens, de Carlos Drummond, e os reescrevo meus: “Havemos de amanhecer. O mundo / se tinge com as tintas da antemanhã / e o sangue que escorre é doce, de tão necessário / para colorir tuas pálidas faces, aurora”.

[03/01/2023 11:40:00]