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Sob a 'Tenda dos Milagres' de Jorge Amado
PublishNews, Suzana Vargas, 30/03/2022
Em sua coluna, Suzana Vargas fala sobre seu encontro com Jorge Amado e sua participação no projeto Rodas de Leitura

Sempre me pergunto por que Jorge Amado anda tão esquecido se chegou, em seu tempo, a ser um dos mais populares autores do Brasil, o mais traduzido, filmado, adaptado. Se teve incrível reconhecimento internacional, se em tudo o que fez havia uma coerência só: pensar o Brasil e os brasileiros através de personagens emblemáticos e situações que traduziam com graça, irreverência e sensualidade o espírito de uma época e de uma raça. Me assombra que mesmo numa pesquisa rápida à internet, não tenhamos mais tantas referências críticas e sólidas à sua obra.

Se houve, ao longo da história do projeto Rodas de Leitura (que criei e coordenei no Centro Cultural do Banco do Brasil), uma Roda que me deixou extremamente insegura, foi aquela à qual levei Jorge Amado. Ficara insegura pela raridade do encontro ao vivo com um dos nossos mais importantes escritores e, claro, pelos preparativos, as tratativas que antecederam o evento (a imprensa havia noticiado largamente) e, finalmente, pela responsabilidade que tudo aquilo acarretava para mim. Ainda por cima, ele demorara a escolher qual livro e trecho leria (a escolha de ambos ficava sob a responsabilidade do autor convidado). Somente soube desses detalhes importantíssimos, cinco dias antes do evento e eles me foram entregues pessoalmente por Jorge, num encontro em Copacabana. Estava acompanhado por sua mulher, a escritora Zélia Gattai e queria me conhecer.

Naquela tarde, quando saí para encontrar o casal, levei meu exemplar de Tenda dos Milagres. Queria obter ao menos um autógrafo longe da multidão que o cercaria no dia da Roda, um setembro iluminado de 1995.

E agora estava eu, ali, no maior auditório do CCBB, lotado, como lotados estavam os outros auditórios e o saguão do local, todos equipados com telões e sistema de som adequado. Filas e mais filas para entrega de senhas, seguranças por todo canto. Meu nervosismo se devia também ao fato de não ter podido reler devidamente esse que era um de seus livros mais emblemáticos. Um livro sobre o qual se escreveram teses acadêmicas diversas no Brasil e no exterior e era apontado como história ficcional da formação cultural brasileira, sob vários aspectos. Pensei que ele escolheria os títulos mais populares, os adaptados para tevê, teatro e cinema como Dona Flor e seus dois maridos, Tieta do Agreste, Gabriela e tais. Tampouco Tenda dos Milagres, o livro selecionado por ele, era o que eu mais gostava.

Se eu tivesse de escolher, talvez preferisse A morte e a morte de Quincas Berro D’Água, essa novela de construção fenomenal, já fantástica, para a qual, quem sabe, estivesse mais preparada. A Tenda, livro riquíssimo, por vezes tinha um ar de tratado sociológico (pelo menos no seu começo) que me incomodara um pouco na primeira leitura, quando ainda nem sonhava estar ao lado de seu autor num evento literário como aquele.

Voltando à Roda de Leitura, Jorge chegou pontualmente ao compromisso e depois de ser recebido pela direção do CCBB, se encaminhou para o auditório, sentou-se, tendo Zélia a seu lado na enorme mesa de onde falaria ao público. Havia nele aquela naturalidade, o ar descansado de quem encontra você diariamente, mas aquele não era definitivamente o caso, pelo menos para mim. Olhei a imensa plateia alvoroçada que foi se aquietando, enquanto eu balbuciava as primeiras palavras (pífias) de apresentação de um autor cuja admiração me fazia calar. Aquele era o terceiro ano do projeto que começara em 1993, só terminaria em 2005 e se espalharia pelo país. A presença de Jorge vinha coroar nosso trabalho que já tinha três anos.

Alguns meses antes, por ocasião de meu convite feito por fax (lembram do fax, amigos?), Jorge se encontrava em Paris onde costumava permanecer por temporadas e aceitou rapidamente meu convite, para surpresa da organização. Sua leitura ficara marcada para setembro, época em que já estaria de volta a Salvador.

Quando finalmente nos avistamos, alguns dias antes da Roda, pude observá-lo melhor que na TV ou nas fotos de jornais. Tinha o ar bonachão de sempre, os mesmos cabelos brancos, cacheados e revoltos, os bigodes fartos, mais baixo do que eu imaginara, a barriga proeminente e a voz anasalada. No breve encontro, ele me indicou as cinco páginas da Tenda que gostaria de ler e tratou de esclarecer algumas coisas do projeto, entre elas, a leitura feita em voz alta, ritual que precederia sua conversa com o público. “Sabe o que é, Suzana, eu estou mais acostumado a dar entrevistas ou a falar sobre meus livros. Nunca li eu mesmo meus romances”. Expliquei-lhe ser aquele um projeto de leitura e não uma entrevista, cujo propósito era desenvolver o gosto pelos livros e divulgar seus autores. “Quem ainda não leu, faz contato direto com o texto e com o autor. E a graça está nisso, além do que todos terão seu texto em mãos”, resumi assim, quase grosseiramente, o espírito do encontro e ele entendeu.

Pedi-lhe que autografasse meu exemplar e não me contive: perguntei-lhe as razões da escolha do livro e do trecho. "Releia e verá, não vou adiantar nada", falou em tom de brincadeira. Voltei para casa e não fiz outra coisa nos poucos dias subsequentes, senão tentar vencer novamente as mais de 300 páginas do volume. Consegui, claro, mas não como desejaria.

De modo que agora, lá estava eu, ao lado de Jorge, sem ter feito direito o meu dever de casa. Ele sentou-se e na hora da leitura pediu desculpas à plateia pela falta do hábito de ler seu próprio texto em voz alta. “Sou cegueta”, repetiu. E leu com gosto, pausadamente, as cinco páginas, não no livro, mas nas cópias que haviam sido distribuídas à plateia, parando algumas vezes para checar o texto digitado com o original. Encontrou alguns erros de revisão, mas isso, aparentemente, não o incomodou. Na sequência, colocou-se à disposição do público.

No momento em que as perguntas começaram a chegar foi que me dei conta com clareza, acerca das razões da escolha da Tenda e daquele trecho. Nas suas respostas sempre referidas ao que havia lido, Jorge praticamente presenteava a plateia com uma verdadeira aula de criação literária, juntamente com as linhas mestras de toda sua vasta obra. Ele destacara para leitura um diálogo entre o personagem principal de Tenda dos Milagres, Pedro Archanjo (um misto de intelectual e Pai de Santo) com Fraga Neto, professor universitário, no bar Pérez que, segundo o narrador, ficava na esquina do Terreiro, ao lado da Catedral e em frente à Faculdade de Medicina (o texto vai em anexo a esta memória).

As respostas de Jorge Amado às perguntas do público davam conta de sua visão de mundo em várias latitudes. O diálogo referido aparentemente tratava do desafio que o candomblé propunha a todo aquele que optasse pelos caminhos da racionalidade. Desafiava qualquer visão dogmática que se pudesse ter acerca da religião (ou religiosidade) e da história racial brasileira, das suas contradições, promovendo o negro a sujeito histórico, protagonizando, pela primeira vez, as cenas literárias. Inventado e invenção em modo ágil, inclusivo. Tudo isso eu já sabia ou havia lido, mas soava diferente ali, pela voz do autor.

“Somos todos mestiços”, Jorge afirmou a certa altura. Era sua tese em qualquer romance que lêssemos. “Sou materialista, mas o meu materialismo não me limita”, falou, quando questionado em relação à passagem lida repetindo uma verdade que ecoava por toda sua obra. Verdade que poderia estar numa simples conversa regada a cerveja e a cachaça. Como no que acabáramos de ler, entre o intelectual da Academia e Pedro Archanjo (pardo, paisano, pobre e instruído que acredita na ciência e - ao mesmo tempo - frequenta o terreiro de candomblé).

No todo ou apenas naquele trecho lido, saímos como de uma aula de história, de sociologia, de filosofia, de um percurso existencial, enfim. Por trás de Pedro Archanjo suspeitei o alter ego de Jorge Amado. E quem ele terá sido? Um menino criado em fazenda, filho de coronel, formado em direito e comunista (ou anarquista?), deputado federal, autor da primeira lei de liberdade religiosa, afirmando nossa laicidade. Por trás dessa poderosa formação intelectual, ele tinha o Posto de Honra a Obá de Xangô no terreiro de Ilê Axé Opô Afonjá. Contava entre seus amigos, de Jean-Paul Sartre à Mãe Menininha de Gantois e Stella de Oxóssi ( que tive a alegria de conhecer bem mais tarde). Uma biografia a justificar uma obra ou o contrário. Daí que não tinha pressa e me pedisse para reler e aguardar o dia da apresentação.

Somente esse olhar múltiplo e enviesado conseguiria produzir uma obra tão rica de nuances, fervorosa e sem paralelos no Brasil de ontem e de hoje, em quantidade e qualidade. Com esse olhar venho relendo seu incansável trabalho de criar um Brasil de exportação para alguns, mas de valorização de nosso povo. Mergulhou fundo em suas questões existenciais, do mais genuíno erotismo e da culinária às paisagens mais idílicas e difíceis, nas suas conquistas mais complexas e tardias.

Relendo ou tentando ler o que ainda não consegui de seu volumoso trabalho me pergunto: como reagiria Jorge ao Brasil de hoje? Sobre o que escreveria diante de tantas lições ainda não aprendidas? Somente naquela tarde pude perceber melhor quem havia sido meu ilustre convidado. E porque era tão ilustre.

E ali, na Roda, a propósito de sua leitura, repetiu uma de suas máximas: “Somos mestiços e essa deve ser nossa honra e nosso orgulho”. Ele continuaria com certeza a reinventar o Brasil.

Jorge terminou sua Roda de Leitura exatamente no tempo aprazado com a organização. Não daria autógrafos, já havia prevenido a plateia. Seria impossível, diante da multidão que o esperava na rotunda do CCBB. Antes, oferecemos flores à sua namorada como costumava chamar a companheira de mais de 50 anos. Saiu pela porta traseira do imenso prédio que um dia abrigara um banco.

Alguns anos mais tarde, em 2001, fui a Salvador levando o projeto das Rodas que viajava por todos os estados brasileiros com o Circuito Cultural do Banco do Brasil. Solicitei a Zélia que lesse um trecho dos romances dela na Fundação Casa de Jorge Amado. Ela aceitou e fez a gentileza de me convidar para visitá-la na casa do Rio Vermelho. Seria um almoço com alguns amigos, entre eles Carybé, o fantástico artista plástico argentino e ilustrador dos livros de Jorge que já não podia participar das reuniões por estar muito doente. Claro está que serviram algumas iguarias saídas da cozinha de Dona Flor, mas não permaneci por lá muito tempo.

Jorge Amado faleceria em agosto. Junto dessa memória disponibilizo no link do YouTube a Roda de Leitura da qual participou e onde vocês verão ao vivo e a cores algumas das passagens que descrevo aqui.

Verão mais, inclusive essa que vos fala, com muitas décadas a menos e ainda muitas, muitíssimas descobertas por fazer que isso não tem fim.

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Nesse espaço, Suzana Vargas vai apresentar histórias que ela escreveu para lembrar ou lições que aprendeu convivendo com grandes escritores da literatura brasileira. Carlos Drummond de Andrade, Mário Quintana, José J. Veiga, João Antônio, Victor Giudice, Moacyr Scliar e Jorge Amado são alguns dos nomes que atravessaram a vida da escritora, professora, curadora e produtora cultural. A coluna - intitulada Escrever para Lembrar: o que os grandes escritores me ensinaram - integra as comemorações dos 20 anos do PublishNews, celebrados em 2021. Para conhecer mais da trajetória da titular da coluna, assista à participação da fundadora do Instituto Estação das Letras no PublishNews Entrevista de julho de 2020.

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